quarta-feira, 10 de junho de 2009

Capitalismo e Academia

Ontem, estupefado, vi no cada vez mais indispensável Biscoito Fino e a Massa, um post assustador sobre a invasão da USP pela tropa de choque. Quando essa greve recente estava sendo puxada, já desconfiava de que algo ruim pudesse acontecer, mas tomava como improvável uma invasão. Gente: Tropa de choque invadindo campus é coisa de totalitarismo camuflado ou de democracia decadente.

Mas vamos problematizar a questão um cadinho: Para que servem as Universidades no sistema capitalista, afinal de contas? Serve para formar pessoas para servirem como quadros dirigentes do Estado burguês ou para serem altos técnicos destinados a criarem conceitos tecnológicos. A relação entre Capitalismo e a Academia é contraditória e, não raro, conflitante; o Capitalismo precisa da produção conceitual porque a reprodutibilidade técnica, por si só, não o sustenta para sempre, por outro lado, ao fomentar a produção intelectual, ele abre o flanco para que alguém reflita sobre o sistema em si e descubra as falácias sobre as quais ele se assenta.

A única forma de controlar a massa pensante das universidades - e o único realmente funcional - é vender uma promessa de poder efetiva, com limites mais largos do que a venda que é feita para a classe proletária. A coerção não é um mecanismo que deve ser usado a rodo ou com, digamos, sutileza paquidérmica, do contrário, a verdadeira natureza do sistema é revelada e em vez de se formar dirigentes, formam-se reformistas radicais e até revolucionários - o segredo do jogo é criar um sistema de controle tão efetivo que os limites dessa liberdade sequer sejam vistos, sendo que tais limites, na verdade, dizem respeito à linha imaginária cuja transgressão implica na necessidade do uso da força, portanto, eles devem ser largos e invisíveis.

Levando em consideração que o sistema sobre o qual o Capitalismo funcionou com mais efetividade é, justamente, o da democracia formal, institucionalizada e manipulável, verificamos que quando um Estado faz uso de um instrumento análogo à tropa de choque para controlar uma crise acadêmica, significa que ele está perdendo o controle porque, possivelmente:

  1. os atuais dirigentes não tem condições técnicas para exercer o mando e perderam o controle político.
  2. o próprio aparato Estatal está se desmontando em razão de alguma crise econômica.
  3. por algum motivo misterioso, conseguiu-se difundir massivamente uma determinada teoria de interpretação da realidade que fez as pessoas perceberem o que é o sistema em que elas vivem e ao que estão, de fato, sujeitas.
  4. os dirigentes, premeditação, estão acirrando as contradições do sistema para provocar a Revolução.
  5. um poucos das três primeiras possibilidades caoticamente atreladas.

Eu ficaria mais com a possibilidade cinco, ainda que me pareça bastante divertida a ideia da possibilidade quatro.

O fato é que temos um Estado totalmente desarrumado - devido a divisão internacional do trabalho - e possuidor de uma elite dirigente errática e, felizmente, apesar do sistema ser disfuncional, se produz conhecimento suficiente para algumas pessoas se darem conta disso.

De uma perspectiva menos abstrata, temos hoje no Brasil uma extrema-esquerda que, por inúmeros motivos que concernem desde a sua inabilidade política até as peculiaridades do nosso tempo, não consegue chegar nem perto de um síntese revolucionária; temos um partido com algumas bases e ligações com os movimentos sociais no poder, mas que conduz apenas uma política reformista moderada; temos uma oposição de direita ligada a concepções anacrônicas de Capitalismo. Por fim, há um confuso sistema federalista e uma legislação igualmente inconsistente integrada a um judiciário inepto.

Nessa esteira, temos a figura de Lula, o presidente que se elegeu para fazer uma reforma radical no país, mas que seguiu uma agenda moderada, trazendo ganhos para os setores anacrônicos que sempre o rejeitaram e, sob algum grau, para as populações pobres também; somado a isso, temos a figura de um Serra governando São Paulo e capitaneando um projeto de solapagem do poder que interessa a esses setores anacrônicos e implica num retrocesso da democracia formal, nunca esqueça, necessária ao capitalismo.

A Crise da USP, portanto, entra dentro de um contexto muito maior do que simples inépcia do Poder Público, ele se enquadra numa conjuntura política e econômica muito maior, onde uma figura ciosa por poder lança mão de uma política implacável para se mostrar confiável para levaar adiante os projetos que certos grupos estão a desenvolver nesse exato momento; enfim, diz respeito a Capitalismo, mas diz respeito sobretudo ao Capitalismo brasileiro e suas idiossincrasias. Serra, portanto, se revela como uma força reacionária - no sentido etimológico da palavra -, um risco para o tênue avanço civilizatório brasileiro, alguém que deve ser prontamente rechaçado.

Atualização de 12/06/09 às 12:18: Vai aqui o link pro melhor texto publicado sobre essa questão: Debelado foco guerrilheiro na USP do Professor Hariovaldo de Almeida Prado (enfim, só o humor nos salva mesmo).

6 comentários:

  1. Hugo,

    Penso isso mesmo. A Direita, dona da Imprensa brasileira, está apostando todas as fixas para retomar o controle TOTAL (que perdeu )sobre o Estado Nacional e assim garantir para sí os privilégio de usufruir de todas as suas riquezas produzidas por ele. Para isso precisa de alguém confiável. Mas ele não é o único candidato. Caso, por algum motivo sua condidatura não vingue, já existe um plano B, no caso, Aécio Neves, governador de Minas.


    A truculência policial contra estudantes, dentro do Campus da USP não é muito diferente da empregada pelas formas policiais em outras ocasiões, como em Paraisópoles (embora esta última tenha sido muito mais violênta _ até por terem mantido as ações da polícia longe dos olhos da população) faz parte dessa representação de líder forte e decidido, guardião do Estado de Direito.

    Ps: O trabalho não está me deixando tempo para comentar os posts d'O Descurvo, mas continuo lendo, sempre.

    Abraço!

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  2. Eduardo,

    Como eu escrevi no blog do Maurício e no do Tsavkko, a atual conjuntura está me assustando. Seja na base da violência policial ou da difusão de mentiras, os caras não estão demonstrando limites; eles estão dispostos a tensionar feio para retomarem o poder total.

    Por isso eu defendo que para além da truculência serrista, a invasão da USP, a história da ditabranda - e os revisionismos históricos que estão sendo produzidos -, a campanha suja contra a Dilma e afins fazem partem de um contexto muito maior onde se interligam - seria muita inocência ou desonestidade pensar o contrário.

    Serra é o tipíco adesista, possuidor de uma sede insaciável pelo poder, ele está disposto a tudo. Nesse exato momento, ele está vestindo a máscara do soberano schmittiano. Uma eleição dele, meu caro, é tchau e bença pros avançozinhos que conquistamos nessa nossa democraciazinha formal pós-88.

    abração

    P.S.: Espero que tão logo você volte a comentar por aqui e, claro, voltar a escrever no Conversa de Bar.

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  3. Olá Hugo,

    Ótimo artigo, especialmente o miolo, quando você desenvolve o papel da universidade - ora como chancela, ora como contradição - na sociedade capitalista.
    Essa discussão pode - e deve - ser ampliada, tendo em vista uma análise (de campo) dos estudantes que ingressam no ensino superior.
    Sobre seu comentário-resposta ao Eduardo Prado, quando você critica o revisionismo de hoje, vale a pena ler o artigo do Veríssimo, publicado no Globo de hoje. Nada de teoria ou crítica ao sistema, mas um bem humorado olhar aos limites do revisionismo sobre a interpretação do presente.
    Um abraço

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  4. Valeu pelos elogios, João, irei dar uma procurada nesse texto do Verissímo.

    abração

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  5. Excelente análise. A ilustração cabal do processo de "criar um sistema de controle tão efetivo que os limites dessa liberdade sequer sejam vistos" é a universidade norteamericana, onde o índice de questionamento efetivo das "falácias do sistema" é baixíssimo. Obediência bovina.

    Pois é exatamente a implantação de tal modelo que, como sabemos, a burocracia estatal na área de Educação está incumbindo-se de fazer no sistema universitário do país. Não existe método melhor para domar o elemento mais perigoso (embora estruturalmente frágil) do sistema: o professor. Convenhamos, é o sonho de qualquer político subjugar a universidade – a único fração dos aparelhos ideológicos do Estado, para usar o conceito althusseriano, dotada da capacidade sistémica de produzir contradiscursos com potencial de conscientização social contra o poder.

    E haveria modo melhor do que fazê-lo do que instituir metas e sistemas de avaliação da atividade docente exógenos a ela e, ao mesmo tempo, transformar o professor universitário em uma espécie de escrevente de cartório da Educação – que passa horas preenchendo formulários, formulando e inscrevendo projetos e lutando por verbas junto às agências de fomento e demais órgãos burocráticos? Melhor do que isso, impossível.

    Pena (para os que querem implementar tal sistema) que para lograr fazê-lo, no atual estágio da universidade brasileira, é necessário um mínimo de capacidade política para administrar as inevitáveis insatisfações. Não é o caso de Suely e Serra, obviamente. Daí a regressão à ditadura que as cenas da truculência no campus nos propiciaram.

    Só senti falta, na sua análise, de uma atenção maior a esse elemento menor (rs.) da universidade, o aluno. Não que eu pretenda falar algo sobre ele...

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  6. Maurício,

    Foi exatamente a universidade americana que me veio à mente quando descrevi esse processo - e bastante da europeia também, viu. O elemento complicativo para realizar tal processo é, justamente, que para estabelecer tais limites largos e invisíveis é necessário criar possibilidades materiais efetivas para os estudantes, o que nem sempre é fácil de se fazer em países como o Brasil pela própria limitação - e lógica de destinação - dos recursos econômicos.

    Desde Gramsci sabemos que a fórmula para a hegemonia envolve convencimento + coerção, claro que no caso da massa trabalhadora, propositalmente emburrecida pelo sistema, tal convencimento é fácil e a coerção pode se dar de um modo violento, tosco e por vezes ilegal na medida em que falta conhecimento ou condições financeiras para se denunciar.

    No caso dos estudantes universitários é um pouco mais complexo para o sistema; a coerção por via fisíca tende a dar errado mesmo e o convencimento tem de estar amparado por possibilidades reais de colocação realização individual - e aí volta à questão da problemática brasileira: Como isso pode ser garantido efetivamente se o país não tem recursos e os que existem servem a outros interesses?

    Aí, caímos em outro problema, como subjugar o Professor? Você pode fazer isso, mas você, como dirigente de um Estado capitalista, não pode perder do seu horizonte que a tecnificação do ensino superior vai tornar as coisas mais fáceis num curto prazo, melhorar e ampliar a reprodutibilidade técnica, mas quando chegar à página 2, vem o problema: Quem chamar para dirimir as contradições inerentes ao sistema que você defende?

    É por isso que o Capitalismo é obrigado a produzir essa contradição subsidiária: Ele tem que abir espaço para que seja produzido o conhecimento que pode lhe destruir.

    O que Serra e Suely estão tentando fazer toscamente por aqui pode acabar sendo um óbvio tiro...no próprio Capitalismo - e isso não difere muito aquilo que Sarkozy, tão toscamente quanto, pretende fazer na França.

    E, bem, você tem razão, eu acabei não focando a narrativa no estudante mesmo, talvez porquê ele mereça um capítulo à parte dada a complexidade desse personagem. O estudante pode ser aquele que descobre o que o sistema que pretende adestra-lo realmente é - por meio desse flanco peremente aberto - ou aquele que não se dá conta nunca jamais disso - por desonestidade ou ignorância mesmo.

    Mas ficam as eternas indagações: Qual estudante? Estudante que veio de qual escola e com qual formação? Estudante que estuda como? Trabalhando 8, 10 horas por dia para sustentar a família e ainda banca um curso superior ou aquele que tem tempo para se dedicar à vida acadêmica? Aí surge outra pergunta: Qual vida acadêmica, na Atlética ou na Biblioteca?

    Enfim, o "estudante" em si é tema que dá para dois ou mais posts.

    abração.

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