Acordo depois de uma (justa) tarde de descanso e me deparo com uma notícia bisonha: um grupo de moradores de Higienópolis está protestando contra a construção de uma estação de metrô no bairro. A alegação passa por argumentos confusos que vão desde a defesa de uma estação seja construída mais para o lado até pela admissão clara e inequívoca de um discurso elitista: "estações do metrô atraem gente 'diferenciada' como moradores de rua etc" - como colocou um morador. Ainda que o movimento, e é bom que isso fique claro, não fale em nome dos moradores do bairro (embora se ponha nessa posição, o que é revelador sobre sua posição no debate público), movimentos como esse ilustram um fenômeno bastante recorrente na metrópole paulistana e, por tabela, em grande parte das metrópoles brasileiras, haja vista que o modelo de urbanização brasileiro atual é inspirado no modelo paulistano dos tempos da ditadura - uma das consequências possíveis para um processo de urbanização que obedecia, desde o primeiro momento, uma lógica de não construção de raízes com o lugar e pela exploração bruta do meio pelo colonizador português, como nos lembra o sempre necessário Sérgio Buarque de Hollanda em seu " O Semeador e o Ladrilhador". A organização atomista da metrópole bandeirante, onde um núcleo duro de "civilização" é circundado por um anel de pobreza e miséria - ligados por uma estrutura de transporte público insuficiente - e o automóvel reina como necessidade para milhões de cidadãos - até como condição para a própria cidadania substancial, na medida em que não há espaço para pedestres e ciclistas - serviu de inspiração para as nossas principais metrópoles, embora, por razões óbvias, o modelo não pôde ser reproduzido em sua totalidade - pela diferença óbvia da máquina capitalista bandeirante em relação a qualquer uma das outras partes do Brasil. De maneira transversal, o fenômeno ainda se trata de um avanço da lógica da imunização, tão presente nos tempos bicudos de hoje, cuja face urbanística visível é um movimento simultâneo de encastelamento das classes abastadas em condomínios cada vez mais fechados e de isolamento da Favela - o Outro como pestilento em relação ao qual precisamos nos proteger isolando-o, algo que não é nada novo como nos lembra um tal de Foucault, mas que toma uma dimensão incrivelmente preocupante na nossa época e, sobretudo, no nosso meio. Em suma, peculiaridades culturais brasileiras e paulistanas se entrecruzam com a radicalização do fenômeno da imunização na nossa época, resultando num fenômeno curioso no qual o próprio equilíbrio sistêmico da cidade se torna mero detalhe para certos grupos - isso, enquanto causa de certo recalque existente, torna-se, ele mesmo causa de acirramento do processo. Mas não poderia o morador, em seu momento fascista, ter sido mais feliz: sim, estações de metrô atraem gente diferenciada mesmo - em seu gozo perverso, ele não percebe, no entanto, qual o problema do Mesmo.
Atualização de 13/05 às 19:58: Eu, honestamente, não tenho ideia do que houve com este post. Até ontem à noite, ele tinha seis comentários que simplesmente desapareceram e houve relatos que ele ficou fora do ar por algum tempo. [aliás, este post foi publicado dia 11/05, ele sumiu mesmo e foi republicado automaticamente (?!), ficarei atento, mas é bisonho que isso tenha acontecido]
Incrível como tentam vender a cidade como um produto, como um conjunto funcionalizado. O metrô é pra transporte, a calçada pra pedestres, a praça pra sentar e ler jornal etc. Que urbanismo utilitarista!
ResponderExcluirA cidade não é um produto, mas um processo, e se constrói nos conflitos, nas divisões sociais, na produção de sentido por seus ocupantes, ainda que pobres. Mas o poder constituído tenta naturalizar o espaço, e assim redesenhá-la para o mercado imobiliário, o controle social, a estetização vulgar. Num discurso excludente onde os pobres e os movimentos são anomalias a ser higienizadas e removidas.
Essa situação aqui no Rio de Janeiro está gravíssima, porque feita em nome do interesse público e mesmo do socialismo (a Secretaria Municipal de Habitação é ocupada pelo "socialista" Bittar), com o argumento dos mega-eventos, mas sempre e sempre contra os pobres, tratados como obstáculo à "modernização" desta mais nova cidade global (i.e., integrada ao capitalismo cognitivo planetário).
Bruno,
ResponderExcluirEssa é uma tendência do capitalismo atual, não resta dúvida - e o negócio anda dando medo nos últimos vinte anos aqui no Brasil. A paranoia higienista, hoje, é uma ameaça mesmo a viabilidade da cidade pensada utilitariamente, seja no Rio ou em São Paulo - ainda com as nossas cidades às voltas de sediar espetáculos globais como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Aqui em São Paulo, depois de Kassab as coisas saíram mesmo de qualquer parâmetro e esse movimento de Higienópolis (que doce ironia) é sintomático.
abraços
Hugo, texto oportuno: estamos atravessados por microfascismos que se racionalizam e justificam como um desejo de inclusão defencial: graus, estriamentos e demarcações: isolamento, estigma e desumanização. A diversidade é a riqueza da vida. Nela, os problemas se tematizados geram nova vida e novo mundo: por uma nova Terra, por um povo por-vir(Deleuze).
ResponderExcluirAbraços com carinho; Jorge Bichuetti
do blog Utopia Ativa
www.jorgebichuetti.blogspot.com
Afinal, a construção da estação foi mesmo barrada ou ainda está "em estudo"?
ResponderExcluirIncrível como o mito da cidade "perigosa" (com origem na Torre de Babel) ainda é tão forte aqui por essas bandas. Deveríamos atentar um pouco mais para o "direito de viver na cidade" do que simplesmente ficar na ladainha de que a urbanização ameaça a estrutura da sociedade e ameaça a existência comunidade.
ResponderExcluirPrecisamos de uma inovação epistemológica no modo de pensar as cidades, como diria Carlos Fortuna.
Enzo.
http://paraneura.blogspot.com/ da uma olhada e diz se gostou, gostei do seu.
ResponderExcluirSemana passada beatificamos um papa, casamos um príncipe, fizemos uma cruzada e matamos um mouro. Bem-vindos à Idade Média!
ResponderExcluirE assistimos tudo isso dentro de nossos condomínios fechados (burgos), como os de Higienópolis.
Por isso que eu digo que essa coisa de querer transporte público é só discurso. As pessoas querem mesmo é continuarem a andar com seus carros em seus redutos. No máximo querem transporte público pra "gente diferenciada" deixar o trânsito mais livre pra eles. Mas desde que seja longe.
ResponderExcluirAí votam no mesmo grupo político há mais de 20 anos, e não conseguem enxergar relação disso tudo com o caos do trânsito, a violência, às enchentes..
Isso mostra o que qualquer urbanista e urbanófilo já sabe desde Jane Jacobs: melhorar transporte coletivo não melhora transporte coletivo - é enxugar gelo.
ResponderExcluirNão é bom transporte público que faz a medioclasse deixar de usar carro.
Antes, o mero cerceamento do carro é mais fácil, barato, e eficiente, melhrando o transporte de massas imediatamente (porque menos carro é mais ligeireza dos ônibus, que assim carregam mais gente e ao mesmo tempo ficam mais vazios) - isso é, ao invés de enxugar gelo, fazer o gelo parar de derreter.
Prova disso: o metrô de Londres, terceiro maior do mundo, era sub-utilizado, enquanto a Capital Britânica sofria com engarrafamentos. E não adiantava fazer propagandas. Só resolveu quando enfiaram pedágio urbano goela abaixo da inglesada.
Mas a esquerda brasileira encabeçada pelo PT inventou o "populismo volkswagen"...
Luis: Acho que vivemos algo pior do que o medievo, lá não éramos escravos da máquina como somos hoje e nem corríamos risco de extinção.
ResponderExcluirÂndi: Talvez, mas as vontades individuais também são, não raro, fruto de superstições que nascem do discurso hegemônico - e nem podem ser tomadas como base no tracejo de uma política pública dentro de uma democracia.
Lucas: Se existem dois imperativos em matéria de economia é que sempre existem limites e que toda medida de política econômica implica em bônus e ônus (restando avaliar o que tem maior custo benefício). No caso paulistano, pelos custos que implicam ter um carro, eu não tenho a menor dúvida que, mesmo com o atual custo (que é alto) das passagens, a ampliação da rede metroviária estimularia seu uso e dirimiria
o engarrafamento - e mesmo que fosse o caso de construir pedágios urbanos (que de certa forma, já existem na capital paulista na forma de custo-estacionamento), antes seria necessário ter uma rede de transporte público já pronta para recepcionar quem deixaria o carro em casa, mas, reitero, acho que isso, cá em terras bandeirantes, seria desnecessários.
abraços coletivos