Baruch de Spinoza é chave na compreensão do pensamento contemporâneo e, não à toa, ele acaba sendo um tema recorrente por aqui. O sistema que ele desenvolveu em seus poucos (e precários) anos de vida teve um impacto violento na história da Filosofia, tendo reflexos evidentes - e reconhecidos - sobre as obras de Leibniz, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche e toda a construção do pensamento contemporâneo, a começar por Heidegger, cuja obra gerou um impacto em relação ao qual não é possível ficar alheio
A relação entre Heidegger e o legado spinozano ainda é, sem dúvida, a grande polêmica filosófica dos dias atuais. Em primeiro lugar, porque Heidegger, na trilha de Ortega y Gasset e Husserl, busca trazer a transcendência de volta à centralidade do pensamento ocidental, justamente por ser - a exemplo dos dois outros - suficientemente inteligente para saber da importância do pensamento da Tradição para a manutenção da Ordem.
Ademais, porque Heidegger conseguiu captar que os dois golpes mais duros dados contra a transcendência foram, a saber, conferidos por Marx e Nietzsche, cada um ao seu modo, por conta da influência de Spinoza na obra - aparentemente dispare - de ambos. A tentativa de destruição da "ontologia" presente na obra heideggeriana, portanto, é muito mais um ataque à maneira como Spinoza põe em xeque a transcendência do que uma tentativa de reconstrução da filosofia ocidental.
Grande parte da reflexão teórica de Heidegger, portanto, começa a parir de um diálogo com a obra spinozana, o que é marcado por concordâncias estratégicas que, no entanto, chegam ao inevitável ponto divergente quando tocam em um item, digamos assim, sensível: a Liberdade. E debater a Liberdade em Spinoza e Heidegger equivale a entrar em um terreno pantanoso que nos conduz à própria questão da relação do homem com sua existência.
Para Spinoza, a constituição do real é unitária, imanente e, à maneira dos velhos estóicos, actuosa. Não há negatividade ou transcendência, portanto, sua resposta para clivagem fundamental estabelecida pelo pensamento tradicional - sobretudo em Aristoteles, a saber, a divisão entre potência e ato -, é que a Natureza é ato puro - em outras palavras, o ser é determinado pelo agir, não há uma clivagem de forma real; há, na verdade, uma unidade entre eles. Uma coisa só pode existir pela afirmação de sua potência em ato - o que se dá pelo fato dela diferir de forma intensiva da multiplicidade na qual já se constitui o plano da existência. Não pode existir uma não-coisa, um negativo, um nada - exceto como ficção.
Existe, portanto, apenas uma Substância, una, seus atributos e seus modos - os seres, portanto, são modos da Substância. Ser é funcionar como modo - portanto, é uma relação (e ser um vivente, ainda mais um vivente humano, são determinadas formas dessa relação). De tal maneira, a liberdade humana se constitui justamente pela ação na qual o homem supera as paixões tristes - que lhe são produzidas, como a tristeza, o desespero, o medo - e assume a positividade da natureza.
Como o próprio nome sugere, o efeito que uma "paixão" produz é um síntese passiva, algo que afetou um modo, reduzindo ou aumentando sua capacidade agir. Nos grupos humanos, desde tempos imemoráveis, o discurso de dominação sempre teve por fundamento, precisamente, a produção de paixões tristes - na esteira de uma matriz, ela mesma infundada -, pois elas reduzem a capacidade de agir daqueles para qual se volta o discurso e, por conseguinte, tornam-se súditos ou escravos de uma determinada Ordem. O medo é capaz de fazer os homens lutarem contra si como se por si fosse - na reflexão que serve como pedra de toque do magnífico Tratado Teológico-Político spinozano.
E o medo, tanto em Spinoza quanto em Heidegger, é a tristeza motivada pela possibilidade de um acontecimento futuro ou passado - portanto, incerto ou já ido - e desditoso. O medo, a exemplo da esperança, são, como descrito por Spinoza em sua Ética, meras ilusões. Em outras palavras, a morte perde, em Spinoza, seu status de ser um outro em relação à vida, uma vez que não há um equivalente negativo de uma positividade, ela é colocada em seu devido lugar: como a designação genérica para uma série de acontecimentos que marcam o limiar da vida, logo, ela é aquilo que lhe dá forma. Se a morte é esse limiar genérico da vida, a consciência do que ela é - logo, do que é a própria vida -, é aquilo que permite o homem viver cada instante como se fosse seu último - logo, como se fosse o primeiro de uma vida nova -, podendo, por conseguinte, viver intensamente.
É a partir daí que se estabelece a divergência entre os dois, com a objeção heideggeriana quanto a relação do homem com a morte: o medo, de fato, consiste em uma tristeza devida a um acontecimento meramente hipotético, uma ilusão, mas isso muda no que toca aos eventos futuros e certos como a intransponível morte. É nesse ponto que Heidegger postula uma filosofia fundada na inquietação - ou melhor, na ansiedade - existencial do homem frente à sua finitude. Não é aceitável, para Heidegger, que o homem posto frente ao seu destino seja mais forte, mas sim que isso tal revelação lhe ponha diante do negativo, do nada referente à sua própria finitude - e que a proposição spinozana, por sua vez, não seja nada mais do que uma forma escapista reconfortante.
O problema da objeção heideggeriana a Spinoza, cujas influências desembocam tanto no existencialismo quanto na obra de Michel Foucault - que estrategicamente refuta uma série de proposições heideggerianas, mas não exatamente essa - reside, justamente, no fato de que, como demonstra Spinoza, a construção do aparato teológico-político - um discurso de dominação fundado no medo - jamais dispensou em sua cerne o amparo do desespero - ou mesmo da ansiedade - frente a morte - o que em outras palavras, consiste no estranhamento da própria vida tal como ela é. Ao fazer isso, Heidegger, habilmente, busca reconectar um dispositivo neutralizado por Spinoza no que diz respeito às contingências da vida - ou a idealização do natural operada pelos filósofos (metafísicos) ao longo da história, tal como levantado por Spinoza no início do Tratado Político.
Os pontos-chave são, a saber: a inquietação frente a morte não é um dado, mas um elemento construído - com particular zelo ao longo do tempo, diga-se -, portanto, uma filosofia que se prenda a aceitar a morte enquanto problemática retorna ao teológico, assumidamente ao não, por desconsiderar o iminente perigo que representa a transcendência (mesmo finita), sobretudo no que toca a desvinculação entre expressão e ação. Depois, chegamos a um outro problema, que é precisamente a impossibilidade da discussão acerca do negativo como outra coisa senão ficção, uma vez que nada existe senão pela afirmação de sua potência em ato - o negativo, no máximo, se presta a exercer determinada função em operações abstratas enquanto instrumento ficcional, isso não quer dizer que ele tenha condições para se concretizar de forma real (ou ser elemento de sua constituição).
Para a morte ser um problema verdadeiro, seria necessário assumirmos o risco de propor uma substancialização do que é, por natureza, insubstancializável para, assim, ser possível tê-la como oposição suficiente à vida -e não apenas como o seu delimitador. Seria preciso ontologizar a morte, o que careceria de fundamento - uma prática não estranha à teologia, convenhamos. Talvez isso ajude a nos explicar a postura crítica de Heidegger frente à mathesis universalis proposta por Spinoza - e, por tabela, da sua construção geométrica vista na Ética. Em outras palavras, reiteramos que Heidegger reconstrói, de forma sofisticada, a justificação do temor como problema humano real - o intransponível se põe lado a lado como o universal que, não raro, não passa de modo universalizado na filosofia kantiana -, o que denota mais vínculos com o pensamento ultradireitista da primeira metade do século 20º do que seus defensores gostariam de admitir - na insistente tarefa de separar o Heidegger filósofo do Heidegger filiado ao Partido Nazista.
Como já debatido por aqui, o fascismo foi construído sobre o paradigma do horror àquilo que é próprio da Vida - a ruga, a folha seca que cai, a ferrugem no metal etc -, dentro de um esquema idealista agudo no qual o contingente é posto como desgraça, atitude frente a qual, só nos resta temer como se fossemos velejadores em alto-mar sob uma tempestade. A construção da Liberdade em Spinoza, ao contrário, passa por um caminho diferente, que é precisamente o de amar o mundo incondicionalmente tal como ele é, enquanto meio necessário para afirmar a positividade da Natureza, não se apegando a fantasmas - nadas, negativos, superstições e quetais - pela próprio impossibilidade dos mesmos existirem concretamente. A objeção heideggeriana nos torna escravos da perseguição de um fantasma, o que é inaceitável.
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