O ano era 1968 e irrompiam protestos de canto a canto do Globo. Uma geração inteira de jovens, nascida no pós-Guerra, se via tomada por um furor revolucionário que se espalhou como um efeito dominó por todos os lados. Nos EUA, a luta pelos direitos civis seguia firme e forte atingindo seu ápice - bem como a luta pelo fim da Guerra do Vietnã, cujo único significado era a própria crueza que lhe era inerente -; na França, os jovens partiam para o confronto contra uma patética reforma educacional que nada mais era do que a ponta do iceberg da esclerose do Gaulismo tardio - e só o início dos problemas -; do outro lado da Cortina de Ferro, as multidões se debatiam sob o sol primaveril de Praga por um Socialismo com face humana; no Brasil, nos víamos sitiados por uma Ditadura Militar implementada em meio ao transe geral - que se consolidava lentamente - e a reação tardia e desorganizada daquele momento, como sabemos, não foi suficiente para deter seu recrudescimento logo em seguida.
Um fato que passa desapercebido sobre 1968 é que ele também era, vejam só, ano olímpico e em sua sede, aliás, as coisas não foram muito diferentes: O Governo Díaz Ordaz - mais um da nefasta tradição do priismo que governou aquele país por 70 anos - gastara uma fábula para que a Cidade do México fosse sede daquelas Olimpíadas e seguia, por conseguinte, firmemente uma política de cerco aos movimentos sociais e às liberdades individuais - o álibi era a realização do espetáculo, mas a medida que se apertava, as inquietações aumentavam e ao passo que isso acontecia, se justificava mais aumento do cerco. A opressão a serviço do espetáculo global e um espetáculo global a serviço da opressão. Assim, a democracia de partido único do México seguia seu ritmo, multipartidarizando-se mais tarde, mas sem perder seus trejeitos.
Exército Mexicano na Praça do Zócalo |
As coisas pioraram com a chegada das Olimpíadas em Outubro, os protestos estudantis ganham força até o episódio da Praça das Três Culturas, de triste lembrança, que ficou gravado na História como o Massacre de Tlatelolco: Milhares de jovens, há poucos dias da cerimônia da abertura, se reuniram para o maior protesto desde então. Eis que franco-atiradores instalados no alto dos prédios abrem fogo contra a multidão, matando um sem número de manifestantes - cujos corpos foram simplesmente desaparecidos, talvez jogados ao mar pelos militares - e milhares foram presos por tropas do exército. Tais eventos passaram em pune; dez dias mais tarde, Díaz Ordaz inaugura os Jogos Olímpicos de 1968, as Olimpíadas da Paz...
Existe muita coisa para se dizer aqui. Seja o significado de 1968 pelo mundo, um tema digno de uma série de posts - ou quem sabe de um blog inteiro - e o outro é a própria natureza dos espetáculos globais, o que eles demandam dos governos e o como eles servem de álibi para políticas de efetivação do próprio domínio deles sobre corpos e mentes: Como a urgência da sua demanda justifica ações violentas e como é possível o Poder brincar com a possibilidade de urgência para executar políticas das mais diversas naturezas. É como nos diz Murilo Duarte Costa Côrrea, com sua habitual sagacidade: Trata-se do argumento transcendente da necessidade inscrito no desejo, em outras palavras, o que faz com que o descalabro nem precise mais ser justificado, posto que suas premissas, já estão, há muito, naturalizadas no inconsciente da multidão. No Rio, sede das Olimpíadas a se realizarem em menos de dois anos, a política de pacificação se mostra como de extermínio - se é que poderia se mostrar de forma diferente -, no qual, independentemente de qualquer política de combate ao tráfico - certa ou errada -, estamos diante de uma urgência que nos leva à guerra pelo controle territorial daquela maneira e, ao mesmo tempo, justifica uma política para as favelas - e aqui, o tráfico é álibi, não o alvo - que desejávamos há muito.
O sujeito histórico do militante estudantil sai de cena e entra o sujeito histórico do favelado rebelde. Ambos são elétrons livres que circulam, por diversos motivos histórico-culturais, fora do alcance da esfera de controle da Ordem. Em ambos os casos, um falso cosmopolitismo, iluminista e autoritário, faz uso de um de seus principais espetáculos para representar uma confraternização universal que não passa, vejam só, de normalização universal a serviço do processo civilizatório, com a Paz como grande significante vazio a nos assombrar em seu altar - a paz perpétua pela vigilância e guerra perpétua. O caminho que seguimos não é animador, as chances que temos de escapar é a subversão da ordem posta e, nesse sentido, o Governo petista que ocupa o poder há oito anos significa, quem sabe, um ponto de fuga à desdita (quase) certa: Entre seus trancos e barrancos, nenhuma força política conseguiu concretamente subverter o funcionamento histórico de uma verdadeira máquina (cordial) de segregação como o Estado brasileiro com ele. Conseguirão os petistas no poder escaparem à miopia racionalista que ainda os purga para, eles mesmos, não se sujeitarem aos desmandos da sujeição alheia? Em outros palavras, a aparente vitória petista de trazer as Olimpíadas para o Brasil se assume como o seu maior desafio, como não se deixar usar pelo clamor das massas que deliram seus Díaz fictícios ou reais?
Muito bom o seu texto. Belissimo. estou aqui lhe convidando a visitar o meu blog, simplório por sinal, e se possivel seguirmos juntos por eles. Estarei grato esperando por voce lá
ResponderExcluirAbraços de verdade
Excelente post e esperemos que o Brasil seja capaz de não se repetir de novo, tristemente. No meu blogue ainda fiz outra conexão com o México, no caso o da Guerra ao Narco do governo de Felipe Calderón.
ResponderExcluirPaulodaluzmoreira,
ResponderExcluirAs conjuntura política leva a crer que não - ou que temos uma boa chance de que isso não ocorra. O ponto é que a eleição do PT aponta nesse sentido, mas a questão é que dentro do futuro Governo Dilma assim como com Lula, o partido da estrela foi apenas a cabeça de um corpo gigantesco e nem sempre bem articulado. A pergunta é como esse arranjo reagiria num cenário de urgência máxima, isso deve ser demandado desde já ao governo eleito.
abraços
E obrigado, José
ResponderExcluirola!
ResponderExcluirNao sou da geraçao de 68,na verdade sou filho dela-em todos os sentidos-,e me sinto perdido neste turbilhao de mudanças 'gatopardistas'que o lulismo vem apresentando.
É de se temer o que vem por ai!
abraço.
Silvio
Silvão,
ResponderExcluirTodos estamos, em certa medida. Mas não acho que o Governo Lula promoveu mudanças apenas gatopardistas, ao contrário, acho que existem mudanças efetivas mesmo, o ponto nessa questão toda é se o rearranjo resultante expressa o que precisamos do modo como precisamos - e eu associo o gatopardismo ao PSDB mesmo. Eu poderia escrever bastante sobre isso - e talvez isso seja aquilo sobre o que eu mais reflita por aqui -, mas em resumo eu poderia dizer que demos o melhor rumo à nossa civilização dentre os que já foram dados - na maior mudança de rumo já vista -, mas culturalmente estamos mal - vivemos o nosso melhor presente, não sei se o melhor possível, mas não sei se hoje temos o nosso melhor futuro.
abraços
Acho até que os avanços são muitos e substanciais. Infelizmente não se fala muito neles de uma forma clara porque a grde imprensa no Brasil é via de regra um grde centro de desinformação. Só que a esquerda tem que fazer pressão, tem que contrapor o peso do outro lado e avançar mais. Por isso é que eu acho que a gente tem que ser crítico, implacavelmente crítico, mas sem dar tiro no pé.
ResponderExcluirAliás um dos motivos pelos quais eu não votei na Marina apesar da minha simpatia por ela era a convicção de que ela seria a mesma cabeça de um corpo gigantesco e talvez com ainda menos condições de lidar com o resto do corpo.
Sim,Paulo, concordo plenamente contigo. Eu não votei em Marina porque seria, inclusive, pouca cabeça para muito corpo - não desmerecendo a pessoa dela, mas aqui, "cabeça" é a toda a estrutura que dá o norte (o grupo político, os quadros etc) e isso, lamento, por mais que o pessoal que ela trouxe do PT (especialmente do MMA) fosse muito boa, não era o suficiente. Por outro lado, sou bastante cético com certas posições dela em relação aos direitos civis. Não que a situação no PT, hoje, seja simples. Por ora, estou moderadamente satisfeito com a equipe ministerial de Dilma, mas a luta é dura.
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