sábado, 14 de dezembro de 2013

Marx Selvagem de Jean Tible: Selvagens do Mundo, Uni-vos!

Marx Selvagem, vetusta tese de doutorado de Jean Tible, finalmente deveio livro. Seu lançamento, no Teatro Oficina da trupe do antropofágico Zé Celso Martinez Corrêa, foi uma feliz escolha para uma obra desse naipe -- e tornou-se, no fim das contas, um verdadeiro acontecimento em Novembro último. Tible lançou um olhar sobre um Marx menor -- em contraste com um Marx grandioso, civilizado e arrogante -- que se revela, não por acaso, na virada dada pelo filósofo alemão na compreensão do colonialismo e das chamadas sociedades sem classes: isto é, quando Marx se livra, ou tenta se livrar, do  paradigma ilumino-modernista, algo que no plano conceitual se dá na forma de seu afastamento definitivo da filosofia da consciência hegeliana rumo a uma ontologia do sensível, no qual a temática da subjetividade torna-se horizonte visível.
A opção do autor pela problemática do pensamento marxiano face aos selvagens é uma curiosa, e pertinente, forma de abordar essa transição de Marx, justamente pelo significado disso no plano das lutas. A escolha de Tible, quando este poderia simplesmente optar por discutir os desdobramentos ontológicos desse processo, é reveladora do seu ímpeto político e iconoclasta. Em algo, ele ecoa o espírito de obras como Anomalia Selvagem de Toni Negri, isto é, fazer justiça com as próprias mãos contra a apropriação majoritária e civilizatória de um grande pensador -- no caso de Negri, Spinoza, enquanto aqui, Marx. É, pois, uma proposta original e audaciosa, que merece ser lida -- e, obviamente, deglutida da melhor forma.

Convém, a título de explicação, expor a maneira como essas "sociedades", esses selvagens todos, se articulariam no interior do pensamento marxiano, o que implica em questões importantes e delicadas no que toca à obra do filósofo alemão: (I) no plano dos conceitos, a afirmação de que o grau de abertura de Marx para a subjetividade, e consequentemente para as temáticas da filosofia contemporânea, é mesmo maior do que poderiam suportar, por exemplo, marxistas ortodoxos, modernistas e/ou iluministas -- como algum bolshevik genérico, Hobsbawn e/ou Elster; (II) no plano das lutas, trata-se de uma rearticulação da maneira como se toma o colonialismo, o capitalismo e formas de resistência, o que oporia Marx à sujeição incondicional ao processo civilizatório -- sujeição tal que não poucos marxistas se apegam e se apegaram, basta lembrar da União Soviética ou mesmo de um (ex?)trotskysta como Hitchens defendendo a Guerra do Iraque. Conceitos e lutas, nem preciso dizer, estão intimamente ligados na práxis marxista.

Logo, é evidente que Marx Selvagem põe o dedo na ferida de uma velha doxa do mundo intelectual: aquela que coloca em lados opostos do ringue "marxistas" e "antropólogos" -- em uma arenga interminável e sem solução. O motivo da querela é justamente a segunda razão acima apontada: Marx, segundo os "antropólogos", seria aliado da civilização e seu aparente radicalismo significaria, apenas e tão somente, uma variação possível dentro do paradigma organizativo judaico-cristão do ocidente -- mais ou menos aquilo que Pierre Clastres trouxe à baila em seu Sociedade contra o Estado. E que para alguns "marxistas" é isso mesmo: a história é linha reta determinada pelo o desenvolvimento dos meios de produção, o que exige um compromisso profundo com a "civilização" e seu avanço -- mesmo com certos, digamos, "sacrifícios" em nome do bem maior, sendo o comunismo, ele mesmo, apenas o estágio superior da civilização.

Pois bem, o livro de Tible é bom porque se livra dessas falácias, insere-se na alegremente na polêmica -- ainda que por ser um tese de doutorado, antes de um livro, carregue um estilo às vezes demasiado acadêmico, mais pesado do que uma obra com essa temática demanda. A obra em questão está articulada em três capítulos: o primeiro, sobre a relação de Marx e o colonialismo e a América Indígena, o segundo, a respeito da práxis antiestatal de Marx -- aproximando-o do Clastres que lhe criticou tão duramente -- e, por fim, o melhor e mais relevante capítulo: cosmologias, no qual Tible delinea o ponto de conexão entre Marx e o pensamento ameríndio -- aqui, na forma da antropologia reversa de Davi Copenawa --, o que é precisamente a relação entre a noção marxiana de fetiche da mercadoria e o de feitiço: os brancos civilizados, pois, não estão menos isentos de serem enfeitiçados, ao contrário, vivem imersos na atração fatal que nutrem por seus objetos técnicos, na medida em que lhe atribuem feições humanas -- no mesmo movimento em que desumanizam a si mesmos e aos outros, sendo que só a partir daí tais objetos devêm mercadoria.

Sim, Marx, ao contrário de Engels, emergiu gradualmente do fetiche civilizatório e modernista. E é em torno disso que giro o primeiro capítulo do livro. E isso não é generosidade demasiada, uma apropriação arbitrária ou wishful thinking do autor de Marx Selvagem para com Marx: Tible demonstra isso com obstinação ao expor o giro marxiano em relação à questão colonial; o velho Marx possuía uma posição inicial sobre o imperialismo, segundo a qual o processo de colonização era visto como uma chance de povos como os indianos entrarem na História para, depois, chutarem os colonizadores britânicos, unindo-se aos trabalhadores do mundo num processo que desembocaria na revolução; isso muda, no entanto, quando Marx assume uma posição absolutamente hostil ao colonialismo, o qual passa a ser enxergado como mero meio de retroalimentação da máquina capitalista mundial: seria um dispositivo marcado pela dialética centro (progresso) e periferia (atraso), na qual os civilizados explorariam os selvagens e bárbaros, que lhes eram contemporâneos. A partir daí, a própria luta de classes tornaria-se uma modalidade da exploração geral, a qual em escala global era dada pelo processo de parasitagem do colonialismo.

Grande parte desse giro marxiano se dá em razão da leitura marxiana do antropólogo americano Lewis Henry Morgan: e a novidade que Morgan trouxe à antropologia foi de não apenas deixar de lado o discurso colonial-racista dos seus pares, mas também -- e sobretudo -- de afirmar que as as coletividades humanas selvagens não eram necessariamente piores. Ao contrário. Isto é, ainda há uma certa linearidade em Morgan -- como há em Marx --, mas o que certamente lhe fascinou em Marx foi que os selvagens não estão postos em uma condição hierarquicamente inferior aos civilizados, consistindo em formas diferentes de coexistência -- ambas sincrônicas, diga-se de passagem. Tible, aliás, é particularmente competente em demonstrar isso.

As coisas esquentam mesmo no segundo capítulo, quando Tible faz uma leitura do anti-estatalismo na obra de Marx e de Pierre Clastres, ousando estabelecer um ponto de conexão entre ambos -- o que, a um primeiro olhar, seria tarefa impossível. Pois bem, a hipótese que o autor traça é conectar a sociedade sem Estado de Marx a a sociedade contra o Estado de Clastres, encontrando um comum em meio à (aparente?) dissonância. Sim, ambos, Marx e Clastres, são pensadores anti-Estado. A partir daí, ele traça o anti-estatalismo na obra dos dois para, logo mais, promover o encontro entre eles. A transição revolucionária de Marx, o que há entre o Estado burguês e o comunismo, como o esconjuramento atual do Estado em Clastres?

E Tible faz bem isso ao nos lembrar que Marx não é Lassalle, para quem a ideia de um Estado popular e proletário já aparecia com O caminho: isto é, para Marx, o Estado não é solução, mas resultado funesto da sociedade de classes, o que pode ser definido na seguinte fórmula. A sociedade de classes é causa efetiva do Estado, pois este é o local por excelência, no qual a classe dominante reprime/media as tensões causadas pela resistência da(s) classe(s) dominadas. De tal forma, ao assumir a posição da classe trabalhadora como a classe revolucionária, ele acreditava que esta ao assumir o poder seria capaz de promover a universalização da qual os burgueses jamais seriam, ou foram, capazes: esta universalização levaria a uma sociedade sem classes, ao fim do capitalismo, e consequente esvaecimento gradual do Estado. Essa talvez seja a maior diferença entre Marx e Engels, uma vez que o segundo via o Estado como causa, ao menos relativa, uma vez que ele era instrumento de repressão nas mãos da classe dominante: no engelianismo, uma vez a revolução sobreviesse e a reação a esta cessasse, o Estado perderia utilidade.

Mas é nas polêmicas com Bakunin que chegamos ao ponto que interessa. No que se refere ao combate político-intelectual com o anarquista russo, Marx defende sempre uma transição revolucionária para a sociedade de classes -- e estatal -- e sociedade sem classes, por não acreditar na abolição estatal "por decreto" como defendida por Bakunin; no entanto, Bakunin da sua parte responde a Marx -- e não a nenhum marxista, contemporâneo ou futuro -- que a transição proposta culminaria na prevalência do Estado de um modo tão ou mais autoritário -- não é que Bakunin discordasse da libertação dos trabalhadores, mas sim de que a hegemonia proletária no Estado não seria capaz de gerar a liberação humana e que, ainda, entendia que o Estado gerava, ou sustentava, a sociedade de classes, logo, a sociedade sem Estado era condição prévia para a sociedade sem classes -- e não o contrário.

Tible, no entanto, poderia ter feito um esforço mais conceitual do que descritivo no que diz respeito à inversão Bakuniniana e suas implicações.  E poderia ter mergulhado com mais profundida na dicotomia marx-bakuniniana sobre a sociedade de classes e o Estado. Isso fica claro quando Tible prefere rebater a crítica de Bakunin ao estatismo colateral do plano de transição revolucionário de Marx, vejamos nós, pela exposição da falta de um plano de ação à proposta teórica de Bakunin, o que teria sido comprovado por seus fracassos práticos -- ou quando procurar explicar a certeza da antevisão (cruel? auspiciosa?) do anarquista, sobre o que seria a experiência histórica do "socialismo real", pelo viés de sua eventual razão em relação "a um certo marxismo já existente", e não em relação a conceitos marxianos efetivos. A crítica ao modo como a polêmica marx-bakuniniana foi pouco enfrentada consta do próprio posfácio e, convenhamos, é justa.

Quando trata de Clastres, Tible nos lembra que para o antropólogo francês, o Estado sempre existiu, mas nas sociedades indígenas existentes,  este era esconjurado por uma série de práticas que esvaziam o desenvolvimento do poder. Isto é, longe de Engels, que concebeu o Estado como evolução histórica da divisão do trabalho em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Trabalho, para Clastres o Estado estava posto desde sempre, mas práticas como o nomadismo e a relação entre a tribo e seus guerreiros e chefes, ele restava apenas latente. O que os povos estudados por Clastres nos apontavam era a possibilidade de esconjurarmos o Estado aqui-agora. Isso seria possível, pois os povos de Estado, já foram, algum dia sem Estado, não por falta de evolução, mas pelos agenciamentos coletivos que produziam, o que estaria à nossa mão aqui-agora -- e, sim, você há de ter lido algo do gênero, não por acaso, em Deleuze-Guattari. 

Mas Marx, em dado momento, já antevia as sociedades sem Estado existentes hoje como um símbolo do passado (europeu), mas, sobretudo, como flecha apontando para o comunismo do porvir. Eis o que seria o casamento (possível) entre a sociedade sem Estado e a sociedade contra o Estado, atadas por um fio vermelho. Mas Tible perdeu a oportunidade para adensar algo que ele mesmo suscitou, quando lembrou o comentário de Gustavo Barbosa sobre o contratualismo em Hobbes: faltou, entretanto, definir o que seria, ontologicamente, "sociedade", ou qual o motivo de naturalizarmos o termo como a própria essência da coletividade humana; se o próprio Marx via o contrato social como um mecanismo de expropriação, seria possível haver sociedade sem contrato social? E poderia haver sociedade -- A Sociedade --, sem haver um Estado para fazer valer -- à força, se necessário -- tal contrato? Como os selvagens, que em toda a literatura contratualista não travaram contrato social algum, poderiam constituir uma forma de sociedade?

São questão que ambos, Marx e Clastres, não enfrentaram a seu tempo, logo, Tible não teria obrigação, em tese, de fazê-lo descritivamente em um trabalho acadêmico. Mas poderia ter adensado a crítica nessa direção. Deleuze e Guattari, eles mesmo, acertaram ao falar, no Anti-Édipo, no acerto de Marx ao tratar a história como a história dos cortes e das contingências, mas apontavam que o pensador alemão errou ao fazer leitura da história como luta de classes -- quando isso pode se revelar apenas a história desde o advento da burguesia --, o que causava a ilusão de ótica de ver a burguesia, em algum momento, como realmente revolucionária -- o que implica em desconhecer os próprios descaminhos da revolução passada e, consequentemente, das revoluções futuras. Por outro lado, no entanto, D&G esvaziaram isso ao, em Mil Platôs, surgirem com a ideia da existência de um Estado, ou um fantasma estatal, que percorreria a história do humana. A própria noção de socius, já no Anti-Édipo, é parte dessa contradição em termos, uma vez que o pensamento social, ao contrário do que parece, é eminentemente burguês.

Ainda que Marx e Clastres digam "sociedade" como expressão de qualquer coletividade humana, o fato de não esmiuçar o conteúdo específico do termo leva ao desconhecimento dos efeitos dessa naturalização. Não, os índios não vivem em sociedade por que não partilham um contrato, isto é, não vivem em regime negocial. O ócio, isto é, trabalhar para viver e não viver para trabalhar é o que -- acima de tudo -- distingue os índios de nós, pobres ricos ocidentais. Os selvagens não travam sociedades entre si, tampouco vivem sob a égide de A Sociedade -- portanto, do Estado. A dificuldade de Marx e Clastres em articular contrato social, sociedade e Estado, possuem um desdobramentos importantes. O que por trás da naturalidade, no sentido de normalidade, da sociedade é algo que poderia ter sido respondido. Entender a história para além dos termos em que seu deu a luta na sociedade hegemonizada pela burguesia exige, também, uma genealogia profunda do contratualismo.

O ponto forte do livro está mesmo no terceiro -- e último -- capítulo. Copenawa e Marx, separados por dois séculos -- e um imenso oceano -- de diferença, mas que veem na relação mágica -- e teológica -- dos homens com seus objetos a chave para a crítica à economia política e ao capitalismo. Assertiva perfeita de Tible. O liame da relação entre homem e mercadoria é, precisamente, afetivo, dada pelos efeitos reais de um discurso imaginário. É precisamente essa liame subjetivo que permitiu a virada do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e cognitivo. A mágica devém absoluta, justamente porque os objetos técnicos já eram laterais antes, até se tornarem quase que completamente obsoletos nos dias atuais: o que gera valor são conceitos, abstrações, marcas. 

E certíssima a crítica de Tible a Viveiros de Castro, alguém cujo ponto feliz de sua antropologia está em relacionar a metafísica deleuzo-guattariana -- que é sim marxista -- com uma pesquisa etnográfica densa -- e Viveiros concorda com o Marx da virada mais do que gostaria, e poderia admitir, como Tible felizmente demonstra. O que Tible não adensou, novamente, é que se Viveiros, via D&G, vê bem o erro marxiano (dar uma demasiada universalidade à história burguesa), por outro lado, novamente por meio dos dois, repetiram o erro de Marx ao dar, p.ex., uma existência extra-histórica na História ao Estado (sempre houve Estado), o que polui o pensamento de neblina na hora de destrinchar, e desmontar, dispositivos específicos  -- os quais estão a serviço da escravidão universal do regime do Capital.

Por fim, Marx Selvagem, que desemboca em Oswald no final, é uma obra divertida. Passa por muitos autores, questões e polêmicas caros ao pensamento-prática da esquerda atual. Mas importante de tudo, é a leitura correta de Marx presente no livro, ao levantar a bola para onde o pensador alemão mirava no século 19º, e não para o seu retrovisor, isto é, a própria tradição majoritária alemã. O Marx maior, felizmente, foi jogado na lata do lixo da História, primeiro com a queda do Muro de Berlim, depois com a crise do colaboracionismo de esquerda ao neoliberalismo, agora, mais do que nunca, é hora de pôr em prática um outro Marx, o que, a nosso ver, é imprescindível. Hoje, mais do que nunca, é o momento de bradar: Selvagens do Mundo, Uni-vos!


TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São Paulo: Editora Annablume, 2013, 242 páginas.



segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Réquiem para Mandela

"Nós adotamos a atitude de não violência só até o ponto em que as condições o permitiram. Quando as condições foram contrárias, abandonamos imediatamente a não violência e usamos os métodos ditados pelas condições"

Nelson Mandela

Faleceu, no último dia 5 de Dezembro, Nelson Mandela,  ex-presidente sul-africano, ícone internacional da luta contra a opressão e grande líder da luta contra o apartheid -- regime oficial de segregação étnica que perdurou por 44 anos, entre 1960 e 1994, em seu país. Mandela morreu aos 95 anos, 27 dos quais passados em uma prisão, em virtude da sua participação na luta armada contra aquele regime --  a prisão de Mandela aconteceu em 1963, em decorrência do Julgamento de Rivônia, sendo que ele só foi libertado em 1990, depois de muita pressão sobre o governo sul-africano.

Curioso notar a santificação que Mandela atingiu nos seus últimos anos de vida: de repente, Mandiba era unanimidade entre esquerda, direita, centro, gregos e troianos. Sua morte repercutiu pela mídia global e não houve quem, nos últimos dias, não se compadecesse de seu falecimento. A questão que se insurge é:  Como uma figura radical como Mandela, em um mundo como este,  pode tornar-se um herói?

Aí entram alguns detalhes importantes: Mandela participou com todo afinco da luta contra o Apartheid, quando criou e participou da organização guerrilheira Umkhonto we Sizwe -- "Lança de uma Nação" -- como resposta ao Massacre de Sharpeville,  aliou-se  ao movimento não-alinhado e flertou com o bloco soviético no contexto da Guerra Fria -- na medida em que o regime do Apartheid era apoiado pelo Ocidente -- e recusou, no decorrer de seu longo cárcere, inúmeras ofertas de libertação em troca de assumir uma posição contrária à luta armada. 

Uma vez liberto em 1990, foi eleito presidente da nova nação sul-africana em 1994, em um processo marcado pela fusão da bandeira da África do Sul nacional com a do CNA -- Congresso Nacional Africano, organização política negra da qual ele fez parte e que, desde 1912, empenhou-se na luta pela autonomia dos negros na África do Sul e na luta contra as variadas formas de segregação. A nova África do Sul, embora livre da segregação racial formal, ainda hoje apresenta das mais altas desigualdades sociais do mundo e o abismo entre brancos negros, e entre brancos, continua absurdo.

A questão inicial, portanto, possui dois eixos principais. Um deles é a maneira como a mídia global diluiu a biografia de Mandela, transformando-o em alguma espécie de pregador passivo e cândido, alguém que jamais se usou do "radicalismo" contra a ordem posta; o outro, o quanto que diz respeito aos mecanismos internos do racismo, expresso no contexto sul-africano do século passado na forma de apartheid. 

A pasteurização de Mandela é não só necessária como urgente. Os heróis do nosso tempo precisam ser, sobretudo, resignados face à ordem posta, seja ela qual for: a virtude é cumprir o dever para com o Estado, em um contexto de dívida infinita. Mandela teria sido bom graças ao fato de nunca ter cruzado esse limite. Daí, a omissão e as fraudes históricas praticadas em relação à sua biografia como bem demonstrou Idelber Avelar -- no entanto, é preciso ver que existem algumas nuances a mais nessa ressignificação do que o mero fato de Mandiba, em certo momento, ter se tornado "inatacável".

Mandela, de certa forma, deixou sua narrativa ser reescrita na gramática do poder constituído, relegando sua fúria revolucionária ao papel de mito fundador de uma nova ordem de paz. Se Mandela jamais leu o discurso que a mídia global lhe preparou, por outro lado, é preciso entender o que em seu discurso real tenha lhe valido tamanha leniência de setores tão atrozes: pois bem, a radicalidade de sua ação, embora jamais renegada, foi colocada por ele mesmo em um plano meramente retórico e virtual (no passado, mesmo que apresentado como necessidade), sendo que aquilo teve sentido prático e atual nos tempos da militância e, também, nos anos do cárcere. 

Ele fez isso em nome de uma governabilidade, da possibilidade de reconciliação nacional, mas essa astúcia lhe valeu mais a santificação do que a transformação sul-africana: a falta de coragem de buscar alternativas ao livre-mercado causou, por exemplo, uma insuficiência na reversão de desigualdades materiais, o que culmina com dados sociais muito negativos; a epidemia de HIV-AIDS não foi enfrentada, sendo uma das principais causas da expectativa de vida no país ter caído. 

Para se ter uma ideia, a expectativa de vida na África do Sul era de 60,54 anos em 1994, mas caiu para 52,62 anos em 2011 -- isto é, durante o tempo de governo da CNA de Mandela, correspondendo aos governos dele, de Thabo M'beki e de Jacob Zuma; só de 2006 para cá, houve alguma melhora nos índices, quando a taxa atingiu seu ponto mais baixo, pouco mais de 50 anos, subindo dois anos de lá até 2011. Antes, a expectativa de vida sul-africana registrou seu ápice em 1991, com uma média de 61,53 anos. Só para constar, a média de vida brasileira era, em 1991, de 66,73 anos, 67,94 em 1994, e  73,44 em 2011 -- isto é, o que era uma diferença de 5 anos a favor dos brasileiros, tornou-se mais de 20 anos.

Na África do Sul não houve sequer um esforço semelhante ao do Brasil, que mesmo movido pelos interesses dos laboratórios nacionais em vez de qualquer altruísmo, tocou a quebra de patentes dos medicamentos para o tratamento da AIDS e, por sua vez, construiu um programa de combate à doença. Esse exemplo ajuda a entender como Mandela permaneceu santificado: não feriu interesses, salvo para empreender conquistas formais. E também nos ajuda a passar para o segundo ponto, no que toca ao racismo de antes e o de hoje.

Ora essa, chegamos a um ponto espinhoso, tentar determinar o racismo em sentido conceitual, como modo de dominação, e nas condições sul-africanas. Racismo ou luta de classes, eis a questão? Ambos. O racismo só existe como armadilha para segregar determinadas camadas, cuja diferença biológica possa ser identificada, e, assim, conduzi-las aos piores postos na divisão do trabalho. E não é uma divisão do trabalho injusta, mas uma das formas de expressão da injustiça que é a divisão do trabalho. O negro é representado como pior, justamente para ocupar cargos piores, só que resignadamente. Racismo não pode ser visto como  problema moral, ele é problema econômico-político.

A construção de um racismo de Estado, estipulado por Lei, como o apartheid era um desastre. Mas certamente um desastre explicável pela história da África do Sul, um acidente histórico causado pela peculiar colonização holandesa na região; a presença de colonos vindos do campo no século 17, no que deveria ser apenas um empreendimento mercantil-colonial da Companhia das Índias Orientais, gerou uma aleatoriedade histórica: eram conservadores religiosos desterrados, por seu turno, em um ambiente hostil no qual disputavam terras com etnias tradicionais da região, enquanto, por outro lado, viam-se desde sempre acossados pelo imperialismo britânico -- e o povoamento do país por mão-de-obra indiana; a construção nacional sul-africana, portanto, se deu na forma de um arcaísmo brutal e foi o último grande agenciamento de castas do homem branco, posterior mesmo ao nazismo -- e ambos apenas reproduziram as experiências coloniais arianas no mundo oriental, incluso aí a própria Índia de tempos imemoráveis.

O liberalismo e a ordem política burguesa, com a igualdade formal e a gradativa conversão dos escravos negros em trabalhadores assalariados, deram conta já no século 19º de elaborar uma tecnologia espantosamente mais sofisticada no que tange à manutenção do racismo. Não há segregação legal-formal, mas sim indireta, cultural e psicossocial, efetivada pelo dispositivo econômico. Grandes estrelas negras das artes, dos esportes e mesmo da política não são desconhecidas mundo afora, mas isso não mudou substancialmente a situação do negro comum, apenas lhe deu a ilusão do "mérito" -- o que opera de modo reverso no imaginário comum, servindo como explicação da pobreza da maior parte dos negros não na forma de efeito da dominação, mas sim de culpa.

O esquema do apartheid só durou tanto na medida em que, vejam só, um estamento local específico se beneficiava do sistema e, estrategicamente, o mantinha servindo de tentáculo do trabalho sujo do Ocidente no continente africano durante a Guerra Fria. Internamente, a cooptação de lideranças tribais, a modulação da segregação conforme a brancura da pele, mantinha os oprimidos suficientemente divididos para que sua resistência não fosse suficiente. Os burocratas do Partido Nacional precisavam do apartheid, não a totalidade dos brancos de elite: quando esta viu modos melhores de manter sua hegemonia, avançou e repetiu a estratégia dos seus pares nas Américas.

Isso não torna, é óbvio, Mandela um idiota útil a serviço do domínio branco. Mas tampouco o torna uma mera vítima do falseamento histórico da mídia global. É preciso libertar Nelson Mandela, como nos lembra João Telésforo, mas isso só é possível por meio da experiência do Mandela menor: eu quero o Mandela iconoclasta e não o ícone universal; é preciso atualizar o discurso de Mandela como prática e mostrar o quão indigesto, para opressores e racistas, é a figura que eles tentam deglutir a todo custo. Não queremos, nem precisamos, do Mandela tolerante com o intolerável, mas do Mandela intolerante com o tolerado. 





segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Poder Constituído: a Pacificação como expropriação ontológica ou expropriação primeira

Goya: Três de Maio de 1808 em Madrid
Fala apresentada no seminário Democracia e Regimes de Pacificação, no dia 25-11-2013, na PUC Rio.


A pacificação é como uma mercadoria. Mas não qualquer espécie de mercadoria: ela é daquelas que serve de meio necessário para uma outra. Por exemplo, a pacificação está para os megaeventos como o abridor de latas está para os enlatados: ela é até historicamente posterior a concepção do segundo elemento, mas lhe é logicamente anterior e absolutamente necessário como instrumento viabilizador.  


A pacificação, é verdade, torna-se no Rio algo especial porque há toda uma estratégia de branding em torno de si. Tanto que o termo está naturalizado no falar cotidiano. No resto do país, as mesmas táticas e estratégias de pacificação são conhecidas, embora a marca não seja propriamente trabalhada. Mas, reitero, ela está lá.


A história não desconhece a pacificação, aliás, longe disso, ela é, no mínimo, um episódio recorrente na práticas do Império Romano -- tanto quanto no Império Global que nos cerca. A diferença é que a pacificação de hoje, pelo menos desde o moderno, foi entificada: ela é, desde o moderno, coisa e não relação ou processo.

O presente seminário, pois, nos impõe uma questão urgentíssima: o que seria, e se seria possível, a paz verdadeira? A modernidade, não nos esqueçamos, nasceu sob os auspícios de uma ideia curiosa: a nova ordem política seria um mal necessário para o fim da violência em relação à qual estaríamos, por natureza, submetidos. Seu objetivo seria a pacificação. Precisaríamos, para tanto, combater a violência imprevisível e irracional com violência organizada, regulada e racionalizada na forma do aparato estatal. É Hobbes, é o Leviatã.


Como podemos depreender de Giorgio Agamben em A Comunidade que Vem, essa noção remete a uma fantasia teológica, segundo a qual a perfeição ordena-se não pelo não cometimento do pecado ou do delito, mas sim que o “perfeito se tinha apropriado de toda a possibilidade do mal e da impropriedade e não podia, por isso, fazer o mal”.


As novas questões que surgem são: a ação de um Estado que, por meio de sua polícia, realiza a paz armada da ocupação é, de fato, uma pacificação e, se for, seria a única possível? Pois bem, a violência dos aparatos de Estado produziu, da publicação do Leviatã em 1651 até os dias atuais, os maiores morticínios que a história da humanidade registrou. Do mesmo modo, o sistema repressivo, o tridente policial-judicial-prisional, é, hoje, quase tão onipresente quanto o deus bíblico.


Segundo a metafísica moderna autorizada, essa passagem entre o estado de natureza e o estado social se daria mediante a adoção, entre os homens, de um contrato. E o contrato não é senão o meio universal pelo qual a burguesia, desde sempre, resolve seus problemas. A natureza em Hobbes, essa estado pavoroso que precisa a todo custo ser superado, é um espaço negativo; mas o devir social do homem, dado pelo contrato, só é possível sob a linguagem contratual burguesa.
Desse ponto de vista, não é que para Hobbes -- e também para os demais contratualistas, embora de forma atenuada -- o homem tenha inventado essa prodígio que é a civilização, a qual em troca de sacrifícios necessários nos garante a paz que não tínhamos na vida selvagem.


Na verdade, o que está em discussão é que tal estado de natureza remete a uma natureza desnaturada do homem, isto é, a metafísica hobbesiana inventou uma natureza natural -- negativíssima --, separando o homem do meio-ambiente e de sua própria condição comum. Tal movimento, gera uma divisão binária entre natureza e sociedade e, sim, expropria o si mesmo do homem, tornando-o irremediavelmente incompleto.
Enfim, é no campo de uma filosofia primeira que se desenham os conceitos que servirão, tão logo, à expropriação das propriedades comunais na Europa. Não queremos a natureza, não podemos deseja-la, porque a sua violência virtual indomável justifica as violências reais e racionais. A violência organizada, cada vez mais voltada para o interior dos súditos, criaria um cenário de intimidação geral, segundo o qual a paz se estabeleceria de fora para dentro.


Essa forma de disciplina se dá, anote-se, cada vez menos por meios físicos para dar lugar ao domínio afetivo-psicológico -- que só irá avançar desde então. O que não quer dizer que essa forma de domínio não precise de violência física, mas o faz como instrumento de uma verdade discursiva e simbólica, o que é até pior do que era: quando matam realmente um, matam simbolicamente nós todos, introjetando a ideia de morte no inconsciente coletivo.


O pensamento hobbesiano cria uma tradição poderosa, que perpassará Rousseau, Kant e mesmo Locke para, enfim, desaguar em fenômeno histórico-político: e isso acontece quando a burguesia golpeia a revolução francesa, em seus desdobramentos internos e internacionais, para tomar para si o lugar que antes era da nobreza.


A burguesia, que solapou a revolução feita por camponeses, mulheres, artesãos e o baixo clero, tinha um interesse mais até do que metafísico no hobbesianismo, uma vez que seu discurso encaixa como uma luva naquele momento histórico: o estado de natureza remeteria à turbulência da revolução, origem mitificada da nova ordem, mediante o qual, para o bem geral, os cidadãos precisariam abrir mão da liberdade ímpar que dispuseram naquele momento, na forma da nova ordem.


Isso legitimou a fala ambivalente da burguesia, aquele que a permitiu  defender a resistência contra o regime antigo enquanto, no mesmo discurso, criminalizava a resistência contra a velha opressão do regime novo. Esse duplipensar irá mais tarde se repetir em outras revoluções, mesmo as socialistas, como bem expôs com brilhantismo Orwell na Revolução dos Bichos: mudam-se os atores, talvez também o figurino, mas encena-se a mesma peça com os mesmos personagens.


Antonio Negri, em seu clássico Poder Constituinte, nos lembra as palavras de Napoleão Bonaparte, que declarava o fim da revolução em razão da edificação da constituição. E Negri, mais do que isso, nos lembra que contemporaneamente ao início da construção da modernidade tradicional, uma outra modernidade, maldita, na tradição de Maquiavel, Spinoza e Marx, nos permite pensar um outro mundo.


Assentado na metafísica spinozana, Negri ataca o binarismo tradicional entre Poder Constituinte e Poder Constituído, o qual tenta esvaziar o conteúdo da revolução, reduzindo-a ao papel de mero mito fundador de uma nova ordem: o Poder Constituído é farsa histórica, que tenta apropriar-se do discurso jurídico comum da multidão em sua luta permanente na geração e garantia de direitos. O Poder Constituinte não se encerra, ele é fluxo, enquanto o Poder Constituído é barragem.


A nova ordem já nasceu muito velha, justamente por ser a mesma ordem, só que com novos donos. Ironias do destino, o que se passa na Europa dos fins do século 18º não é nada diferente dos rumos da revolução russa, pouco mais de um século mais tarde.Não poderia ser diferente, a natureza em Spinoza não é uma generalidade negativa na qual são reduzidas as multiplicidades -- como não-humanidades, não-civilizações --, mas potência que funda e anima a vida.


No Brasil de hoje, existe uma continuação descontinuada de uma larga tradição de opressão que não é estranha a um país de origem colonial. A mesma polícia surgida para eliminar legalmente quilombos e formas de resistência social é aquela que, por seu turno, opera hoje enquanto função policial -- que não se restringe as meras instituições policiais, mas ocupa um vasto cenário que operacionaliza até nós mesmo.  


Violência dos homens de bem em prol da paz social e da obra. A paz dos totalitarismo jamais foi paz de fato: é a paz dos cemitérios, dos mortos e dos intimidados. Uma paz que se pode só pode ser tomada como tal na medida em que naturalizamos a violência policial enquanto, no mesmo movimento, desnaturalizamos os homens mortos, torturados e feridos.


Mas a paz armada da pós-modernidade, embora contígua em relação ao espírito da paz tradicional do moderno, nos apresenta um novo regime afetivo: não vivemos mais às custas do par medo-esperança, mas sim de outro par, qual seja, desespero-segurança.


Antes, éramos impelidos para o futuro, o que nos exigia resignação presente, seja pelo temor das punições aplicáveis ou pelo ânimo com um bem comum que virá apenas amanhã, na forma de utopia.


Hoje, continuamos deslocados no futuro, mas não temos mais nada a esperar; Godot, segundo nos contaram no telejornal, não virá mais, logo, o desespero é a palavra de ordem e a única coisa que podemos desejar é, vejamos só, estarmos e termos seguros: nas nossas casas, nos nossos carros, na nossa sexualidade...


Essa nova polícia não é mais agente do temor, da disciplina, mas um dos fatores garantidores da segurança, o que lhe dá mais margem de manobra e intervenção do que em outras ocasiões. Apesar da Constituição Brasileira de 1988 ter constitucionalizado a militarização da polícia, nos termos do Ato Institucional 5 da Ditadura Militar, não se vê nada muito diferente nas polícias ao redor do globo, em relação às quais a militarização de fato avança às custas de toda sorte de argumento.


A sociedade da segurança cria o risco, seja por meio de fantasmas discursivos ou por transformar a natureza comum dos homens em tabu, fato último que ocorre quase sempre em torno do dispositivo de fetichização da morte. A morte e o seu vazio tornam-se onipresentes na vida contemporânea.


A demanda por uma miríade de soluções finais, idem. Na sociedade da segurança, a polícia atinge as molecularidades, que se tornaram mais complexas e irascíveis. O ataque é contra o nosso inconsciente, essa função polícia é um instrumento repressor-persecutório difuso, inclusive, a própria polícia.


O corpo desaparecido, e possivelmente supliciado, do ajudante de pedreiro Amarildo é a expressão do nosso tempo: em tempos em que o futuro faliu conosco dentro, o desaparecimento dos corpos é prática cotidiana, tanto simbólica quanto realmente -- e real porque simbólica. Não é Amarildo sendo morto, somos todos nós de alguma maneira.


A insustentabilidade um cenário anterior, de violência generalizada, apenas esconde uma justificativa cínica: as causas que levam à violência são ignoradas, a ação apenas mascara o efeito, a própria violência difusa na forma de criminalidade,  justamente para manter as causas.


A paz construída de maneira incomum pelo regime securitário é impossível. A paz sem liberdade é apenas, e tão somente, o silêncio dos oprimidos numa guerra que eles não declararam, nem tinham condições de declarar. Paz verdadeira só é possível como consequência das lutas e do amor, jamais como condição prévia.  À moda de Spinoza, podemos dizer que a paz verdadeira se faz apenas pelos homens livres, em comum acordo, por força de seu desejo autonômo e desimpedido.

domingo, 17 de novembro de 2013

Sobre as Manifestações, Black Blocs e a Repressão para o IHU-Online

Entrevista minha para o IHU-On-line, publicada último dia 11, onde pude falar da situação das manifestações, a polêmica da tática black bloc e a repressão contra o movimento.
“Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970, um duro questionamento sobre as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em um ‘momento constituinte’”, afirma o jurista.
Foto: http://bit.ly/1iRXgv9
O atual momento social e político do Brasil, onde se evidencia “melhora dos indicadores de vida” e “o esgotamento das instituições políticas”, reflete o fato de que a “maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele”, avalia Hugo Albuquerque, em entrevista concedida àIHU On-Line, por e-mail.
O jurista compara as manifestações que estão ocorrendo no país desde junho com o movimento europeu de maio de 68. “Cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou à desumanização de quem pretendeu isso”, pondera.
Hugo Albuquerque interpreta as manifestações recentes como uma manifestação da “multidão”. Tal conceito, explica, representa “uma expressão de coletividade humana que emerge não pela homogeneidade, como o ‘povo’ ou a ‘sociedade’, mas sim por diferenças intensas que se desdobram continuamente. O Quilombo dos Palmares e uma série de outros eventos resistentes da nossa história são multitudinários”. A diferença, entretanto, das manifestações de anos atrás com as de hoje está amparada na “revolução das tecnologias de informação e comunicação”, que criou, “em escala global, uma disposição multitudinária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a maneira como a multidão emerge historicamente”. E acrescenta: “O Black Bloc e o avanço do anarquismo e do autonomismo entre os jovens, em detrimento do partido e das bandeiras socialistas clássicas, são uma marca deste novo mundo”.
Albuquerque refuta as críticas de violência feitas aos Black Blocs e afirma que, ao avaliar o movimento, “o que importa não é a violência física, nós não vivemos em um sistema no qual a violência física realmente importa, não estamos na Idade Média: a modernidade se assenta sobre violências psicológicas, sujeições voluntárias e que tais. No caso, imagino que algo como o Black Bloc incomode por ser uma organização horizontal, anônima e de multidão: eles não podem ser efetivamente passíveis de uma ordem, não têm nome. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios precisam sair da estética e chegar à política”.
Hugo Albuquerque é jurista e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Faz parte da rede Uninomade e é editor do blog www.descurvo.blogspot.com.
Confira a entrevista.
Fotohttp://bit.ly/17d1p7J
IHU On-Line - Que semelhanças percebe entre o Brasil de hoje e a Europa dos anos 1960, à época de maio de 68, considerando as manifestações que aconteceram em ambos os lugares?

Hugo Albuquerque - As semelhanças são enormes. O Brasil dos anos 2010, a exemplo da Europa do final dos anos 1960 e 1970, vive um cenário paradoxal: de um lado, registramos uma grande melhora dos indicadores de vida, enquanto, de outro, o esgotamento das instituições políticas, sobretudo porque a maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele e, quem sabe, dar-lhe uma face mais humana. Só que cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou a desumanização de quem pretendeu isso. Aliás, até antes disso, a Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial experimentou algo parecido, tanto queWalter Benjamin já fazia a crítica das políticas social-democratas, isto é, o profundo equívoco daquelas em venerar o progresso técnico e construir a emancipação humana pelo aumento do Estado — como se fosse possível racionalizá-lo e transformá-lo em um agente transformador.
As esquerdas brasileiras atuais, surgidas do ciclo de lutas dos anos 1970 contra a Ditadura Militar, intuíam já no nascedouro uma certa crítica à social-democracia — e à União Soviética —, mas ao mesmo tempo possuíam uma ilusão com o progresso técnico e o estado de bem-estar social. Dilma fez uma opção pelo gerencialismo em vez da política, pondo fim a essa ambiguidade, que foi uma das grandes marcas do governo Lula, embora para melhor. É claro, as lutas brasileiras dos anos 1960 e 1970 foram culturalmente muito influenciadas pelo Maio de 68, mas aqui tinham outra natureza política e histórica, do mesmo modo que a globalização, a revolução comunicacional e o giro produtivo geram ao mesmo tempo uma onda de levantes multitudinários pelo mundo, mas eles têm diferenças temáticas importantes de canto a canto — no caso, o Brasil parece muito a Europa de antes.
IHU On-Line - Quais são os reflexos das manifestações de junho hoje, cinco meses depois?
Hugo Albuquerque - Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970, um duro questionamento sobre as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em um “momento constituinte”. Não que as pessoas comuns e os movimentos não lutem para constituir direitos o tempo todo, mas existem momentos nos quais isso atinge uma massa crítica relevante, como agora. Neste exato momento, existem algumas conquistas tópicas, o consenso gerencial que virou praxe da política brasileira está na defensiva, existem medidas repressivas pesadas sendo tomadas e algumas questões centrais: Como avançar? Como criar uma nova institucionalidade? Como fazer brotar dessas multidões novas formas de organização sem cair na impotência ou voltar ao Estado? Na Grécia, por exemplo, a explosão inicial dos movimentos foi seguida de uma depressão geral. No mundo árabe, as primaveras encontraram seu termidor muito rápido, na forma de novas composições autoritárias. Mas agora a luta é não cair nos baixos dos terrorismos em voga, do tipo "eu tenho medo", nem se tornar um crédulo que fetichiza processos históricos.
Por exemplo, os vinte centavos foram o estopim das manifestações em São Paulo, o que foi fundamental para as jornadas de junho. Mas no duro, o preço da tarifa não baixou realmente: simplesmente, os vinte cents que iriam ser pagos pelo usuário são pagos, agora, pelo contribuinte na forma de subsídio às concessionárias. E, antes disso, parte do sobredito preço já era subsidiada. O recuo do reajuste é até mais justo, só que esconde problemas. Um deles é que muitas vezes o usuário se confunde com o contribuinte, e mesmo o contribuinte mais rico, cujo dinheiro dos tributos pagos vai para financiar o usuário de transporte público, poderia ter os seus recursos investidos em algo mais útil se, de repente, o preço real das passagens fosse efetivamente minorado. A questão que insurge é: este preço real das passagens de ônibus é justo? Se não, como baixá-lo?
Nesse sentido pontos como uma tarifa zero me parece interessante, no entanto, é preciso criar um sistema único de transporte público integrado, uma fonte de financiamento justa para tanto e, também, um modelo melhor que os das atuais concessões, na qual uma empresa privada ganha uma licitação e torna-se uma figura de peso na política municipal, ainda mais por não ter acontecido uma reforma política. E não adianta sair do mercado para cair numa velha empresa estatal, como a antiga CMTC em São Paulo, que simplesmente não funcionava, ou melhor, funcionava conforme os interesses restritos da casta burocrática que a administrava, a despeito de seus trabalhadores e usuários. Isso precisa ser trazido à tona. Não é uma crítica moralizante do movimento, mas questões de ordem polêmica, isto é, táticas e estratégicas.
IHU On-Line - Como vê a crítica de que as manifestações foram esvaziadas por conta da violência?
Hugo Albuquerque - É um argumento ruim, sem dúvida. Em primeiro lugar, as manifestações não foram esvaziadas em parte alguma. Em segundo lugar, a violência deflagradora, desde o início, é de origem policial. Aliás, se você analisa os inúmeros vídeos, fotos, textos e relatos sobre essas manifestações, constata-se que, quase sempre, quando os manifestantes usaram da força, foi em caráter defensivo. Existem alguns poucos casos de policiais que foram agredidos gratuitamente nesse processo, mas comparado com a quantidade gigantesca e a intensidade das agressões realizadas por eles contra os manifestantes, não há como equiparar nada. É possível fazer uma crítica estratégica e política dessas manifestações, mas embarcar num rema-rema moralista apenas favorece a criminalização dos movimentos sociais e a violência de Estado.
Violência
É preciso acrescentar que a violência policial é algo que, por natureza, não tem simetria com a violência praticada por pessoas comuns: a coisa é outra, a violência de Estado tem natureza peculiar, pois ela é aquela na qual o agredido não tem a quem recorrer. Ele é atacado por quem está ali, em tese, para protegê-lo, e para ser atacado dessa maneira ele precisa ser rotulado como causador de algo, pois para que um policial use de força contra alguém, a imagem pública dessa precisa, antes, ser destruída. A vítima sofre a pior das violências que é, precisamente, a sua desumanização, a violência física posterior é só consequência. É o velho apanhou ou morreu porque "deu motivo", porque é um pária, um Homo sacer.
Além do mais, até bem pouco tempo, manifestações reivindicatórias no Brasil eram pacíficas como em nenhuma outra parte do globo, mas já eram tratadas à base de muita violência — e ativistas eram socialmente estigmatizados, independentemente do que propusessem. Só que o nível de violência policial cresceu desta vez a ponto de radicalizar como nunca os movimentos — e em vez de dar a outra face, os ativistas passaram a conter a tentativa de supressão policial usando de força. Ainda assim, o que se vê no Brasil não é nada diferente do registrado na Europa em manifestações. Mas uma coisa é discrepante: a violência da polícia, uma das que mais mata no mundo.
Não só o aparato judicial brasileiro tem autorizado essa violência. Existe pouco empenho na apuração dos crimes praticados por policiais no período. Só que paralelamente a isso, ocorre agora uma grande comoção social em casos como o do pedreiro Amarildo no Rio e o do garoto Douglas na Zona Norte de São Paulo: infelizmente, gente pobre e inocente morria todo o tempo nas mãos da polícia, mas isso felizmente começa a indignar as pessoas agora. Só que o policial que matou Douglas irá responder processo por homicídio culposo — isto é, sem intenção de matar — em liberdade, enquanto os agressores do coronel, em recente manifestação, responderão presos por tentativa de homicídio. Existem dois pesos e duas medidas aí.
IHU On-Line - Qual é a gênese dos Black Blocs? Como e por que esse fenômeno se formou?
Hugo Albuquerque - Não é difícil descobrir como o Black Bloc surgiu: na Berlim Ocidental do início dos anos 1980. Depois o fenômeno teve sucesso nas marchas alterglobalistas dos anos 1990. Mas é preciso lembrar o seguinte: o que se passava com a Alemanha Ocidental naquela época? Simples, era a crise da social-democracia, que, depois de um longo governo, rompeu o diálogo com os movimentos sociais, ambientalistas, etc. A partir daí, temas importantes de direitos civis, a questão da energia nuclear e que tais ficaram de fora da agenda. É a mesma época em que a ala ambientalista do partido social-democrata rompe com ele e funda o Partido Verde. Era a mesma coisa na Itália com o partido comunista local: uma aliança entre capital e trabalho a bem do desenvolvimento, do progresso. Sindicatos de braços dados com o capital nacional. O Black Bloc, embora não propriamente violento à maneira de organizações como a Fração do Exército Vermelho, expressou o horror e a revolta de toda uma juventude com a perspectiva política desumana, previsível e absolutamente vazia: na qual todos marcham numa estrada monótona, onde não há perdão para quem se recusar a seguir essa trilha para o futuro.
IHU On-Line - Os Black Blocs fazem parte da multidão? O que os diferencia e os aproxima?
Hugo Albuquerque - A multidão é muita coisa, ela é um conceito, uma expressão de coletividade humana que emerge não pela homogeneidade, como o "povo" ou a "sociedade", mas sim por diferenças intensas que se desdobram continuamente. O Quilombo dos Palmares e uma série de outros eventos resistentes da nossa história são multitudinários. A diferença agora é que a revolução das tecnologias de informação e comunicação criou, em escala global, uma disposição multitudinária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a maneira como a multidão emerge historicamente. E as revoltas dessa multidão se expressam de um modo diferente do que no século XIX, com a classe trabalhadora, uma dessas formas, aliás, são as greves metropolitanas. O Black Bloc e o avanço do anarquismo e do autonomismo entre os jovens, em detrimento do partido e das bandeiras socialistas clássicas, são uma marca deste novo mundo.
IHU On-Line - Por que essas manifestações ocorrem, em alguma medida, sob a linguagem da violência? Em que consiste a “violência simbólica” e a “estratégia performática”, como os Black Blocs definem? Ela é justificável? Quais os limites dessa manifestação?
Hugo Albuquerque - Pela polarização à qual eu me referi inicialmente. Quem deflagrou a violência, me parece, não foram os manifestantes, mas agora existe muito ressentimento, angústia, flutuações de ânimos, etc. E muita repressão: pela primeira vez na nossa história existe um consenso entre as elites políticas de que é preciso reprimir, sim, não há mais alguém pelos ativistas, ao mesmo tempo que as pessoas estão enfurecidas. Isso, ao meu pensar, só se resolve com uma sincera interlocução política.
Do Black Bloc, o que importa não é a violência física, nós não vivemos em um sistema no qual a violência física realmente importa, não estamos na Idade Média: a modernidade se assenta sobre violências psicológicas, sujeições voluntárias e que tais. No caso, imagino que algo como o Black Bloc incomode por ser uma organização horizontal, anônima e de multidão: eles não podem ser efetivamente passíveis de uma ordem, não têm nome. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios precisam sair da estética e chegar à política.
IHU On-Line - Em que consiste o poder constituinte da multidão? Qual é o poder constituinte das ruas?
Hugo Albuquerque - É uma ideia do filósofo italiano Antonio Negri, que, baseado na metafísica de Spinoza, rompe com a separação estática e primária entre poder constituinte e poder constituído que nós aprendemos nos bancos das faculdades de Direito. Essa ideia modernista de que houve uma revolução, mas adveio uma nova ordem, benigna, é coisa de Napoleão: a constituição — na forma de um contrato burguês — adveio e a revolução acabou. Sem dúvida alguma, uma pura peça retórica que transforma o evento destituinte de uma velha ordem, e constituinte da liberdade, em um mito fundador domesticado que fundamenta a obediência absoluta à nova ordem. Isso serviu para que tudo mudasse sem nada mudar na França pós-revolução, quando a aristocracia traiu camponeses, baixo clero, trabalhadores, mulheres para apenas tomar o lugar que era da burguesia. O poder constituído é uma farsa histórica, que vem a legitimar a violência de um setor sobre o outro, criminalizando a eventual resistência dos oprimidos. De certa forma, o PT — até o governo Lula — sempre deu vazão a esta potência constituinte, mesmo que com ambivalências, constituiu direitos e melhorou a vida dos povos brasileiros. Uma vez que ele deixou de fazer isso, aconteceu o óbvio: o fluxo da correnteza represou e arrebentou a barragem.
IHU On-Line - Como interpreta as críticas aos Black Blocs e às manifestações que ocorreram em junho? Trata-se de duas críticas específicas a cada movimento, ou é uma única crítica?
Hugo Albuquerque - Bem, eu acho que existem pessoas realmente incomodadas pelo abalo à ordem, outras com sincero temor sobre os rumos do que pode acontecer — o uso desses eventos para instituir um regime reacionário — e um ânimo igualmente sincero de outro lado — às vezes exagerado, mas muitas vezes equilibrado. Eu penso que isso tudo é muito complicado. Mas estou mais preocupado com quem gerou mais violência e pode gerá-la mais ainda; eventuais atos exacerbados cometidos por algum adepto da tática Black Bloc precisam ser vistos na sua real dimensão: uma infração, uma desobediência civil, um ato individual ou em grupo. Não foram os Black Blocs que sequestraram, torturaram, cegaram ou mataram alguém nesse período de tempo.
Eu poderia fazer “n” críticas ao método de ação dos Black Blocs e mascarados em geral, mas evito fazer para não embarcar nessa onda de criminalização. 

Direito penal não é panaceia. O que me assusta mesmo nesse momento é a violência policial, a aplicação contra civis da Lei de Segurança Nacional, as prisões arbitrárias e em massa, o cerceamento de defesa de muitos dos acusados de terem feito algo nestes últimos meses.
IHU On-Line - Em que fundamenta a afirmação de que “o Estado é anárquico como a tradição teológica é anárquica”?
Hugo Albuquerque - É uma ideia agambeniana. O Estado, a exemplo do deus-pai da mitologia abraâmica, não tem fundamento. Isto é, ele é “an-archon”, sem fundamento, em grego. Ele cria as identidades das pessoas, nossas identidades são oficiais e, a partir delas, podemos ser comandados. Apesar de todos os mecanismos de pesos e contrapesos, o Estado pode emitir uma decisão final que não é passível de contenção pelos cidadãos. E isso independe do governo, de quem esteja lá, é algo próprio da forma de organização estatal. Daí que toda crítica moral(ista) a um determinado governo é ingênua ou muito mal-intencionada. Quando os cidadãos comuns se organizam da mesma forma, eles colocam o Estado em choque.
IHU On-Line – O que significa o Estado não ter fundamento? Qual é
aalternativa ao Estado?
Hugo Albuquerque - O Estado estabelece identidades, nomeando, mas ele próprio não tem nome, ele ordena, mas em último caso não é ordenável. Olhem o mito do deus judaico: deus não tem nome, pois é ele quem nomeia, ele quem dá nome aos filhos e, por isso, seria indigno que estes o nomeassem. Ora essa, não se trata de um fenômeno lógico, mas de uma questão ideológica óbvia: deus não pode ser nomeado, pois de fosse, poderia ser comandado também. Ele tem uma mera identidade genérica, uma identidade meramente descritiva e não prescritível. Com o Estado ocorre o mesmo. E o Estado, que e' um fenômeno próprio da modernidade, é feito à imagem e semelhança de deus. É uma máquina política que, conceitualmente, se caracteriza pela pretensão de onisciência, da onipotência e da onipresença, isto é, a divina providência que tudo pode (como em um totalitarismo) inclusive escolher nada poder (em um neoliberalismo). No plano histórico, Estado é uma forma de organização política lastreada por um corpo permanente de burocratas, cuja praxe mantém uma continuidade hermética é permanente, é a exceção permanente à qual se refere Benjamin: um mundo ordenado por vilões, por administradores, um monte de engrenagens objetificadas e objetificantes. Mudam-se as "cabeças" e permanecem os burocratas. Eles vivem do trabalho vivo parasitariamente. E essa lógica se sustenta em uma lógica meramente econômica, algo transportado desta vez do patriarcalismo greco-romano, no qual a cidade era composta por varias casas (oikias) comandadas por um dono ("dominus" ou "despotes") que pelo título público do "dominium" exercia mando absoluto sobre sua família, servos e escravos. Platão é o primeiro pensador que, no afã de resolver os problemas políticos (da Atenas de então), propugna por uma lógica econômica de ordenação política que, a rigor, suprimiu a própria política. Não à toa, os vários fascismos do século 20º converteram seus lideres em figuras patriarcais - com a diferença que a ideia de eugenia  acabou sendo transformada em critério para a fidelidade. Atente-se que eu não chamei ninguém de "vilão" à toa: o "villicus" romano era quem administrava a Casa, quem fazia o trabalho sujo e duro de acordo com a vontade do "dominus" (ou muitas vezes influenciando-o). O Estado é uma multiplicidade de "villicus". Vejamos nos que o Estado, qualquer um que seja, possui uma face visível e benigna (o Parlamento, o diplomata) e outra, secreta e terrível (o interior dos gabinetes, os sistemas de espionagem), o que só é possível porque ele vive em absoluta liberdade e não é sujeito a nada. Isso o Marques de Sade já tinha observado, quando dizia que a realização constitucional dos Estados se dava anarquicamente. Só que o Estado, ou melhor, seus agentes, entram em pânico quando alguém se volta contra eles usando de sua mesma racionalidade, só que de forma positiva. Posto isso, qual a alternativa que existe para o Estado? Que comEstado não existem alternativas, mas sem ele, elas se tornam possíveis. O mundo viveu muito tempo sem a forma de organização estatal. É uma ideia inventada pelos pensadores burgueses e pré-burgueses como Hobbes, mas cuja realização histórica só se deu mesmo com as revoluções que a burguesia solapou: a Gloriosa, a Americana e, sobretudo, a Francesa. Perguntar-se sobre alternativas ao Estado, é como indar o que seria de nós sem as armas de fogo. De tal sorte, o erro histórico das esquerdas, da Rússia do século 20 até a América Latina de hoje, passando pela social-democracia européia ocidental, foi tentar ocupar algo que, por natureza, é inocupável, muito pelo contrário.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Hugo Albuquerque - Acho que vivemos um momento fascinante, que precisa ser visto sem medo ou esperança, sem desespero ou vontade de segurança, mas com alegria e equilíbrio. Teremos saudade desses dias no futuro, pelos motivos bons ou maus. É preciso pensar, atuar, propor como nunca.