quinta-feira, 6 de maio de 2010

Análise do Brasileirão 2010

O Campeonato Brasileiro do ano passado tinha três favoritos - Inter, Cruzeiro e São Paulo - que tropeçaram nas suas próprias pernas e, apesar da classificação para a Libertadores, deixaram o título para o Flamengo que, muito embora tenha vencido o Estadual daquele ano, corria por fora da disputa. Acertou a diretoria em manter o técnico Andrade - que ora jaz demitido - e entre os trancos e barrancos rivais, deu, pela primeira na era dos pontos corridos, um carioca. O Palmeiras, que também iniciou como azarão naquela ocasião, foi o time que mais tempo passou na liderança, mas jogou o título pela janela num misto de falta de capacidade de decisão do elenco, crise de dirigência e contratações erradas. A grande surpresa ficou mesmo por conta do Avaí treinado pelo técnico Silas, que terminou o torneio na sexta colocação. O Grêmio Barueri - agora, Grêmio Prudente - surpreendeu ao se manter na Série A. Dos times que ascenderem à Série A em 08, apenas o Santo André foi rebaixado, fazendo companhia para o Náutico - que depois de ano campengando, caiu -, Sport - que por problemas internos caiu - e Coritiba - que não era favorito ao rebaixamento, mas surpreendeu. Assim como no passado, analisarei equipe por equipe, pela ordem de classificação no ano anterior mais os quatro que subiram da Série B ano passado, tentando ser honesto e sem medo de errar.

Flamengo: O Atual campeão fez um Carioca pífio, onde, apesar de ter o melhor elenco, acabou perdendo a final dos dois turnos para o disciplinado Botafogo - na Libertadores, o time está nas quartas, mas faz uma campanha apenas mediana. O time conta com jogadores como Vagner Love, Adriano e Kleberson, estará na parte boa da tabela, mas eu apostaria nele muito mais para brigar por classificação para a Libertores do que para o título.

Inter: Apesar do bom elenco, o time prossegue inconstante como no passado e nem a contratação de Jorge Fossati para treinador mudou isso. A equipe perdeu o gaúcho para o rival Grêmio e oscila na Libertadores, para mim nem briga por Libertadores.

São Paulo: Ricardo Gomes ainda não acertou a mão e não sei se acerterá, apesar do bom elenco, o time não venceu um clássico no ano e nos jogos decisivos tem falhado. Evidentemente, por ter uma estrutura excepcional e pelo já referido elenco, deve brigar por vaga na Libertadores, mas falta muito coisa ainda - padrão de jogo, organização tática etc.

Cruzeiro: Apesar da oscilada que lhe tirou da disputa do título mineiro, a raposa tem elenco e consistência tática suficientes para brigar pelo título brasileiro - seja pelo Adílson que continua no comando da equipe, quanto por jogadores como Kléber, Gilberto e Thiago Ribeiro.

Palmeiras: A situação é dramática, a equipe, paradoxalmente, fez bons clássicos no seu estadual, mas foi horrível contra os pequenos, terminando na vergonhosa 11ª posição. Depois veio a eliminação frustrante na Copa do Brasil. Temos uma (aparentemente) eterna crise política do clube chegando a níveis assustadores, um elenco que não tem química - em que pese não ser, em essência, ruim - e a ansiedade da torcida para voltar a disputar títulos de ponta, o que é um belo ingriediente para o desastre. Ainda que o rebaixamento não possa ser excluído, a hipótese de ficar pelo meio da tabela com um time de garotos parece a mais provável.

Avaí: Depois do bom campeonato do ano passado, o time catarinense deu um enorme trabalho para o Grêmio na Copa do Brasil e de quebra levou seu estadual. O time de Péricles Chamusca novamente deve ficar do lado de cima da tabela.

Atlético-MG: O Galo já tinha um bom time no ano passado e faltou só um pouco mais de equilíbrio para chegar à Libertadores. Com a contratação de Vanderlei Luxemburgo para ser treinador e de jogadores como Muriqui - que vieram a se somar a Diego Tardelli, Ricardinho e Júnior -, o alvinegro levou o Mineiro deste ano e travou dois confrontos eletrizantes contra o Santos na Copa do Brasil - que, a muito custo, resultaram na sua desclassificação. Briga sim pelo título.

Grêmio: Depois da façanha de ter levado o Avaí à sexta colocação do Brasileirão 09, Silas foi parar no Grêmio, onde conquistou o Gauchão e está na semi da Copa do Brasil. Com elenco com jogadores como Douglas, Jonas, Borges e Rochemback, a equipe luta pelo título.

Goiás: Ano passado, o esmeraldino chegou a assustar, mas depois perdeu o fôlego e foi parar no meio da tabela - por motivos que envolvem os reforços que a equipe ganhou no meio do torneio e desestabilizaram o elenco. Neste ano, a equipe foi atropelada tanto no seu estadual quanto na Copa do Brasil e tenta renascer das cinzas com Leão. Briga por vaga na Sul-Americana.

Corinthians: Sofre da maldição do centenário, fez uma campanha ruim no Paulistão e afundou na Libertadores. O elenco atual é fruto daquilo que restou do time campeão da Copa do Brasil e do Paulistão 09 somado a contratações boas que, no entanto, foram realizadas sem critério. Falta ânimo e padrão de jogo e mesmo que o elenco atual seja bom o suficiente para arrancar uma vaguinha na Sul-Americana, ele no máximo corre por fora para chegar à Libertadores 11.

Grêmio Prudente: Outrora Barueri. É um clube estranho, uma espécie de empresa esportiva no estilo americano da coisa que muda até de endereço, tem muita grana e serve para expôr jogadores na Série A. Não vai cair, mas bem que merecia pela artificialidade que é.

Santos: É o melhor elenco do país na atualidade na medida que conta com jogadores como Neymar, Robinho, Ganso, Marquinhos e André, além de contar com o excepcional Dorival Jr., vivendo o melhor momento de sua carreira, no comando técnico. É o favorito ao título, mesmo com as eventuais perdas que poderá sofrer ao longo da disputa.

Vitória: Foi campeão baiano, está na semi da Copa do Brasil e tem um elenco ofensivo, rápido e perigoso. Ao que parece, terá mais sorte este ano do que em 09 e deve ficar entre os 10.

Atlético-PR: Já não é mais o mesmo que era e entra para não cair. Faz uma temporada pífia e deve ficar na parte da tabela mesmo.

Botafogo: É um elenco limitado porém disciplinado. Paradoxalmente, venceu o seu estadual numa verdadeira luta de Davi contra Golias em seus encontros com o Flamengo, mas rodou na Copa do Brasil contra o fraco Santa Cruz de hoje. Em suma, jogando como pequeno, marcando muito e contra-atacando, funciona, mas não passa disso. Deve pegar sua vaguinha na Libertadores mesmo.

Fluminense: No papel tem um bom elenco, um bom treinador, mas não funciona. Periga ir mal mesmo.

Vasco: Subiu, mas não tem elenco para se manter. Vai sofrer para se segurar na Série A.

Guarani: Apesar da tradição, sequer conseguiu chegar à divisão de elite do seu estadual e depende de um milgare para não virar o saco de pancadas da competição.

Ceará: Outro que subiu, mas não encanta, perdeu o estadual e capenga. 

Atlético-GO: Subiu, ganhou o seu estadual e está na semi da Copa do Brasil. De todos os que subiram ano passado, o time de Geninho é aquele que tem mais chances de ficar na Série A, ainda que vá suar a camisa para conseguir isso.

Notas Rápidas sobre o Futebol Nacional

A minha chutometria anda anfinada, dos jogos de ontem, errei apenas quanto a classificação do Palmeiras sobre o Atlético-GO - talvez o coração de torcedor tenha atrapalhado, mas o Palmeiras, depois de um bom jogo no Palestra e um bom primeiro tempo no Serra Dourada, se afundou nos erros e na inconstância desse elenco atual, que desde que foi formado no ano passado, se mostrar incapaz de não paralisar em jogos decisivos. Também pesa a tensão interna decorrente da velha crise de direção do verde, fenômeno que eu venho denunciando há um tempinho já e aparentemente, só se agrava. De resto, Santos e Grêmio se classificaram de uma maneira mais fácil do que eu imaginava e farão a final antecipada; o Vitória que suou mais a camisa do que eu supunha para bater um rebaixável Vasco, pegará o azarão goiano, mas deve chegar à final.

Na Libertadores, prevaleceu o Flamengo sobre um Corinthians que além de não ter aprendido a jogar o torneio sul-americano, ainda cometeu os mesmos erros de todos os grandes no ano do centenário, montando um elenco inchado e sem critério - logo, disfuncional e sem chances para o Brasileirão. O time carioca, apesar da classificação, ainda não demonstrou consistência tática e regularidade técnica que lhe aponte como possível campeão da Libertadores - sequer como finalista -, portanto, ele é azarão sim. O Cruzeiro, apesar dos pesares, me parece o melhor brasileiro no torneio e pega um São Paulo ruim demais. Fica o palpite pessimista quanto ao Inter hoje.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Aniversário de Marx


E como não poderia deixar de passar batido, a melhor análise já feita sobre o velho barba:

Discurso de Friedrich Engels no funeral de Karl Marx

“Em 14 de março, quando faltavam 15 minutos para as 3 horas da tarde, deixou de pensar o maior pensador do presente. Ficou sozinho por escassos dois minutos, e sucedeu de encontramos ele em sua poltrona dormindo serenamente — dessa vez para sempre.
O que o proletariado militante da Europa e da América, o que a ciência histórica perdeu com a perda desse homem é impossível avaliar. Logo evidenciará-se a lacuna que a morte desse formidável espírito abriu.

Assim como Darwin em relação a lei do desenvolvimento dos organismos naturais, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da História humana: o simples fato, escondido sobre crescente manto ideológico, de que os homens reclamam antes de tudo comida, bebida, moradia e vestuário, antes de poderem praticar a política, ciência, arte, religião, etc.; que portanto a produção imediata de víveres e com isso o correspondente estágio econômico de um povo ou de uma época constitui o fundamento a parir do qual as instituições políticas, as instituições jurídicas, a arte e mesmo as noções religiosas do povo em questão se desenvolve, na ordem em elas devem ser explicadas – e não ao contrário como nós até então fazíamos.

Isso não é tudo. Marx descobriu também a lei específica que governa o presente modo de produção capitalista e a sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia iluminaram-se subitamente esses problemas, enquanto que todas as investigações passadas, tanto dos economistas burgueses quanto dos críticos socialistas, perderam-se na obscuridade.
Duas descobertas tais deviam a uma vida bastar. Já é feliz aquele que faz somente uma delas. Mas em cada área isolada que Marx conduzia pesquisa, e estas pesquisas eram feitas em muitas áreas, nunca superficialmente, em cada área, inclusive na matemática, ele fez descobertas singulares.

Tal era o homem de ciência. Mas isso não era nem de perto a metade do homem. A ciência era para Marx um impulso histórico, uma força revolucionária. Por muito que ele podia ficar claramente contente com um novo conhecimento em alguma ciência teórica, cuja utilização prática talvez ainda não se revelasse – um tipo inteiramente diferente de contentamento ele experimentava, quando tratava-se de um conhecimento que exercia imediatamente uma mudança na indústria, e no desenvolvimento histórica em geral. Assim por exemplo ele acompanhava meticulosamente os avanços de pesquisa na área de eletricidade, e recentemente ainda aquelas de Marc Deprez.

Pois Marx era antes de tudo revolucionário. Contribuir, de um ou outro modo, com a queda da sociedade capitalista e de suas instituições estatais, contribuir com a emancipação do moderno proletariado, que primeiramente devia tomar consciência de sua posição e de seus anseios, consciência das condições de sua emancipação – essa era sua verdadeira missão em vida. O conflito era seu elemento. E ele combateu com uma paixão, com uma obstinação, com um êxito, como poucos tiveram. Seu trabalho no ‘Rheinische Zeitung’ (1842), no parisiense ‘Vorwärts’ (1844), no ‘Brüsseler Deutsche Zeitung’ (1847), no ‘Neue Rheinische Zeitung’ (1848-9), no ‘New York Tribune’ (1852-61) – junto com um grande volume de panfletos de luta, trabalho em organização de Paris, Bruxelas e Londres, e por fim a criação da grande Associação Internacional de Trabalhadores coroando o conjunto – em verdade, isso tudo era de novo um resultado que deixaria orgulhoso seu criador, ainda que não tivesse feito mais nada.

E por isso era Marx o mais odiado e mais caluniado homem de seu tempo. Governantes, absolutistas ou republicanos, exilavam-no. Burgueses, conservadores ou ultra-democratas, competiam em caluniar-lhe. Ele desvencilhava-se de tudo isso como se fosse uma teia de aranha, ignorava, só respondia quando era máxima a necessidade. E ele faleceu reverenciado, amado, pranteado por milhões de companheiros trabalhadores revolucionários – das minas da Sibéria, em toda parte da Europa e América, até a Califórnia – e eu me atrevo a dizer: ainda que ele tenha tido vários adversários, dificilmente teve algum inimigo pessoal.

Seu nome atravessará os séculos, bem como sua obra!”

Reflexões Tarkovskianas

Tarkovsky: Eu estou pasmo com o baixo padrão. Eu não compreendo. Por um lado, eu achei tudo altamente profissional, por outro lado, tudo era totalmente comercial. Por exemplo, trataram de um assunto que era limitado para ser do interesse de todos: o problema do movimento da classe operária, ou o relacionamento entre a classe operária e outros segmentos da população. E toda ela foi feita com tal olho às audiências, com tal desejo de agradar [grifo nosso] tive realmente a impressão que todas as películas tinham sido editadas por uma e para a mesma pessoa. Mas na película, a coisa mais importante é estar ciente do ritmo interno. Assim, o que poderia ser individual teve o lugar comum tornado vulgar. É extraordinário. Mesmo a película de Fellini sobre Roma, a película mais interessante de todas, mostrou-se fora do festival apropriado. É uma regra do jogo, dar-se combinado com a audiência; o ritmo editorial é assim, que com lisura faz-se sentir ofendido em nome de Fellini. Eu recordo planos seus, onde os tiros, o comprimento dos tiros e seu ritmo foram amarrados ao estado interno do caráter e do autor. Mas este retrato foi feito com um olho para o que está agradando a audiência. Eu acho aquilo repugnante. De qualquer modo, a película não nos diz nada de novo sobre Fellini ou sobre sua vida.

Trecho de um entrevista de Tarkovsky para Zbigniew Podgórzec, realizada em 1973, quando o cineasta russo, uma dos maiores gênios da história do cinema, tece suas considerações sobre melhor do cinema ocidental, exposto em Cannes junto com o seu Solyaris. Com efeito, a avaliação de Tarkovsky transcende o Cinema e revela dois aspectos fundamentais da ideologia burguesa que atingem, hoje, seu ponto máximo: (I) A afirmação do discurso por meio de sua legitimação formal, artifício que sem a proclamação de um universal ideal seria simplesmente possível - e está presente, até mesmo, em discursos contra-hegemônicos (II) a construção de uma identidade coletiva por meio de uma doutrina individualista tão exarcebada que o resultado que se opera, como não poderia ser diferente, é  a massificação completa da expressão e do pensar - os indivíduos são reduzidos ao indivíduo e a própria individualidade é diluída numa ditadura do coletivo. O filme é feito para o indivíduo que todos devem ser.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sobre a Tortura e Porque Eu Discordo de Maria Rita Kehl

 (imagem retirada daqui)

No dia primeiro de maio, o Estadão publicou um texto da escritora e psicanalista Maria Rita Kehl intitulado "Tortura, por que não?", onde a autora disserta sobre a absurda decisão do STF em relação à revisão de Lei de Anistia e a tortura que continua a existir nos dias de hoje, tudo isso diante de uma posição complacente da sociedade brasileira - tese da qual eu discordo, afinal, esse fenômeno é mais complexo do que isso como eu irei dissertar mais adiante, porque a maneira como as pessoas toleravam a tortura nos anos 60 e 70, e como enxergam isso hoje, são totalmente diferentes porque se dá por causas distintas em momentos distintos, onde o primeiro afeta o segundo, por uma questão de coerência cronológica. Existe um ponto que esse raciocínio fica mais tortuoso:

"Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje [grifo nosso], passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres."

Não, não é a mesma. Isso é uma ficção. Notem, evidentemente o Brasil não é um democracia consolidada, não vivemos um mar de rosas em termos de respeito aos direitos humanos, também tivemos problemas graves durante a Ditadura, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A Ditadura Militar era uma máquina de matar gente, poderia eliminar qualquer um de nós, da forma que quisesse, quando quisesse. Isso não se iguala à Democracia defeituosa do Brasil - há quem acredite que toda democracia é defeituosa por natureza, como Zizek, mas eu discordo, ou talvez simplesmente estejamos coisas diferentes de "democracia" -, cuja capacidade potencial de matar, justamente por ser um acidente, é pequena. Usar dados sobre quantos morriam nos anos da Ditadura e quantos morrem torturados hoje nas delegacias é um problema porque:

(I) Nos anos 60 e 70, as pessoas também morriam torturadas por crimes comuns, mas esses não eram sequer lembrados porque a condição do preso comum, oriundos das classes mais baixas sequer era considerado, considerávamos as torturas aos insurgentes políticos - que vinham grosso modo da burguesia e da pequena-burguesia, talvez por isso hoje nos importemos com presidiários "comuns" sendo torturados e mortos. No entanto, não temos mesmo como auferir quando se torturava mais.
(II) Mesmo que se torture mais hoje, do que antes, as causas são diferentes, o que produz consequências diferentes; se você se baseia em quantas pessoas o Estado brasileiro torturou/tortura para determinar sua nocividade, ao invés de auferir a postura que ele tinha - por tabela, a quantidade de pessoas que ele pode matar -, você está estabelecendo um raciocínio mais ou menos assim: Morreram, em um determinado ano, mais trabalhadores em acidentes em fábricas de pólvora do que nos restaurantes de uma pequena república da Europa, logo, conclui-se que é mais perigoso trabalhar num restaurante do que numa mina de carvão - e a lógica é a mesma tanto num caso como outro porque morrem pessoas em ambas as situações.

Eu quero dizer que não podemos partir das consequências visíveis e postas de um fenômeno para chegar à essência da coisa, mas sim devemos fazer o caminho inverso, buscando investigar a causa do fenômeno para chegarmos aos efeitos, distinguindo as consequências de acidentes para não chegarmos, mesmo que não-intencionalmente, a conclusões como "torturam mais hoje do que na ditadura, logo, estávamos mais seguros na ditadura do que hoje" - ora, cara-pálida, só não morreram mais pessoas torturadas naquele período pela falta de uma reação maior ao regime e não pela ausência de disposição ou capacidade para o Estado matar, diferentemente de hoje, quando o Estado - supostamente - mata mais, apesar de, em potência, ter capacidade menor para fazê-lo. Construir uma simetria falsa em relação a dois momentos históricos distintos, um afetado pelo outro como demonstrado, é um perigo enorme, pois se naturaliza as condições do primeiro caso, o que inadmissivelmente arriscado.

domingo, 2 de maio de 2010

Giro pelo Futebol Nacional

O Santos venceu o principal torneio estadual do país, de forma sofrida, contra a bela equipe do Santo André. Não resta dúvida que o time do Santos é, no papel e na prática, o melhor do país na atualidade, mas contra o time do ABC pesou uma certa falta de seriedade, de frieza, que lhe é patente - e, junto com as inegáveis qualidades do adversário, quase assistimos uma perda de título épica. Em Minas, o Atlético-MG venceu o Ipatinga e irá para uma decisão contra o Santos, na Vila Belmiro, pela Copa do Brasil num dos principais jogos do ano. Dentre os times que restam nas quarta-finais da Copa do Brasil, o Grêmio e o Vitória, apesar das derrotas nos jogos de hoje, sagraram-se campeões em seus respectios estados e prometem para o torneio nacional - e também para a Copa do Brasil. O próprio Atlético-GO foi campeão e enfrentará o Palmeiras no próximo meio de semana com grandes chances de seguir adiante. Em Santa Catarina, o Avaí foi campeão depois de ter sido eliminado pelo Grêmio na Copa do Brasil, mas promete fazer um grande Brasileirão. Em Pernambuco, o Náutico de Gallo venceu novamente o Sport neste ano e está a um empate do título, o que pode ser um grande impulso para o retorno do time à Série A.

Flamengo e Corinthians, as duas maiores torcidas do país, depois de terem fracassado nos seus estaduais, seguem na Libertadores, onde realizarão o jogo da volta das oitavas. O primeiro jogo deu 1x0 para o Flamengo e eu, honestamente, apostaria na classificação do time carioca; muito embora o equilíbrio seja grande, a vantagem de não ter tomado nenhum gol em casa não é de se jogar fora. Coincidência ou não, os demais brasileiros que disputam a Libertadores fracassaram nos seus estaduais, mas pelo menos o Cruzeiro convenceu jogando em casa na ida (vitória por 3x1 sobre o Nacional-URU), enquanto o São Paulo empatou sem gols contra o Universitário-PER - contra quem deve se classificar, ainda que sem jogar um futebol longe de ser brilhante e ainda ter de pegar, muito provavelmente o Cruzeiro nas quartas. Sobre o Inter, que mesmo tendo vencido o Grêmio hoje, perdeu o estadual e ainda tinha sido sapecado por 3x1 pelo Banfield no jogo de ida - e duvido muito que ele se classifique. Seja como for, nenhum brasileiro me parece credenciado para ganhar esse título,

Na Copa do Brasil, creio que o gol do Santos no finalzinho contra o Atlético-MG num Mineirão lotado foi a senha para a sua classificação. Não consigo imaginar uma vitória larga na volta, mas é perfeitamente aceitável imaginar o Peixe vencendo por um gol de diferença na Vila, valendo-se dos dois gols que fez fora para seguir adiante. O Grêmio de Silas, o melhor treinador do futebol brasileiro na atualidade, sapecou o Flu já na ida e deve decidir com tranquilidade na volta, fazendo um jogaço seja com Santos ou com o Galo. O Palmeiras deverá suar a camisa para se classificar contra o Atlético-GO, mas eu acho que dá pelo fato dele não ter tomado um gol dentro de casa. Difícil é a situação do Vasco, que perdeu por 2x0 para o Vitória, campeão baiano, e duvido muito que vire esse jogo - pelo futebol que estão jogando, o baianos podem passar para a final do torneio com certa tranquilidade caso nenhum rival progrida até lá.

 

A Política Externa, PT e PSDB

PT e PSDB são os dois partidos que tem monopolizado, desde 1994, a disputa pela Presidência da República assim como têm feito enormes bancadas no Congresso Nacional - muito embora não cheguem a deter juntos a maioria das cadeiras do nosso parlamento, nem a maioria das prefeituras, e isso se deve tanto à dinâmica peculiar da política no Brasil profundo quanto ao próprio sistema eleitoral; ainda que o primeiro se interiorize cada vez mais, ambos são partidos urbanos, ligados às grandes universidades brasileiras - em especial as do Sudeste - e às demandas que surgiam nesses meios - em geral ligadas ao fim da ditadura - nos anos 80 e 90.

O PT surge de bases operárias, do novo sindicalismo, da Teologia da Libertação e de uma união entre inúmeros movimentos intelectuais de esquerda acadêmica, enquanto o PSDB nasce de grupos democratas-cristãos e de um grupo de políticos centristas que buscava se afirmar como uma terceira via entre a tentativa conservadora de minar os ganhos de 88 e o progressismo social da esquerda, em especial a do próprio partido da estrela. O andamento da disputa política brasileira tornou o PSDB uma espécie de receptáculo de teses pró-mercado que se popularizaram pelo Ocidente nos fins dos anos 70 aos anos 90, marcando uma redefinição da função do Estado. O PT se posicionou contra esse fenômeno, popular no início de sua aplicação, mas tal oposição, nos moldes que se deu, levou o partido de Lula a se tornar, mais e mais um partido mais parlamentar e institucional.

Se de um lado os desenvolvimentistas e os defensores do Estado Social perderam a briga interna no PSDB, por outro, os defensores de uma política basista e da democracia participativa voltada pela luta pró-direitos sociais foram perdendo a mesma briga dentro do PT - principalmente depois da Carta ao Povo Brasileiro. Claro, se de um lado o PSDB acabou perdendo completamente o seu potencial transformador, tornando-se arauto do idealismo livre-mercadista, alinhado com os interesses das potências ocidentais e representante de demandas facilmente circunscritas nas classes mais altas da nossa sociedade - e de determinadas regiões do país -, por outro lado, o PT acabou se transformando em um partido institucional, defensor do Estado grande - no sentido de uma atuação na economia permanente, visível e em prol do interesse nacional e público -, no construtor de políticas de desenvolvimento social referentes às demandas do Brasil profundo e, especialmente, na condução de uma política externa capaz de se mover para além do eixo atlantista.


O Governo Lula marca, no entanto, um movimento de condução de uma política mista entre intervenção e mercadismo no início para, depois, diante da necessidade de produzir crescimento, se voltar para uma política nacional-desenvolvimentista. As diferenças entre isso e o que o PSDB fez são visíveis, ainda que passe longe de ser uma relação contraditória. A grande diferença entre as duas agremiações hoje, sem sombra de dúvida, é o posicionamento delas em relação à Política Externa. Isso pode ser facilmente comprovado pelas recentes declarações do candidato tucano à Presidência da República, José Serra, sobre o Mercosul: "A união aduaneira é uma farsa, exceto quando serve para atrapalhar”. Isso reforça a mesma postura de oito anos atrás, quando Serra concorria contra Lula para a Presidência e enquanto o PT se posicionava claramente contra a ALCA - que vejam só que enorme coincidência, ela não saiu do papel -, o candidato tucano preferia se manter com um sorriso amarelo apoiando-a - ou o que dizer da postura da Geraldo Alckmin há quatro anos atrás que defendia o acordo. 

Isso, meus caros, não é pouca coisa. No plano externo o atual governo obteve seus principais êxitos - que salvavam o país, mesmo quando ele tropeçava feio no plano interno, em certos momentos do primeiro mandato. O Brasil, pela primeira vez em décadas, soube trabalhar o cenário internacional, largou a dependência do eixo EUA-Europa para se aproximar dos demais países em desenvolvimento, consolidou a integração Sul-americana - que permanecia estancada desde os fins do governo Sarney -, finalmente se aproximou da China, da África e do Oriente Médio. Isso rendeu dividendos econômicos imediatos como a expansão das exportações e, ao mesmo tempo, tornou o Brasil um interlocutor de primeira grandeza no plano externo - não à toa, Lula ganhou o título da Time de líder mais influente do mundo em 2009.

A postura tucana, nos oito anos de Governo FHC, foram exatamente ao contrário disso, primeiro que o Brasil foi alinhado automaticamente aos interesses americanos, fatalmente acabaria aderindo ao projeto furado da ALCA - que se se alguém acha que daria certo, por favor, pesquise sobre o que aconteceu com as economias do México e do Canadá nos anos 90 com o NAFTA - e perdemos, por exemplo, de lucrar com o boom da economia chinesa dos meados dos anos 90. Em termos de atuação na América do Sul, não avançamos na integração econômica e mantivemos uma postura cínica em relação a governos do escopo de um Fujimori. Os únicos erros que FHC não cometeu, foi sua posição de rechaçar o golpe contra Chávez em 2002 - nem deixar a Venezuela desabastecida quando da greve dos petroleiros - bem como não apoiar ou colaborar diretamente com o plano americano de intervenção na Colômbia. De lá para cá, os tucanos não fizeram mea-culpa de nada nem acrescentaram nada de novo na sua forma de ver a política externa, muito pelo contrário, como provam as recentes declarações de Serra.

Propor mudanças na política externa é uma coisa, fazer insinuações que, no duro, implicam em jogar oito anos de conquistas na lata do lixo é uma prova de que o PSDB não amadureceu nada nos anos em que passou na oposição e não merece voltar para o Palácio do Planalto.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O STF e a Lei de Anistia

- sejamos fiéis à Memória, senhores, à Memória -

Entre quarta e quinta-feira desta semana, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela manutenção da Lei da Anistia, norma que remonta ao ano da graça de 1979, quando a Ditadura Militar já agonizava, mas ainda não estava claro no horizonte próximo o que se sucederia em seu lugar. No período de 15 anos entre o pérfido golpe de 1º de Abril de 1964 e a data de sua promulgação, a Ditadura Militar se mantivera no poder a base do esmagamento violento da oposição, seja tanto a pacífica quanto aquela que pegou em armas contra ela alguns anos mais tarde - a Lei de Anisitia, por sua vez, cobria um período que ia de setembro de 61, mês subsequente à queda de Jânio e a ascenção de Jango. O Estado brasileiro, ali ocupado por uma corja de usurpadores, jogou sujo, praticou toda sorte de torturas em seus porões: Tivemos desde sessões de choques até estupros.

O clima político brasileiro dos fins dos anos 70, quando o modelo econômico elevado à potência pela ditadura tinha chegado ao limite e a comoção nacional provocada pela assassinato de Wladmir Herzog e de Manoel Fiel Filho nos porões minavam o regime, permitiram uma retomada de fôlego que a esquerda não tinha desde o AI-5. Ali, se passou a reivindicar uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, que servisse como primeiro passo para uma saída negociada para o fim da Ditadura, permitindo que aqueles que estavam presos, na clandestinidade ou no exílio pudessem voltar à vida pública - e isso era uma reivindicação fruto de um equilíbrio de forças que não permitia sequer a hipótese de uma derrubada do regime (mesmo que decrépito).

O resultado foi uma Anistia estreita, específica e restrita que, ainda assim, permitiu o início do fim do regime, a base para aquilo que viria a se tornar o movimento pelas Diretas e, mais tarde, na bola de neve que resultou na Constituição de 88. No entanto, os torturadores passaram incólumes, enquanto muitos presos políticos continuavam nos porões, afinal, o texto da lei previa claramente o seguinte:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares [grifo nosso].
        § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
        § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal [grifo nosso].
        § 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.

Portanto, a própria Lei não foi feita para proteger ninguém que tenha agido em nome da Ditadura. No máximo ela cobriria os militares que, no decurso do Governo Goulart, articularam o Golpe - mas como se sabe,  praticamente ninguém foi punido por esse motivo, isso não faria sentido. Nenhum torturador do Regime foi prejudicado por ato institucional algum e não foi sequer admitida tortura nos porões do regime, no máximo, algum laranja aqui ou ali sofreu alguma punição esparsa, mas nem ao menos se admitiu a prática sistemática de tortura nas prisões - em suma, como assim dizer que isso anistiou quem sequer foi investigado por conta da natureza do regime?

O "crime político" em questão, aliás, nada mais, nada menos, do que as afrontas à Lei de Segurança Nacional - outra infâme aberração jurídica do regime. Crimes como terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal não foram cobertos, portanto, o que faltou ao país foi vontade política de mexer nos recônditos dessa época obscura para trazer à tona os crimes contra a humanidade que aconteceram no período e transcendem ao direito posto no momento - até porque a ordem instituída era meramente factual e a própria responsável por todo estado de coisas do regime, além de que o que estava em jogo na ADPF 153 era, claramente, um pedido de reinterpretação da norma em questão.

Longe de mim acreditar que o punitivismo é o melhor caminho para resolver o que quer que seja, mas é razoável imaginar que evidentemente, ali se trata de um caso extremo. Também é curioso como um país que ainda se ostenta no em sua Legislação Penal o crime de vadiagem - e se pretende moderno e respeitável - consiga ter juristas que produzam discursos tão sofisticados em prol da "conciliação" como se viu nos dois últimos dias na plenária do Supremo é no mínimo um espetáculo exótico. Assistir a um voto como o dado por um Eros Grau - um sujeito que foi perseguido pela ditadura como ele - foi repugnante. De repente, ele soltou algo como "a mesma OAB que lutou pela mesma Anistia que agora quer derrubar" - sim, cara-pálida, a conjuntura ali era igualzinha: Quando se equipara lutar por uma tentativa de normalização das relações políticas (o que obviamente deu errado porque a Anistia evidentemente não foi ampla, nem geral ou muito menos irrestrita) com uma tentativa de trazer à tona crimes contra a humanidade (pois, ainda que tivesse sido ampla, geral e irrestrita, não cobriria crimes desse escopo) algo de muito grave está acontecendo.

Em que pese todo o exposto, mais grave do não levar ao banco dos réus quem quer que seja pelos crimes que cometeu, por mais graves que tenham sido, são os efeitos da exaltação ao esquecimento, à alienação e à inconsciência que se concretiza na Lei de Anistia - e não, eu não vejo como o aspecto jurídico da coisa possa ser cindível da conquista da verdade histórica em relação ao período; descontruir a doutrina estabelecida sobre a lei em questão era (e ainda é) um passo fundamental para a conquista do segundo ponto. Como esperar que alguma Democracia de verdade se construa com uma cortina de fumaça dessa espessura separando os seus cidadãos do direito de conhecer a verdade histórica da coletividade a qual pertence?

domingo, 25 de abril de 2010

Cuba, Yoani e o Socialismo

O debate sobre Cuba, como eu sempre insisto em dizer, é uma dos debates mais viciados do nosso tempo. Não cabem aqui observações contrafactuais sobre 1959,  processos genuinamente revolucionários como aquele não são feitos, mas sim se fazem por si próprios:  A Revolução é uma consequência necessária de um determinado estado de coisas - um conjunto de decisões políticas ao longo do tempo, somado a questões estratégicas e peculiaridades econômicas -, onde o poder político estabelecido não é mais capaz de responder às demandas econômicas, de modo que a ordem posta não é consegue mais se sustentar e algo novo irremediavelmente nascerá - sobre esse "algo novo" cabe uma análise, afinal, as consquências de uma Revolução não estão estabelecidas de forma definitiva no momento de seu clímax, diferentemente da sua ocorrência em si, onde encontrados certos pressupostos, está posta. Isso se diferencia do próprio Golpe de Estado, pois nesse caso há uma crise de liderança que acaba, por algum motivo e de qualquer forma - especialmente violenta -, sendo trocada; a ordem política estabelecida não caiu - porque não estava em xeque mesmo -, apenas foi transformada com a inserção de uma nova liderança.

A Cuba dos anos 50 estava às voltas com o estouro de uma Revolução, pois a ordem estabelecida na sua tardia - e sui generis - independência, temperada com a Emenda Platt, estava alcançando um estado de insuficiência crítico - e a crise, no sentido grego da palavra, o momento onde esse decide e distingue às coisas, se conecta em seu modo mais puro e profundo ao conceito de Revolução. Muito embora pode se alegar que a vida em Cuba era melhor do que no restante da América Latina naquele momento, aqueles que se usam dessa argumentação se esquecem ou simplesmente ignoram dois fatores (I) A ordem estabelecida não tinha mais meios para se sustentar daquele momento em diante; (II) Citando de ouvido um conservador como Simonsen, se você corta uma pessoa ao meio, coloca a cabeça no forno e os pés na geladeira, a média entre as temperaturas levará a crer que tudo está bem com ela - ora pois, a boa qualidade de vida no período era uma miragem estatística, em um lugar onde alguns viviam como cidadãos do mundo desenvolvido e outros viviam na miséria, logo, essa foi uma das causas do próprio esgarçamento da ordem.

No processo revolucionário, é o Movimento Revolucionário 26 de Julho, de Fídel, Che e tantos outros que se sai vitorioso, para pouco depois, com a reação americana, jogam a nova Cuba que nascia para o outro lado da Cortina de Ferro - o que também não é fruto apenas disso, como também da posição ideológica de muitos dos combatentes, como o próprio Che e Raul Castro, o que empurra a figura que emerge da Revolução como uma liderança, Fídel Castro, para os caminhos do Marxismo. Cuba se torna uma economia planificada, com todas as vantagens e defeitos de uma delas, precisa suportar o duro golpe do embargo americano - pesadissímo, principalmente se levarmos em conta que inscipiente porém necessária indústria cubana estava estruturada sob o modelo americano, dependendo do comércio de peças e maquinário com o grande irmão do norte. Os revolucionários que apenas em 65 se organizam em torno de um Partido Comunista - único, incontestável, vanguardista - já desde 59 criavam mecanismos de distribuição de renda, uma rede de proteção social, adaptavam o padrão industrial ao soviético, apostavam de forma crescente na solidariedade internacional e, também, restringiam certas liberdades civis e perseguiam homossexuais como se sua condição fosse um "desvio burguês".

A opção pelo marxismo-leninismo, forjada pela necessidade conjuntural e por alguma convicção, melhora a vida em Cuba, ainda que traga novos dramas à tona. A Liberdade que motivara a Revolução pode ser sempre posta de lado, pois sempre surge uma justificativa, uma explicação "racional" para tanto. A política lá pode não ter chegado aos níveis de opressão policial do Leste Europeu, mas ela não está nas ruas ou em praça pública, a existência de um Politburo - um escritório político - já é por si só emblemática no sentido de onde está confinada a Política. O país, no entanto, prossegue melhorando materialmente até que a avalanche do colapso soviético lhe traga, jogando-lhe numa gravíssima crise econômica entre os fins dos anos 80 e metade dos anos 90. Economicamente, a vida de Cuba de 1995 para cá, não vai mal, segunda a CIA e a CEPAL a produção cresce, em especial de 2003 para cá (entre 11% e 12%), seja pelo seu intercâmbio com seus parceiros tradicionais do Ocidente - notadamente Canadá e alguns europeus -, pelo crescimento latino-americano e, também, pelo crescimento chinês e a recuperação da economia russa - cessada pela atual crise mundial -, parceiros seus dos tempos da Guerra Fria.

Uma cada vez mais complexa ilha, onde o impacto da globalização se faz presente expõe as limitações que qualquer regime tecnocrático de partido único possui; a doença de Fídel Castro, líder máximo do país, que acaba tirando-o do poder é emblemática nesse sentido; a passagem do poder para seu irmão mais novo - e também revolucionário - Raul, demonstra a incapacidade do sistema em se renovar e suscita que alguma reforma mais profunda se opera nos escritórios onde o poder se encontra guardado - as próprias reformas de Raul são um exemplo disso. A própria questão da dissidência cubana começa a aparecer com mais força. É nesse cenário que aparece a figura da filóloga e blogueira Yoaní Sánchez, uma personagem complexa que ganha projeção mundial, com um blog traduzido para 18 idiomas (!), fazendo, por coincidência, oposição ao regime.

Para entender bem esse fenômeno, é bom compreender que a lógica do nós contra eles, em relação a qual o próprio Castro bebeu na fonte por décadas para governar, não existe. Não há uma guerra entre revolucionários e a "máfia cubana de Miami" nem entre tiranetes bolsheviks e amantes da liberdade e da democracia. Dentre os grupos que se opõem ao Regime, vamos encontrar desde social-democratas como um Osvaldo Payá até uma liberal bem extremada como Sánchez - subestimada ao extremo pela extrema direita mundial, sempre ciosa de fatos novos de novos argumentos para justificar sua posição paranoicamente anti-cubana -, ademais,  dentre os membros do partido, há quem queira mais abertura e um desenvolvimento do socialismo no sentido da democracia - e não faltam, entre os vários atores políticos cubanos, quem odeie Castro porque gostaria de estar no lugar que ele ocupou por décadas.

Voltando a Yoani, o que ela faz em seu popularíssimo, blog, o Generación Y não deixa de ser um castrismo às avessas. Em recente entrevista a Salim Lamrani, especialista em relações cubano-americanas poe Sorbonne, muitas das contradições de Yoani vem à tona. A entrevista é um verdadeiro massacre porque pega em questões cruciais como o suposto sequestro que ela sofreu e nunca provou ou a suposta censura sistemática que ela sofre do governo cubano - bem com sua posição bem liberalecas sobre o que ela entende pela transição em Cuba, em suma, o receituário porra louca utilizado pelos oligarcas 'comunistas' nos anos 90 e que resultaram na sabida tragédia econômica por aquelas bandas. Lá dá para ver diálogos como:

 

SL - A senhora não pode negar que o jornal espanhol El Paístem uma linha editorial totalmente hostil a Cuba. E alguns acham que o prêmio, de 15.000 euros, foi uma forma de recompensar seus escritos contra o governo.

YS - As pessoas pensam o que querem. Acredito que meu trabalho foi recompensado. Meu blog tem 10 milhões de visitas por mês. É um furacão.

SL - Como a senhora faz para pagar os gastos com a administração de semelhante tráfego?

YS - Um amigo na Alemanha se encarregava disso, pois o site estava hospedado na Alemanha. Há mais de um ano está hospedado na Espanha, e consegui 18 meses gratuitos graças ao prêmio The Bob's.

SL - E a tradução para 18 línguas?

YS - São amigos e admiradores que o fazem voluntária e gratuitamente.

SL - Muitas pessoas acham difícil acreditar nisso, pois nenhum outro site do mundo, nem mesmo os das mais importantes instituições internacionais, como as Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a OCDE, a União Europeia, dispõe de tantas versões de idioma. Nem o site do Departamento de Estado dos EUA, nem o da CIA contam com semelhante variedade.

YS - Digo-lhe a verdade.
Ou:
SL - Como a senhora chegou até Obama?

YS - Transmiti as perguntas a várias pessoas que vinham me visitar e poderiam ter um contato com ele.

SL - Em sua opinião, Obama respondeu porque a senhora é uma blogueira cubana ou porque se opõe ao governo?

YS - Não creio. Obama respondeu porque fala com os cidadãos.

SL - Ele recebe milhões de solicitações a cada dia. Por que lhe respondeu, se a senhora é uma simples blogueira?

YS - Obama é próximo de minha geração, de meu modo de pensar.
Só são algumas partes, o resto dá tédio de copiar e colar. É o tipo da coisa que você se depara e diz: Ah, tá! Enfim, não colabora em nada para o debate sobre Cuba ou sobre os rumos do Socialismo na ilha - ou, quem sabe, da própria contestação do socialismo enquanto sistema funcional. Nhecas. simplesmente uma argumentação tão sofisticada quanto aquilo que podemos ler na Veja todas as semanas. Note, peloamordedeus, que não é porque Yoani Sánchez ser fraude intelectual que muitos dos problemas cubanos deixem de existir ou que certas denúncias dela não seja realmente válidas, apesar dos pesares. O problema é saber analisar o jogo, delimitando quem são os atores, quais seus interesses e qual a situação real da ilha. Eis o ponto.

P.S.: Nada é tão simples e este humilde blogueiro segue acreditando que o socialismo é o melhor caminho para lá - ou mesmo para essas bandas -, esperando abertamente por argumentos que provem o contrário (ou não), ainda que saiba que sem republicanismo e democracia, a tendência é mesmo que medidas socializantes se desmanchem no ar.