Hari e Dr. Kelvin - Solyaris |
O debate político mundial anda bem carregado. Os grandes projetos políticos estão, a rigor, morrendo como moscas - enquanto isso, o meio-ambiente agoniza silenciosamente. As nuvens negras no horizonte ainda parecem pequenas, mas a falta de vento, o mormaço e o silêncio indicam que choverá - e forte - tão logo. A questão é saber se depois do dilúvio ainda haverá algo. Por mais que debatamos a grande narrativa por aqui - isto é, o grande drama histórico em que o Ocidente encalacrou a Vida -, a pedra de toque é mesmo existencial. Nos últimos cem anos, pouquíssimos artistas - e aí incluo também os políticos - conseguiram captar isso tão bem quanto o cineasta soviético Andrey Tarkovsky.
Tarkovsky, com seus dramas psicológicos, passava ao largo de agradar aos burocratas do cinema soviético: seus filmes escapavam à fórmula megalômana e ufanista que dominava até mesmo o melhor do cinema soviético - e isso chega a ser impressionante dado o cenário irrespirável daquele país. O fracasso do projeto soviético, que dão um ar de ridículo à grande parte da sua produção cultural, nada mais foi do que parte do fracasso do projeto teológico do Ocidente, dado que aquele socialismo não deixava de ser uma variante do Mesmo tal como fascismo e liberalismo. O que Tarkovsky viu, munido de sua inegável virtù renascentista, é o dilema psicológico do Homem quando ele se depara com o Paraíso e encontra um vazio grande demais para suportar impunemente, isso o faz escapar a esse ridículo e torna sua produção incrivelmente atual. Um exemplo disso é Solyaris.
Quando Tarkovsky se depara com a fantástica ficção científica de Stanislaw Lem, ele encontra ali uma ponta solta que lhe permite fazer o que sempre quis: discutir a condição existencial da nossa espécie frente ao desenvolvimento tecnológico, ou a falácia de pós-humanismo - e, também, acidentalmente deflagrou a discussão sobre o virtual, expresso tanto menos em antevisões sobre o futuro da informática e mais na própria fantasia sobre a qual construiu sua obra, aqui, a própria natureza do planeta que nomeia a película. Certamente, os soviéticos se depararam com esses grandes dilemas antes mesmo dos habitantes dos países capitalistas ricos, uma vez que sua construção política girava em torno da mais aguda forma de progressismo que a humanidade já conheceu: dos méritos da NEP até Gagarin (para depois descer ao inferno em Tchernobyl), a União Soviética era rigorosamente calcada em uma marcha expressa e declaradamente incessante para frente.
A impotência da ciência e da tecnologia humana frente ao misterioso Planeta Solyaris - capaz de conhecer qualquer ser humano melhor do que ele mesmo e, assim, tornar real seus desejos mais recalcados - é o mais potente soco no estômago que se poderia ser desferido contra a teologia materialista soviética, mas os burocratas estavam animados demais com aquilo que julgavam ser a resposta soviética à Odisseia no Espaço de Kubrick para entender o que realmente financiaram. O recado é claro, nenhuma tecnologia ou ciência é capaz de produzir o fantasioso negativo-do-homem no qual sempre se constituiu o "Homem Novo" soviético, isto é, a objeção à potência do humano tal como ela é, em prol de uma realidade impossível no qual nossa espécie teria superado a si mesma a qualquer custo. Podemos bombardear Solyaris o quanto quisermos, quem sabe destruí-lo, mas jamais destruiremos aquilo que lhe permite frear a nossa marcha incessante: a própria produção desejante que não é outra coisa senão nossa natureza.
O sovietismo só fez pela negatividade - e a (tentativa de ) redução da diferença ao Mesmo da contradição à Hegel, pondo-se em um eterno movimento rumo a um futuro que jamais poderá ser por sua própria condição ontológica (o que não deixa de estar em Marx, embora ele tenha sido traído aí) - o que o Fascismo, de maneira muito pior, fez pela estética, negando a natureza do homem por meio de uma supressão que o remete a um futuro que nada mais é que um passado que nunca existiu - e aquilo que o liberalismo, por sua vez, (tenta) faz(er) pelo atomismo, anestesiando a relação entre as coisas, ficando os pés em um presente oco no qual só é possível querer morrer ou (se) consumir.
De um jeito ou de outro, o homem está preso a um dilema, a uma camisa-de-força kitsch na qual sua existência plena está posta em xeque, mesmo que, não raro, ele não perceba. É a percepção disso que Solyaris provoca, mesmo no Dr. Kelvin: de repente, ele está diante de sua amada Hari, há muito morta, virtualizada pelo planeta em plena estação orbital para onde ele foi enviado como salvador. Há uma beleza profunda na tensão que existe entre Kelvin e a emoção intensa da lembrança da Hari feita presente pela provocação do planeta - é um sublime amoroso que desfaz o mesmo. A aparição de Hari é o próprio drama da existência, sobretudo, nos termos que ela se estabelece hoje em dia, com as nossas relações cada vez mais virtualizadas: ao mesmo tempo em que o virtual promove uma ampliação da nossa potência, isso tem desdobramento dolorosos, perturbação óbvia como decorrência do aumento de intensidade da nossa interação.
Solyaris em toda solidez de sua beleza é maravilhoso: E Tarkovsky, mais do que Lem, soube como colocar toda a parafernália ficcional científica como alegoria para discutir o que realmente interessava e, assim, fazer uma anti-ficção científica na forma de drama existencial: sai o otimismo - ou o pessimismo - frente ao pós-humanismo - comuns à ficção científica - e entra a afirmação do diferencial humano (o que importa no reconhecimento de nossas próprias limitações); seja em uma estação orbital ou em uma caverna, somos nós que estamos lá, o que nos põe diante do que realmente interessa, como as nossas ambições são vãs e nossas perversões são pequenas. O que Tarkovsky trouxe nos anos 70 é o que está posto de forma clara hoje, isto é, o buraco é muito mais embaixo.
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