sexta-feira, 18 de junho de 2010
Resquiescat in Pacem Saramago
Faleceu hoje, aos 87 anos, em sua casa nas ilhas Canárias, o escritor, jornalista, militante comunista e, no fim da vida, blogueiro José Saramago. Uma perda, sem dúvida, irreparável. Saramago nasceu em 1922 e pertenceu a uma geração de intelectuais - da qual foi o maior expoente artístico - que nasceu e viveu sua mocidade num Portugal que, muito embora já tivesse se livrado de uma monarquia perdulária e inepta - se é que não estou sendo redundante -, encontrava-se sob o jugo de uma ditadura fascista que corrompeu a República ainda em sua meniníce, levando-a à inquietação, à crítica social e ao ativismo político - de uma maneira um tanto romântica - o que se concretizou naquela que talvez tenha sido a maior inflexão modernizadora portuguesa de todos os tempos, cujo momento-chave foi a Revolução dos Cravos. Dono de um ceticismo cortante e de um estilo literário desafiador e polêmico, Saramago desafiava desde os dogmas patéticos da gramática até os cânones católicos, pendores nacionalistas e, até mesmo, convicções racionalistas. Foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e, seguramente, foi o maior escritor de língua portuguesa do século 20º.
Dentre tantas polêmicas em que se envolveu, uma delas se deu quando a indicação de O Evangelho Segundo Jesus Cristo - meu livro favorito dele - para o prêmio europeu de literatura foi vetada pelo Secretário de Estado da Cultura português Sousa Lara. A alegação? A obra seria elemento de desunião para o povo português, afinal, o livro faz uma crítica ácida aos evangelhos ao narrar a vida de Jesus despida de qualquer aura divina, retratando-o como um homem entre os homens, irritando o clero católico e muitos fiéis - curiosamente, sua última obra, Caim, segue a mesma temática, batendo desta vez no Antigo Testamento. Recentemente, irritou os portugueses ao propôr que seria melhor para Portugal ser integrado à Espanha formando uma espécie de Federação - o que, como se não bastasse a perseguição religiosa que sofria em pleno século 21º, ainda lhe valeu críticas dos nacionalistas d'antanho de seu país.
Foi comunista até o último dia de sua vida e nunca deixou de denunciar a crise da democracia nos dias atuais - como também não deixou de relegar a direita de seu país ao devido escárnio, chamando Cavaco Silva, atual Presidente da República e maior líder conservador do país no pós-Revolução dos Cravos, de "gênio das banalidades". Enfim, foi-se um dos grandes e pouco a pouco o século 20º vai nos deixando - enquanto o projeto desumanista dos dias atuais avança, apesar da geração de Saramago o tenha refreado substancialmente em seu tempo. Agora é conosco.
As grandes mentes do mundo estão deixando-o e infelizmente não restam sucessores à altura.
ResponderExcluirPois é, Carlão, existe um processo de desintelectualização em curso, mediante o qual a infantilização é festejada e a relação dos pessoas com os saberes é limitada à repetição desprovida de qualquer capacidade ética.
ResponderExcluirIsso porque você ainda não me conheceu Carlos de Lucca!
ResponderExcluirNossa, não sabia que ele era tão polêmico assim. Bom texto, serviu para dar um panorama!
ResponderExcluirEduardo,
ResponderExcluirPela sua afirmação, creio que não precisamos te conhecer melhor para saber que a teoria do Carlos faz um enorme sentido ;-)
abraço
Celião,
ResponderExcluirObrigado, meu velho - e,sim, Saramago era grande polemista dotado de um senso de humor implacavelmente sarcástico, enfim, não era um tipo que se esquivava de uma boa briga.
abraço
Saborosa coincidência, Hugo, pois O Evangelho também é o meu Saramago preferido.
ResponderExcluirQuanto à união Portugal/Espanha, há também aí uma alfinetada aos nacionalismos regionais da Espanha, em sua maioria encabeçados por partidos de esquerda.
Patrick,
ResponderExcluirUma das cenas mais espetaculares da literatura mundial é aquele comecinho de O Evangelho, quando ele narra a cena de crucificação Cristo. Chego a me arrepiar.
Sim, é uma bela alfinetada nos nacionalismos regionais da Espanha - quem sabe até na monarquia espanhola, pois essa Federação dificilmente não haveria de ser republicana - e assim ele também retoma o argumento central do internacionalismo comunista, perdido em alguma parte do século 20º.
Em suma, ele fala da concepção de como a convivência entre grupos plurais não é só possível como desejável e produtiva, postulando, assim, o caráter ideológico - no sentido de falseador da realidade - de discursos que usem das diferenças entre os homens como um álibi para aparta-los uns dos outros - enclausurando-os em grupos que podem ser antagonizáveis de acordo com os interesses de uma elite que exerce seu mando por meio de um certo patriarcalismo - ou, do ponto de vista interno, que apontem para o horizonte perigoso de uma homogeneização social como forma de dirimir contradições.
abraço
E como vem a dor da saudade, trago aqui mais gente que conosco sente essa dor ao pensar que Saramago virou a curva da estrada.
ResponderExcluirhttp://www.tijolaco.com/?p=18750
Maria Lucia
Obrigado pelo link, Maria Lúcia.
ResponderExcluirHugo,
ResponderExcluirBelo texto!
É realmente uma pena ver mentes iluminadas como a de José Saramago se apagarem ainda na aurora do século XXI. E não digo iluminada no sentido de inspiração divina, o que seria uma ofensa ao espirito crítico e tão lúcido de Saramago, mas no sentido de compreender a natureza humana e ter coragem para denunciar o impacto desse sistema econômico dito vencedor, mas mesquinho e desprovido de qualquer humanidade, sobre os mais humildes e vulneráveis.
Como bem foi lembrado aqui Saramago era um polemista, mas também é verdade que se criou muita polêmica sobre declarações suas que, de tão evidentes, não deveriam gerar polêmica nenhuma.
Obrigado pelo comentário que deixou no Conversa de Bar. Se me permitir gostaria de publicá-lo no blog.
Abraço!
Edu,
ResponderExcluirSem dúvida, Saramago foi tudo isso que você colocou, mas ele tinha algo que o distinguia dos demais pensadores de esquerda: Uma certa amorosidade ao fazer essa denúncia, o que a tornava particularmente poderosa - e é aí que a sua obra e seu ativismo de certa forma dialoguem com a obra de Negri e Hardt que eu resenhei aí em cima.
Mas ser um grande polemista é isso daí mesmo, meu velho: Não é o ato de implicar com posicionamentos dos outros, mas sim defender com unhas e dentes - guerrear como seu significado etimológico nos aponta - o óbvio evidente que é nublado pelas superstições e interesses dos outros - ou mesmo pelo funcionamento da máquina cruel de um determinado sistema.
Mas é claro que pode publicar o comentário - aquele comentário traz as ideias que eu gostaria de ter colocado aqui, esse post foi muito mais um desabafo, ainda sob o impacto da notícia de sua morte, ganhando em autenticidade sentimental, mas perdendo em falta de clareza.
aquele abraço