domingo, 31 de março de 2013

A Poética da Páscoa: Feliz Êxodo, Feliz Ressurreição

Ressurreição de Cristo -- Rafael
A história da Páscoa, a Passagem, é amplamente conhecida. Eis o povo hebreu, a multidão produtiva feita escrava na nascente civilização: eram, àquela época, cativos no Egito, sujeitos ao poder soberano do Faraó. Liderados por Moisés, escapam ao domínio do despotismo por meio da fuga. Está tudo lá. A potência produtiva dos pobres, o êxodo, a linha de fuga como expressão máxima de resistência, a debilidade congênita de (qualquer) ordem imperial -- todas parasitárias -- e, sobretudo, o desfecho na exceção verdadeira da multidão, no evento da miraculosa travessia do Mar Vermelho.

A Páscoa cristã simboliza a passagem do Cristo e sua vitória sobre a morte: a exceção constitutiva da biopolítica sobre a exceção destrutiva do biopoder. Nenhuma sentença de morte, nenhum juízo imperial sobre a vida e a morte, é capaz de, em último caso, negar a vida ou absorvê-la por completo. É o que me interessa no cristianismo, isto é, seu aspecto filosoficamente antifilosófico -- no sentido de oposto à tradição, seja ao platonismo, as fórmula ideais de exclusão e da submissão, ou à ditadura da Lei como fórmula derradeira da legitimação daquilo que, por sua natureza, é ilegítimo. 

O primeiro episódio em relação ao segundo é o eterno retorno daquilo que há de mais intenso, daquilo que força as coisas ao seu limite. A potência da multidão e o testemunho dado com o próprio corpo contra o Império. Fluxos livres, jeitos que não se deixam fazer su(b)jeitos e passam para além de esquemas. Nada mais belo. Retomar a Páscoa, em tempos de cólera, é fundamental. Seja por uma questão de continente ou por outra, de conteúdo. 

Spinoza, em um dos mais belos capítulos da história da Filosofia, nos ensinou que as Escrituras importam não porque são relatos precisos, mas porque mesmo em sua natureza imaginária possuem uma dimensão real. O imaginário é, portanto, real enquanto imaginário e, também, na realidade que as imagens não deixam de nos passar. O comum da religião, a possibilidade de comunhão entre o Homem e  Deus (ou Natureza). 

E religião não se confunde com "teologia", nunca se confundiu. A religião não é sinônimo de platonismo do mesmo modo que a política, e também a ciência, não estão livres disso, basta ver toda história do totalitarismo no século 20º.  Nem mesmo o monoteísmo é a expressão necessária do platonismo, basta ver inúmeros movimentos históricos, dos místicos essênios no tempo de Cristo ou mesmo a Teologia da Libertação (que era tanto mais uma libertação da teologia) acolhendo os pobres diante do terror das ditaduras militares na América Latina. 

Não é religião ou política (laicidade, modernidade ou ciência), mas um confronto aberto ao que desgraça ambas. É assumir uma fé prática, sem esperança ou medo -- ou crenças no futuro -- ancorada no amor incondicional, em uma paixão pelo real e pelo atual que nos permite resistir até o fim diante, até mesmo, do que há de mais desesperador. Uma fortaleza existencial e re-existencial, voltada ao que há de comum entre o eu e o todo, o nós e a natureza. Não ter medo de rezar enquanto a chuva cai para, mas não rezar por medo: encontrar o Paraíso que está aqui e agora, à nossa mão. A religião, mesmo o monoteísmo, como liberdade e potência.



    

quarta-feira, 27 de março de 2013

SP: Entre a Crise da Paz da Armada e o Evento Haddad

Portinari: Guerra e Paz
O estado de São Paulo está intranquilo. Depois de anos de diminuição dos índices de criminalidade, de repente, as coisas voltaram a se abalar. Pelo sétimo mês consecutivo, a violência continuou a subir, colocando em xeque o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Por outro lado, uma notícia alvissareira no meio de tantas más notícias veio à tona: Fernando Haddad interveio no que seria uma desastrosa reintegração de posse e, assim, evitou uma catástrofe comparável ao Pinheirinho. São episódios curiosos nesses tempos bicudos em terras bandeirantes: se a pós-modernidade é marcada pelo binômio desespero-segurança, o que resta para a Paz?


Houve uma relativa paz no estado nos anos 00, abalada apenas pelo episódio conhecido como "ataques do PCC" -- em maio de 2006 --, que logo pareceu ser um ponto fora da curva. Com uma política linha dura, fundada no consenso de atuação dura da polícia, judiciário inclemente e um ministério público militante policialesco, São Paulo se orgulhava dos seus ganhos na área. Isso, até agora há pouco. Os dados da própria Secretaria de Segurança Pública não são animadores. 2012 foi, de fato, um corte nessa aparente tendência.

A política de arrocho militar, aplaudida pelas classes abastadas e elogiada pela boa técnica estatística do positivismo tupiniquim, é uma falácia. Ao tentar descrever uma tendência real pela falácia do "aqui praticamos repressão policial-judicial-carcerária, a taxa de homicídios caiu, logo a repressão policial-judicial-carcerária é a responsável pela queda na taxa de homicídios (logo, pela paz)" constrói-se um raciocínio circular, feito de efeitos e não de causas. É como atribuir a um fator que atua no sintoma -- a crise de violência, uma febre -- o desaparecimento do sintoma vendido como cura da doença. O que fazer, se a violência volta a crescer mesmo a mantida a fórmula de reprimir? Como explicar? 


O que é paz? A paz armada da ocupação? Dificilmente. A paz só subsiste como realidade ética de coexistência comum e amorosa. A paz, como historicamente ela veio à tona, é uma falácia. É estar livre para  exercer a minha violência, estar seguro em relação a uma ameaça externa pela coerção fantástica que eu submeto os outros. A paz romana, a paz imperial da ocupação sempre ruiu, pois quando qualquer coisa sai do lugar, os bárbaros invadem. Na São Paulo do século 21º, os bárbaros -- esses doces seres inventados pelos civilizados em todos os tempos e lugares -- corresponde à massa de ex-escravos, imigrantes, brancos pobres, estocados em periferias infectas, sem lazer, sem paz.

Esses bárbaros estão sob a mira de uma arma policial, duplamente punidos nossa sociedade: esmagados pelas forças de repressão como suspeitos -- em um aqui-agora no qual ser suspeito é ser culpado e merecedor, não raro, de suplícios -- e naturalmente expostos à violência epidêmica das áreas densamente povoadas e sem-infraestrutura.

A partir daí, a disputa pelo significado da paz torna-se cabal. É possível conquistar a paz pela melhoria da organização da sociedade ou só, e somente só, por meio da imposição da força, de uma ordem coercitiva? Uma paz conquistada pela coerção e pelo policialismo é mesmo paz, haja vista que o outro está sob estado de violência? E tal violência é múltipla, a extra-policial, uma vez que se aloja na própria maneira como se dá a disposição urbana e a duplicação da metrópole. A violência, criminalmente expressa, é apenas uma resposta confusa ao que poderia ser uma resposta política de rebelião face à ordem imperial. No fim das contas, ela é pior, uma vez que há violência em toda parte, sem razão, sem sentido.

O que há é o estado de exceção permanente ao qual está submetida a população oprimida e desabrigada. O gesto de Haddad ontem, por exemplo, é um rompimento nesse ciclo de violência: diante da iminência de uma reintegração de posse violenta, a intervenção que a suspendeu e possibilitou uma interlocução entre as partes. Mas não foi uma intervenção miraculosa ou providencial, Haddad fez apenas e literalmente um gesto comum, desinterdidando o diálogo. O que pode ser o caminho para pensar uma nova política e sua gestão: atuar a partir daí.

Há inúmeras linhas de forças se tensionando nesse momento em São Paulo. Nada é simples como parece, mas há um inequívoco exaurimento político e social do atual modelo. Só há saídas movendo-se para fora dele, reconhecendo a potência criativa dos pobres e suas demandas pelas geração de direitos. A cômoda e sádica paz armada que manteve a violência latente pela última década foi-se -- e não há, para o bem e para mal, mais volta.


terça-feira, 19 de março de 2013

A América Latina e a Te(le)ologia da Ditadura

Hot Pursuit -- Klee
Cena 1, o cardeal Bergoglio é aclamado como o Papa Francisco I, primeiro Francisco, primeiro latino-americano, primeiro jesuíta a liderar mundialmente o catolicismo romano -- a despeito de sua obscura participação na ditadura argentina e, também, de uma curiosa articulação de um cardeal mezzo-conservador brasileiro, Dom Cláudio Hummes, que, no entanto se opôs à ditadura em nosso país. Cena 2, no Brasil, depois de quase quatro décadas, a certidão de óbito do jornalista Vlado Herzog foi, finalmente, retificada: só agora, o outro judeu que morreu para nos salvar, não é mais legalmente suicida, mas sim vítima de tortura cometida pelo Estado local, sob a ditadura militar. Ainda no Brasil, uma cerimônia que lotou a Catedral da Sé aclamava Alexandre Vannucchi, estudante morto há quarenta anos pela ditadura.

"Ditadura" é um termo onipresente na América Latina. Com um uso muito diferente do qual ela tinha em Roma, quando era o instituto jurídico que designava o governo temporário e especial em tempos de guerra -- com duração, atribuições e controles (pelo Senado) devidamente previstos, no entanto. Marx empregou "ditadura" em "ditadura revolucionária do proletariado" no sentido romano. Carl Schmitt, jurista do Nazismo, não: católico por tradição, eugenista e platônico ao extremo, ele redefiniu o termo para usa-lo como involucro do neo-absolutismo que ele engendrou e, afinal de contas, tomou forma histórica no regime nazista. Ditadura passou a ser sinônimo de tirania. Schmitt popularizou sua definição do termo como pretendia, mas não do jeito que desejava. Na América Latina, tornou-se uma entidade, um espectro que nos torturou, matou, escondeu nossos corpos, roubou nossas crianças.

Países latino-americanos deram passos fortes em direção do resgate de sua História. Certamente mais do que o Brasil. Grosso modo, Argentina e Uruguai são grandes exemplos. O Chile também. A Argentina, aliás, teve a mais implacável ditadura do continente e, lembremos, seus tenazes movimentos de contestação -- como as mães e avós da Praça de Maio -- pouco puderam contar com a piedade dos religiosos locais, incluso o atual Papa, embora tenham contado com a dos brasileiros. No Brasil, a ditadura não foi nada branda, mas esteve longe da violência dos seus vizinhos -- e quando se aproximou, assistiu à oposição da mesma Igreja que lhe sustentou inicialmente. Apesar disso , a reconstrução da memória histórica aqui é mais difícil do que, por exemplo, no Chile  pós-Pinochet ou na Argentina pós-Videla.

O processo hispano-americano de reconstrução da memória e da verdade, no entanto, está próximo de ser abortado. Até que ponto Francisco I deseja ver isso continuar em curso? No Brasil, o que será do que já começou devagar? Se "ditadura" ganhou outro sentido, ou mesmo teve seu sentido elastecido e resultou na tirania, o catolicismo latino-americano não é menos ambivalente: ele esteve a favor e contra as ditaduras, o que parece paradoxal quando se esquece que o governo e a lei dos homens é apenas secundária em relação ao Plano; portanto existe uma postura ortodoxa de ambas "as partes". A aparente águia bifronte do atual papado -- entre as denúncias de Verbitsky e as loas de Boff, entre Bergóglio e Dom Cláudio -- resolve-se num grifo glorioso. Como a dualidade entre ditadura e democracia na América Latina se resolve na unidade e continuidade substancial do Estado como representação política do Deus bíblico.

É errado pensar em teologia-política como a política desenvolvida pela Igreja à margem dos Estados. Isso chama-se, sem sombra de dúvida, política eclesiástica. A função real da Igreja como forma Estado, complementando-o como dispositivo desinvestidor de desejo -- sendo Estado sem sê-lo propriamente -- não, isso é um legítimo papel o teológico-político. Mas não é que o teológico-político seja regra, seja  a realidade catastrófica de, por exemplo, uma República Democrática na qual Sarney ainda resta, ele está atravessado por uma série de fatores e resistências que, de fora, desconfirma a racionalidade soberana. Isso está em toda parte, inclusive posto para o catolicismo. Sem essa resistência, haveria crítica ao acobertamento de práticas pedófilas na Igreja, ou a necessidade de reconhecer os pobres nem que seja para adestra-los? 

A aparente ambivalência católica frente às ditaduras -- uma eventual oposição aqui ou a vergonha de ter feito, ou ser acusado de ter feito parte, acolá versus o apoio às rupturas miraculosas dos golpes -- explica-se por uma questão mal-resolvida de sua metafísica. A bem da verdade, o totalitarismo como o conhecemos é católico sem sê-lo, pois não é fruto da teologia universalista, embora, seja, terrenamente (historicamente), uma doutrina advinda da tradição e da prática hierárquica católica na Europa. Entre o universalismo e o totalitarismo existe uma diferença inconciliável; enquanto o primeiro advoga a validade incondicional [e prévia] de (alg)um verbo  no segundo há o verbo que faz valer. A Lei universal contra a Decisão total. Schmitt, de tão católico torna-se o menos católico entre os católicos ao voltar a Platão ignorando o neoplatonismo, produzindo, assim, uma inversão ontológica da função do verbo na teologia.

Em outras palavras, supondo que isso fosse um debate numa redação, pela perspectiva do universalismo discutiríamos qual fato jornalístico merece estar na manchete no jornal de amanhã, enquanto pelo totalitarismo sabemos que o que for escolhido como manchete será, portanto - a decisão sustenta a legitimidade e não contrário, portanto. Um universalismo dependeria, antes de mais nada, de uma ordem prévia e, para tanto, de uma ordem espaço-temporal na qual o tempo fosse ente real e o espaço estivesse junto com ela e apartado das categorias. Deus como interventor ou como relojoeiro sempre foi uma discussão tão importante quanto a velha discussão entre graça e obra.

A eventual impossibilidade do universal diante da contingência da realidade, exposta como ferida, abre espaço para dois desdobramentos possíveis: (i) o da resolução do caos por uma ordem transcendental unitária que opera a posteriori, resolvendo as pretensões em decisões baseadas na fidelidade ideal e (ii) o amor pelos infinitos modos, o encontro do caos que o contempla não como distopia, mas como maravilha múltipla e, ainda, cuja forma de não fazer as diferenças tornarem-se buracos negros é conceber o que há de comum entre elas. O totalitarismo, a pretensão de todo, contra a imanência.

O catolicismo não se resume ao flerte com o totalitário para evitar o caos, nem à dogmática do universal,  uma vez que ele, na prática, também contempla esse comunismo -- e a teologia da libertação, ironicamente, foi menos universalista (tampouco totalitária) do que, em grande parte, o movimento comunista internacional durante o século 20º, que oscilou entre o universal (como na Itália de Berlinguer) e o totalitário por reação (como em Stalin ou Mao). Em tantos momentos, a teologia da libertação sequer foi teológica e mereceu, de fato, a acusação de comunista, mesmo que o comunismo não possa ser ontologicamente uma acusação.  História, enfim, prega peças. Ainda que no limite, os membros da TL sejam padres, esses fantásticos seres que sintetizam os rabinos com os sábios romanos -- a dívida infinita e o monopólio do conhecimento da essência oculta das coisas. 

Essa ditadura, o espectro que assombra aqui-agora a América Latina, é fruto desse totalitarismo ontológico: foi a hora e a vez na qual viu-se que as pretensões várias, expressas na forma da luta de classes, provaram que não havia ordem prévia que ancorasse tudo -- que a Lei posta desde a colonização não era real, mas real como desejo que fosse aquilo mesmo --, mas que essa ordem ancoradora era nada mais do que o desejo de ver as coisas ancoradas -- como sempre estiveram --, o que poderia tomar forma pela ação de destruição criativa: o golpe de Estado. 

No universalismo -- no catolicismo por tabela -- Deus não está no Mundo, está acima, antes e a despeito dele. No fascismo, ele está  no mundo e a descoberta (chocante) disso nos obrigaria a representar Deus e fazer valer o Plano -- o fascismo é o choque do católico diante de uma constatação de impossibilidade do universal, portanto, nada mais "ateu" no sentido que um padre usaria o termo. Para Espinosa, a quem doía tanto a acusação de ateu -- como Marx, que via o ateísmo como uma questão incipiente --, Deus é e está no mundo-- e está tudo resolvido pelo amor, não um amor incondicional e sumamente válido, mas um amor imanente ao ser capaz de fazer corpos, modos finitos e diferentes entre si, comungarem -- e aí um modelo capaz de dar conta a uma democracia absoluta.

Planos teológicos e/ou ontológicos são, entretanto, respostas abstratas e complexas à questões, problemas, que nascem, por sua natureza, da política. No fundo, há a multiplicidade de homens vivendo, para seu azar, em grupo, rodeados de todas as suas pretensões; mais do que uma luta pela sobrevivência, a história humana é marcada pela luta por uma vida melhor, pela liberdade que é, sobretudo, estar isento do pior trabalho (ou do trabalho ele mesmo), da função mais biologicamente extasiante: não há forma de pensar a divisão do trabalho do que, menos do que o prodígio humano da especialização, como a luta para empurrar o que há de pior para o outro (como poucos marxistas analíticos discordariam).

Na ordem de coisas latino-americanas, a Lei Universal não é o que, de forma ideal, justo e objetivamente demonstrável. A relação de sujeição não deixa de ser universalizável, uma vez que o desejo do dominado é pode ser o de dominar e, assim, ele próprio é capaz de aceitar a dominação à qual é submetido. Não é questão de estar na pele do outro, ou saber o que é estar na pele do outro, pois muitas vezes assentimos com a dominação mesmo que ela se aplaque sobre nossa própria pele. O choque diante da transformação desse estado de coisa, a desconfirmação da ordem que vinha desde os tempos da colonização muda tudo. A ordem não está dada é, pois, preciso garanti-la, nem que seja miraculosamente.

A perplexidade trazida pelos novos tempos, os novos costumes, as novas relações sociais perturbou ou derrogou a ordem -- talvez pior, apresentou a possibilidade de que a ordem não é objetiva, mas uma construção subjetiva e complexa, à qual está sujeita às decisões e interferências políticas. A Igreja, em sua existência terrena e humana, não deixou de estar sujeita ao abalo formidável nas suas convicções e foi do pior ao melhor, retirada do seu próprio centro -- embora do seu conservadorismo culpado ao seu libertarianismo reticente, as formas abstratas e dispositivas do pensar e agir teológico, além do culto ao mistério da escassez sejam uma constante. 

Ditaduras, como as que vimos por aqui, são formas de manter uma ordem injusta, uma sujeição perfeita que pôs certos grupos numa zona de conforto às custas do sacrifício, até desnecessário mesmo para esse fim, de negros, nativos e brancos pobres. Ilustres cidadãos brancos da América Latina só começaram a morrer torturados mesmo -- não em guerras, mas na situação de seres matáveis -- durante esse ciclo ditatorial, pois só aí parte desses cidadãos se juntou, em maior escala, à luta de negros e nativos contra a opressão -- devieram negros e índios, logo, morreram e se tornaram matáveis como tais.

A luta, mais do que política, no sentido de pensar por dentro do Estado contra o Estado, por dentro do capitalismo e contra o capitalismo, é pensar uma saída econômica e ecológica -- a lei e o verbo da Casa que  compartilhamos -- que dê conta de dar vida à essa saída política, que dê carne para que essa democracia possa ser corpo e não vento: o problema prático é resolver como distribuir o produto e a produção, como fazer os fluxos fluírem sem a interdição entre produção e consumo. Como dar suporte à democracia política, desfazendo o mistério: na multiplicação não há milagre, não há peixes de menos nem para todos, mas o mar está aberto.


sábado, 16 de março de 2013

O Papa Francisco e a Ofensiva contra a América Latina

Loucura Sagrada 



Sonhei que o Papa enlouquecia



E ele mesmo ateava fogo ao Vaticano

E à Basílica de São Pedro.

Loucura sagrada!

Porque Deus atiçava o fogo que os

Bombeiros, em vão, tentavam extinguir.

O Papa, louco, saia pelas ruas de Roma

Dizendo adeus aos embaixadores

Credenciados junto a ele

Jogando a Tiara ao Tibre.

Espalhando pelos pobres, todos,

O dinheiro do banco do Vaticano.

Que vergonha para os cristãos!

Para que um Papa viva o Evangelho

Temos que imaginá-lo em plena loucura


(Dom Helder Câmara)

A escolha do cardeal Bergoglio como papa Francisco I é um marco que vai para além do fato dele ser o primeiro não-europeu em mais de um milênio -- e o primeiro jesuíta -- a ocupar o trono de pontífice romano. Sua escolha vai mais além até do significado peculiar que representa na continuidade da cruzada internacionalista neoliberal da Igreja -- na esteira de Wojtyla e Ratzinger, cujas indicações marcaram uma gradual expansão para além da Itália. Trata-se de um marco singular sobretudo porque, por meio de sua aclamação, a Igreja reconhece a América Latina, onde estão a maior parte de seus fiéis, como fronteira final e, ao mesmo tempo, seu refúgio existencial. 

Se com Wojtyla o internacionalismo católico vinha do Leste para afirmar o Oeste, agora, ele se põe ao Sul para defender e salvaguardar o Norte. Sob Ratzinger, havia a preocupação de reevangelizar a Europa, de centrar os esforços da Igreja numa Europa extra-italiana, mas isso não surtiu lá muito efeito. Enquanto a Igreja se preocupava com a Europa e os Estados Unidos voltavam-se para o Oriente Médio, a América Latina via suas minorias usarem os mecanismos da (limitada) democracia representativa contra quem os inventou: mesmo depois dos ciclos ditatoriais militares e a distensão pela pax neoliberal, ainda havia resistência e luta. A história continuou viva e a América Latina foi o maior laboratório de experiências políticas da última década.

O cardeal Bergoglio esteve presente em todos esses ciclos. Seus silêncios e intervenções formam a cacofonia do discurso da dominação na América Latina nas últimas décadas. Ter se calado em relação à ditadura local enquanto gritava para enquadrar a Companhia de Jesus --  tanto que acabou suspeito de participação em episódios bisonhos de desaparecimentos durante o regime militar argentino -- ou, também, sua mudez com Menem e sua histeria contra o casal Kirchner -- sobretudo sua investida estridente contra o casamento gay na Argentina -- são interessantes e relevadores contrastes.

Bergoglio foi o mais papista entre os jesuítas, tanto que virou papa -- e Bergoglio é, hoje, o mais europeu dos latino-americanos. Sua arritmia atenta para uma aritmética moderna de indignação seletiva -- e muito bem calculada. Sua presença no trono de Pedro é uma reação política à liberação reformista latino-americana: em verdade, uma nova contrarreforma. Se a Igreja se voltou contra o Leste Europeu, tanto menos por democracia -- coisa com a qual jamais compactou, platônica que é -- e mais por outros interesses, agora o alvo da vez parecem ser os governos democrático-populares latino-americanos.

Enquanto a multidão que se mobiliza em torno do legado de Chávez na Venezuela é, em grande parte, católica, a hierarquia de sua Igreja é visceralmente antichavista -- a ponto de ter participado do golpe de 2002 como não deixa de ser recorrente na nova onda de golpes brancos que assolam governos populares: em Honduras e no Paraguai, onde a participação do clero foi decisiva. Francisco I tem uma importância geopolítica central para o Vaticano, portanto.

Outro ponto é a captura da potência produtiva dos pobres. Depois de décadas sob o discurso da ortodoxia marxista, o quadro mudou com forças populares antineoliberais que pensam para além da racionalidade industrial e do fetiche proletarista: a esquerda se abriu para os pobres, reconheceu sua dimensão produtiva e governou para o povão ou, até mesmo, com o povão. 

O novo papa, ao assumir um discurso generalista e abstrato pelos pobres, que coloca a caridade -- e a carência -- no lugar da catalisação do desejo de viver, emprega um meio, poderoso, de adestrar e fazer novamente dóceis quem se levantou depois de séculos de submissão. A estética da resignação e da renúncia se afirma sobre a vida. 

Ainda é incerta a influência que Francisco I poderá ter sobre o Brasil. E isso talvez se deva aos motivos errados, dentre eles o ufanismo anti-argentino que domina do discurso futebolístico às elocubrações dos setores conservadores -- que, em tese, deveriam apoia-lo. Para a América Hispânica, no entanto, ele será um contraponto permanente e poderoso. E chega a ser curioso a ascensão desse papa, ainda mais em uma época em que tantos líderes locais vieram da resistência às ditaduras -- e testemunharam pela causa social com o flagelo do próprio corpo -- ao contrário do novo líder católico.

Francisco pode ser o santo de Assis -- que falava com os animais e pregava o amor aos pobres -- quanto o Xavier, jesuíta colonizador dos confins do Globo: e, como ele, os jesuítas protagonizaram a dialética da colonização latino-americana; de um lado havia os colonizadores laicos (como os bandeirantes) fazendo dos nativos objetos a serviço da metrópole, enquanto a Companhia de Jesus seguia nas clareiras abertas pelos primeiros fazendo dos índios su(b)jeitos da Cristandade. 

Os jesuítas faziam dos índios sujeitos: eles eram postos sob a Lei da Cristandade, embora fossem assim submetidos enquanto gente, e não como coisa, o que abria uma linha de fuga em meio ao paradoxo. E os jesuítas tornavam-se, assim, perigosos. Mas jamais romperam com a Igreja. 

Figuras como Bergoglio são esses ícones do lastro fiduciário que sempre houve para com o papa, unindo o (aparentemente) irascível e insubmisso da Companhia de Jesus com a hierarquia celeste. Mas Bergoglio particularmente talvez tenha transposto uma linha vital, na ditadura pela qual passou seu país, para ter se tornado tão confiável. O tensionamento entre o biopolítico e o bipoder na Terra do Sol chega, portanto, em um nível altíssimo.





terça-feira, 12 de março de 2013

Marco Feliciano, os Direitos Humanos e 2014 Logo Ali

Semana passada, assistimos atônitos ao episódio que culminou com a eleição do deputado Pastor Marco Feliciano (PSC) para, vejam só, a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. A questão tem sido colocada nos termos de uma guerra santa entre evangélicos e defensores dos direitos humanos, o que é equivocado. O problema de Feliciano não é que ele seja evangélico, mas sim o fato de ter feito declarações homofóbicas e racistas. Fazer a vinculação automática entre evangélico e preconceituoso é, também, preconceito.

Marco Feliciano fala por si, e apenas por si, mesmo quando tenta falar em nome dos evangélicos. Responder aos evangélicos quando se busca rebater algum absurdo dito por Feliciano é, por tabela, lhe conferir a legitimidade que ele sonha em ter, mas não tem. Tanto isso é verdade que setores evangélicos já se levantaram contra sua nomeação. Um debate possível entre o papel político dos evangélicos diante das liberdades -- coletivas e individuais -- não está posto aqui. O que está posto é a disputa eleitoral de 2014.

Portanto, como sempre foi em matéria de política, é preciso olhar além das máscaras e da encenação: o que permitiu a ascensão de Marco Feliciano, e sua pequena legenda, à presidência dessa comissão? Isso certamente não se limita à realpolitik do Planalto, que preteriu uma comissão que o PT sempre controlou, ou de partidos governistas que rifaram cadeiras suas e chega na própria esperteza da oposição, sobretudo o PSDB, que cedeu sim  cadeiras suas naquela comissão ao PSC.

O que a oposição ganhou com isso? Fazer os defensores dos direitos humanos que apoiam o governo do PT colidirem com a base evangélica do mesmo (ou mesmo com o eleitorado evangélico em sentido amplo). E Dilma, que ignorou o peso simbólico da cessão da comissão, agora dorme com esse barulho. Certamente, a presidenta desconsiderou esse peso, pensando apenas no pequeno peso concreto que, infelizmente, a comissão de direitos humanos daquela Casa tem. Mas peso real não é apenas peso concreto, é também o peso total, a capacidade de um discurso afetar algo.

Nesse espetáculo de som e fúria, o PSC e Feliciano são mais oportunos peões do que qualquer outra coisa. Eles são partes insustentavelmente leves da híbrida máquina do governo que, agora, tornam-se pivôs de uma tática de produção de pequenos curto-circuitos. 

Com isso, vemos alguns paradoxos do Brasil contemporâneo. O fenômeno evangélico tem uma poderosa expressão política na nossa vida com, quase sempre, uma agenda política e social conservadora. Não há, ao nosso ver, "bancada evangélica", existe uma bancada direitista que se assenta em um discurso evangélico ou filo-evangélico -- como, por exemplo, o católico Russomanno.

Como bem colocou Senshô, num post recente, a esquerda tem sim o que aprender com os evangélicos. E isso não é separar forma de matéria, mas entender que é preciso antropofagia e hibridismos para sobreviver e resistir. Do mesmo modo que incorporar o funcionamento das pastorais católicas foi, sem dúvida alguma, fundamental para a elaboração de uma esquerda pós-ditadura -- e pós-Partidão --, adaptar-se à nova realidade urbana e à nova composição de classe brasileira demanda observar, e considerar, os evangélicos.

Aliás, convém ir mais além na polêmica e também dimensionar o discurso dos direitos humanos -- que está bem longe de ser tão laico e novo quanto se supõe. Para uma esquerda nova, os direitos humanos têm uma importância imediata -- mas tática! -- no enfrentamento da violência mais direta perpetrada contra os oprimidos. Mas eles não são, nem pode ser, seu projeto estratégico como nos lembra Lucas Portela.

No mundo dos direitos humanos, a suposta inversão da relação vertical entre Estado e "ser humano", se desdobra em outro arranjo transcendental, espraiado internacionalmente: é uma nova ordem teológico-política, que dá um direito (um crédito) para o reivindicante, estabelecendo um dever para certo Estado, mas, também, gerando um dever para o agraciado. Ele ganha o direito por sua condição humana, mas resta obrigado pois, ao entrar, no esquema encontra-se envolvido pelo nexo de deveres correspondente -- e, em último caso, de obediência à ordem.

Por exemplo, o homossexual que recebe -- o justo e defendido por este blog -- direito ao matrimônio perde sua liberdade originária. Terá de comportar como os "demais" e ser mais um "típico homem médio", cuja existência formal e abstrata passará a admitir também o homossexual, reduzido a tipo, como uma de suas hipóteses de incidência. Não é o kitsch que acabou, mas seu cardápio que se tornou mais amplo.

Então, a defesa do casamento gay só pode ser compreendida como a defesa da liberação do amor, não da universalização do familismo. Do mesmo modo que defendemos salários maiores não para a manutenção da opressiva condição de trabalhador, mas para que ele tenha forças para recusar o trabalho. Mas o mesmo esforço, sem uma uma perspectiva histórica, pode resultar em mais familismo e num trabalhismo qualquer.

Do modo que o "humano" dos "direitos" em questão sempre será o que juridicamente for reconhecido como tal. E como forma jurídica, tratar-se-á sempre de abstração ideal. Longe de ser uma boa saída para armadilha da suspensão de direitos por desnacionalização como no fascismo. É ingênuo pensar, "falamos agora de humanos e não mais de alemães, russos ou americanos!", uma vez que humano está posto de uma maneira tão formal que se equipara à vacuosa "nacionalidade".

O "é ou não alemão?" passa a ser substituído por "é ou não humano?" como, na prática, se faz nos campos de concentração para acusados de terrorismo que Washington mantém pelo mundo. Por isso, lá se vão décadas do universalismo dos direitos humanos e nada. É nacional e é humano, nesses termos, quem o poder soberano diz que é.

Em outras palavras, essa pequena peça pregada mostra duas coisas: (1) O desprezo concretista do Planalto e a maneira como parte da esquerda superestima o discurso dos direitos humanos são, admitamos, as faces da mesma moeda, comportamentos ingênuos que abrem flancos para a oposição neoliberal, isto é a candidatura Aécio 2014; (2) O antagonista específico é Feliciano, é ele quem precisa ser removido por ser racista e homófobo, mas, antes de mais nada, o antagonista é o fascismo ontológico que cria uma acusação a todos evangélicos (o que só é possível pelo fato de acalentarmos uma concepção universalista de mundo...).


quinta-feira, 7 de março de 2013

Hugo Chávez, Libertador da América

Maré Vermelha se despede Chávez em Caracas
Hugo Rafael Chávez Frias, presidente constitucional da Venezuela e libertador da América faleceu há poucos dias. Ele deixa como legado político a eliminação do analfabetismo em seu país, uma inclusão ímpar no sistema universitário, a redução dos níveis de desigualdade social a patamares inacreditáveis para um país latino-americano, a redução da pobreza, um processo político vivo e em curso etc. O mais importante, no entanto, é outra coisa: o ódio que ele despertou naqueles setores que caso não nos odeiem, quer dizer que ou somos inofensivos ou idiotas úteis.

Já falamos bastante sobre Chávez e o Chavismo em Janeiro, quando a situação médica dele e, por tabela, a situação política venezuelana se agravavam. O recorte que interessa aqui  e agora é exatamente o desfecho do parágrafo anterior: sem mais universalismos, o Chavismo está fora da racionalidade do consenso e do amor visto como permanente falta, logo, fator de sujeição permanente e paranoica ao olhar exterior; a melhoria das condições de vida, dessa forma, deixa de ser item (neg)ociável; agradar a todos deixa de ser diretriz.  

A social-democracia europeia e, inclusive, nós mesmos no Brasil, precisamos dessa autocrítica. A rigor, quase todos os principais políticos, e movimentos, do Brasil são de esquerda, embora falte de esquerda por toda parte.  A esquerda que pretende agradar a todos, buscar uma validação universal à determinação de melhoria de vida dos outros, perde-se na indiferença porque não há um modo real de mover-se sem atritos. 

Não é que Chávez tenha, ao seu modo, simplesmente despertado amor e ódio, mas que não há como deflagrar a amorosidade suficiente para deflagrar mudanças sem despertar ódio. Não é preciso, por certo, odiar, mas admitir que ser odiado é bom, sobretudo dependendo de quem te odeia. Não é uma questão de mera probabilidade, de que é possível ser odiado por promover transformações sociais, mas sim que é desejável ser odiado pelo (ex)opressor.

A potência do Chavismo, esse processo imenso que jamais aceitou a apatia ou reproduziu indiferença, está expresso na fuga à vedação que Napoleão impôs à Revolução (como bem observe Antonio Negri): fazê-la cessar mediante a implementação de um contrato, seus deveres e culpas, coisa que a reduziria a mero mito fundante da ordem (de sempre). O Estado voltaria sob nova égide, se é que um dia se dissipou. A quantidade de plebiscitos, votações e consultas na Venezuela mantiveram a multidão em movimento durante os últimos 14 anos, contradizendo a tendência à termidorização num ciclo de intensa constituição de direitos. 

As movimentações e a intensa comoção na Venezuela, às vésperas do pleito que ocorrerá daqui a 30 dias, mostram que uma novo país já nasceu. Não é possível mais apagar isso. A Venezuela, e a América Latina, se encontra em um ponto no qual não é mais possível voltar -- como enfatizou o Presidente Lula, na coluna que escreve no New York Times. O resultado dos 14 anos de Chavismo é uma Venezuela que existe no mapa, não pela beligerância ou o ódio a outras gentes, mas pela afirmação de uma cultura e uma história dispostos a abraçar (e se deixar abraçar por) toda a humanidade.





terça-feira, 5 de março de 2013

Yoani e o Triunfo da Sociedade do Espetáculo, por Luis Henrique Mello


Yoani recebe a hospitalidade do Deputado Bolsonaro
Em artigo exclusivo para O Descurvo, Luis Henrique Mello discorre, debordianamente, sobre a visita de Yoani Sánchez como caso exemplar do triunfo da sociedade espetáculo: nossa vida  comum imprensada entre a doxa e a representação teatral.

Os sábios perceberam e não disseram nada. Os grandes não perceberam. Os pequenos falaram. E muito. Porque não há, de fato, nada substancial a acrescentar ao que Guy Debord já tinha elaborado no longínquo ano de 1967 em sua seminal obra que trata das relações de poder no contexto da cultura de massas, da imagem, da mídia - a Sociedade do Espetáculo.

A recente visita de Yoani Sánchez no Brasil despertou amores e ódios. Ela não é o que é, ela representa algo muito maior que ela. Recebeu tomates e ovações. Apareceu ao lado de nomes importantes da cena política nacional, cujo clímax chegou à patética visita ao Congresso Nacional, como se ela fosse alguma diplomata ou embaixadora de Cuba. O Espetáculo a transformou em uma santidade.

Chegamos aos pontos principais da obra de Guy Debord:

A alienação espetacular.

Pertencentes à Sociedade do Espetáculo, já não vemos mais a realidade com nossos próprios olhos, mas com os olhos dos outros. Yoani subitamente transforma-se em nossos olhos.

A mercadoria como espetáculo.

Yoani começou seu blog em 2007. Poucos meses depois já era matéria de capa no Washington Post. É um produto, uma mercadoria, que já contava com uma boa campanha de marketing desde o princípio.

O triunfo da aparência.

Temos uma figura frágil, delicada, simpática, sorridente. Isso nos faz apegar emocionalmente a Yoani e digerir a imagem de um Davi contra Golias.

O tempo e o espaço espetaculares.

O maior paradoxo disso tudo é que temos uma 'perigosa dissidente' aqui no Brasil falando o que bem entende ao mesmo tempo em que reclama que não há liberdade de expressão nem de movimento em seu país. Ficamos presos à imagem de um imenso Gulag soviético da ilha caribenha.

A cultura e a ideologia do espetáculo.

Impressões cotidianas, crônicas, se transformam em 'jornalismo' tão somente porque Yoani é colunista do El País e do Estado de São Paulo. E porque é cubana. O problema não é quem protesta, mas o objeto do protesto - assim temos manifestantes (digo, 'terroristas') palestinos mortos, estudantes gregos apanhando feio da polícia e tendo suas fotos alteradas no Photoshop para esconder as marcas, integrantes de uma banda punk russa presa, e uma blogueira cubana à luz dos holofotes.

Enfim, se pensarmos bem, o século XXI é corpo constituinte do Espetáculo: a queda do World Trade Center? Confere. A guerra contra o terror? Confere. O julgamento de Saddam Hussein? Confere. O Nobel da Paz para Barack Obama? Confere. O assassinato de Osama Bin Laden? Confere. A Ação Penal 470, vulgo Mensalão? Confere.

Agora vemos a Yoani viajando pelo mundo com um megafone na mão. Isso não tem absolutamente nada a ver com 'liberdade de expressão', 'democracia', ou o que venha: tudo isso é tão somente a cristalização da Sociedade do Espetáculo. Porque quem faz turnê mundial são super-grupos de rock e quem aplaude ou vaia é platéia.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Os Primeiros Dias de Haddad, a Metrópole.

Fernando Haddad assumiu a prefeitura de São Paulo no início deste ano. Sua eleição, ela mesma, foi decorrência de vários fatores, dentro e fora do PT, mas podemos citar dois fundamentais: Haddad ganhou a eleição por demonstrar o que quão vergonhoso e intolerável é a separação de São Paulo em duas -- uma central, rica e integrada ao mundo, a outra, periférica, pobre e isolada -- e, até mais importante do que isso, que a metrópole bandeirante só se tornará próspera novamente se resolver assumir sua brasilidade. Mais do que a conquista de uma capital, a vitória de Haddad também representa uma luz no fim do túnel da esquerda nacional, uma vez que o jovem prefeito paulistano é das raras cabeças a conseguir articular solidez intelectual com fluidez política.

Depois do agito fundante do governo do PT, tudo pareceu cair, das razões da escolha de Dilma às razões que Dilma escolhe, no culto ao gerencialismo, à técnica e à neutralidade administrativa. Agora seria a hora e a vez de quem faz as coisas acontecerem, objetiva e silenciosamente, sem muita discussão. Tudo com uma pegada popular e trabalhista. Mas Haddad é uma figura diferente. Capaz de raciocinar para além do cotidiano da administração pública, Haddad não deixa de ser pragmático, mas nem por isso deixa de se assumir de esquerda ou fazer uso do léxico marxista -- e não ter medo de falar em "recorte de classe" quando analisa a situação do Centro. O prefeito paulistano, enfim, ascende como a possibilidade de um futuro petista não resumido a ser mero mediador estatal-trabalhista da questão social. 

Não são poucos os desafios que cercaram Haddad hoje: manter o equilíbrio dentro do PT municipal e dentro do PT nacional -- e entre ambos --, compor de uma forma aceitável com a base aliada, dialogar com os movimentos sociais e se relacionar com a iniciativa privada sem se deixar engolir por ela -- ou mesmo tocar os projetos que São Paulo precisa sem se dobrar aos ditames dos credores da enorme dívida (infinita?) pública paulistana. Agora, passados dois meses de sua eleição, o que, efetivamente, aconteceu em São Paulo? É uma pergunta que importa muito, não só pela gravidade da crise em que se encontra a maior metrópole do país, mas também pelos rumos de um projeto de esquerda no país.

Basicamente, o centro de gravidade da conversa é o próprio Centro da cidade, o distrito da Santa Ifigênia, único lugar do centro expandido no qual o atual prefeito paulistano ficou à frente de José Serra. Haddad pôs de lado o projeto Nova Luz de Kassab, que sequer saiu do papel, mas enfrentou forte resistência dos movimentos de moradia por prever uma reconstrução privatizante do Centro -- tanto que acabou interrompido pela própria justiça estadual. Agora, o novo prefeito empreenderá seu próprio (e ambicioso) plano de revitalização da região.

Haddad tem clareza sobre o quer para o Centro e isso é fundamental, conforme expôs em uma entrevista recente: o problema (crônico, gigantesco, aviltante) de congestionamento do trânsito em São Paulo não é meramente viário ou de transporte público, mas sobretudo de habitação, uma vez que os trabalhadores moram a dezenas de quilômetros de distância de onde trabalham (relação centro expandido-periferia), o que resulta em uma sobrecarga das vias. Tudo isso, dentro de um contexto no qual o centro da cidade se encontra desabitado e, em muitos casos, inabitável.

A sobrecarga em questão é tanto mais pelo excesso de deslocamento e não exatamente pela falta de vias ou de transporte. E isso não é questão de moradia, mas de habitação: é preciso que o Centro tenha vida. E nada disso está desvinculado de um "recorte de classe" como o próprio Haddad lembrou. O início de um ciclo virtuoso paulistano demanda a resolução da questão do Centro, isto é, transformando de ponto zero da implosão urbana local em centro irradiador de vida.

Há, no entanto, nuances importantes quanto à execução disso. E resta pouca dúvida de que Haddad prescindirá do apoio do governo Federal e mesmo do governo estadual -- o próprio Alckmin, em busca da reeleiçãom está pouco preocupado em comprar brigas com o Planalto e irá colaborar com a reforma --, uma vez que ele assume uma Prefeitura praticamente falida. A proposta de iniciar a reforma do Centro via Parcerias Público-Privadas (PPP's) não parece, à luz do tesouro municipal tão onerado, a saída mais barata. Porque PPP's exigem um aporte de dinheiro estatal antes de mais nada -- o que foi colocado, recentemente,  pela urbanista Raquel Rolnik em seu blog, pondo dúvidas sobre a reforma do Centro na realidade pós-Nova Luz via PPP's, embora ela mesma tenha se mostrado favorável às linhas gerais do plano de reforma urbana do Centro.

Do outro lado, ainda na habitação, Haddad deu um golpe de mestre em Maluf e no PP, uma aliança que só lhe deu dor de cabeça até agora (em troca de alguns minutos a mais no horário eleitoral gratuito): ele nomeou para a pasta de Habitação um membro do PP, mas, ao mesmo tempo, desidratou a secretaria, ao congelar 98% de sua receita, além de ter passado suas principais atribuições para a Secretaria de Controle Urbano -- que está nas mãos de Paula Motta, arquiteta aliada do deputado federal Paulo Teixeira, um dos maiores articuladores de sua candidatura e das figuras mais ativas da esquerda petista.

Além disso, Haddad promoveu uma reforma importante e pouco observada. As subprefeituras perderam a função política -- ou mesmo militaresca -- que tinham há pouco, com Kassab, para ganhar um aspecto "técnico": arquitetos, urbanistas e engenheiros de carreira foram nomeados subprefeitos, com exceção do centro (Sé), o que marca uma tentativa de dar alguma função prática para a instituição da subprefeitura, um desafio à parte desde sempre. É claro, restam dúvidas importantes quanto à decisão de Haddad.

A ideia é colocar conhecedores da física urbanística nas subprefeituras, deixando a estratégica política centralizada na própria Prefeitura. Pode ser que, assim, elas finalmente cumpram sua função -- e aproximem a administração pública dos cidadãos -- ou isso resulte em uma nova forma de burocratização, não fisiológica por parte de um establishment partidário, mas de arrogados entendedores urbanísticos sobre cidadãos comuns em um caráter local. Tudo vai depender muito das determinações da Prefeitura e do espaço coletivo que ela, nessas determinações, esteja disposta a abrir para formulação de políticas públicas nas subprefeituras -- ou o quanto esteja disposta a vincular essas técnicos a ouvir as demandas cotidianas, sobretudo na periferia.

Some-se isso tudo à revisão de alguns contratos de serviços firmados pela gestão anterior e a relação com Kassab, e o esquema do PSD no município, azedou de vez. Kassab viu o Nova Luz ser jogado na lata do lixo, não conseguiu bancar o nome de ninguém para as subprefeituras e agora tem muitos contratos -- como o de iluminação pública e também de manutenção das bocas de lobo -- na mira da nova gestão. Isso tudo, depois de ter ensaiado um apoio a Haddad -- a contragosto do mesmo --, ter se aliado novamente ao PSDB em virtude da candidatura Serra e ter promovido uma "transição amigável".

Para a Cultura, Haddad trouxe um peso-pesado como o ex-ministro da Cultura de Lula, Juca Ferreira -- que, de cara, já se mostrou aberto ao diálogo, o que é positivo. A área cultural da cidade, sucateada e resumida quase só ao esquema empresarial da Virada, agradece, mas restam dúvidas também: é preciso pensar além da dicotomia entre uma cultura escrava da indústria cultural e uma reforma cultural; qualquer reforma está aberta a formas 2.0 de exploração da produção cultural. As críticas (aqui e aqui) do Passa Palavra ao coletivo da área cultural Fora do Eixo -- e sua presença gradual e constante na nova Secretaria de Cultura -- merecem atenção, por exemplo.

A crise que a metrópole paulistana é gravíssima. Mas foi a força da resistência viva em curso, da luta pela constituição de direitos que elegeu Haddad. E ele terá de honrar essa tradição. Não há luta mais nacional hoje, do que a constituição de São Paulo novamente em um lugar agradável para se viver -- o que exige o deslocamento local para longe dos (recorrentes) arroubos isolacionistas. É preciso mesmo domar mesmo a formidável máquina administrativa que governa o município, sem se deixar escravizar por ela no processo; a incursão de Haddad no comando da metrópole começa mesmo no gabinete, mas não faz ouvidos moucos para as ruas. Seu andamento é (e será), por certo, motivo de atenção ao longo dos próximos anos.





sábado, 2 de março de 2013

A Revolução Nicoleliana

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis protagonizou, há pouco, uma revolução científica copernicana: ele conseguiu, mediante implantes neurais, integrar os cérebros de dois ratos separados por milhares de quilômetros de distância, fazendo-os trabalhar em conjunto numa tarefa para a qual estavam adestrados individualmente. Uma pequena tarefa para dois ratos -- um nos Estados Unidos, na Duke University, outro no centro de pesquisas da brasileiríssima Natal --, um intenso feixe de luz para a humanidade. 

A partir dessa tecnologia é possível conceber perfeitamente desde uma brainet -- uma rede de dados biológica e ligada por laços neurais -- até próteses inteligentes; a fusão homem-máquina chega ao ápice movendo-se na direção da constituição de uma inteligência coletiva e da superação do binarismo próprio à informática (o que cumpre, cá entre nós, uma antevisão deleuziana mesmo sem querer). Enfim, só uma coisa dessas para fazer este humilde blogueiro se mover depois de alguns dias de letargia -- causada pela enxurrada de factoides e más notícias que se tornaram a nossa vida.

E Nicolelis, por si só, já valeria um post. Lembro bem, quando há uns cinco anos atrás, li uma entrevista da Caros Amigos com aquele cientista peculiar e sonhador, que rompia a figura recorrente dos homens da ciência brasileira: se alguém esperava um elitista burocrata da pesquisa, distanciado de qualquer sonho maior, do seu tempo out de sua gente, deu com os burros n'água. Lá estava um homem apaixonado por uma ciência a serviço do homem e do sonho, uma espécie de Santos Dumont do século 21º. Nicolelis, aliás, não é dumontiano apenas por colocar a ciência para além do vazio da técnica moderna, mas também por pensar uma integração homem-máquina à moda de Dumont -- como ele mesmo expõe na entrevista em questão.

Uma coisa que as pessoas esquecem é que Dumont não se matou apenas porque o avião foi usado para a guerra, mas porque isso era apenas um desdobramento do desvirtuamento do conceito de sua invenção; o 14 Bis e suas invenções subsequentes eram operadas não por um manche ou um controle, mas por cordas amarradas ao terno do piloto. O voo humano para Dumont, portanto, não era uma consequência da mediação técnica motorizada, mas sim uma integração do corpo humano a uma extensão mecânica. 

O fundamento ontológico do voo dumontiano residia, empiricamente, num devir-pássaro do homem e não na sujeição da máquina técnica pela máquina homem. Sim, os aviões e jatos contemporâneos são tecnologicamente muito mais avançados do que os inocentes rebentos de Dumont, mas ontologicamente eles são criaturas primárias em vista do 14 Bis. Seus estatutos estão aquém de uma integração verdadeira entre máquina e piloto: nas aeronaves de hoje, há dois, o piloto e máquina, nas de Dumont havia a máquina-piloto imanente. 

De tal sorte, o aprimoramento dos aviões nos termos dumontianos teria levado menos ao jato de guerra, e mesmo menos ao próprio avião, mas sim a um agenciamento satisfatório e geral entre homem e máquina. Próteses sensíveis e inteligentes, uma ergonomia renovada. Algo que só é possível pelo desejo sem limites de Nicolelis em um tempo ingrato: hoje, está na moda ser um cético atolado num niilismo enferrujado, o qual é vendido como erudição. Quem pensa ou faz o contrário é "messiânico". Nicolelis, para o azar dessa gente, é o maior da sua geração e não é nada disso: seja no amor pelo seu Palmeiras -- em coberturas antológicas dos jogos do Palestra pelo twitter -- ou na defesa de uma democracia de verdade, o que exige a aplicação da ciência como instrumento de transformação social.

As reações a Nicolelis vão de acusações estranhas até a má vontade geral da mídia, o que é natural, em se tratando de um cientista assumidamente ateu e de esquerda. Algumas dessas "acusações estranhas" podem ser vistas no recente manifesto "eu apoio a ciência brasileira", de curioso cunho nacionalista, que insinua desonestidade intelecutal de sua parte, o que foi prontamente rebatido, só para depois terminar numa relativização da acusação

Sim, Nicolelis teve a ideia antes de todo mundo e os méritos pelo que aconteceu ontem é dele e de sua equipe em Duke; ter testemunhado a apresentação de um modelo, ainda em desenvolvimento, enquanto ele pesquisava na área há anos não muda isso; dizer que o conhecimento que deu base para tanto ser comum na área (como se algum não fosse) é pueril, como se criar não fosse mixar conhecimentos comuns -- o que nem é exatamente o caso aqui, isto é, tratou-se de uma pesquisa coincidente que não resultou em parceria e, no fim das contas, um dos lados acabou concretizando a hipótese.

Nicolelis esteve longe de ter qualquer apoio fortíssimo do Estado brasileiro -- e a ciência deve ficar além de corporativismos nacionais. O que interessa aqui, sobretudo, é que fez-se inovação científica de uma maneira cientificamente inovadora de pensar a ciência; as criações em questões podem ter aplicações variadas, mas voltam-se para tornar um mundo melhor e dão a chave para tanto.