Recentemente, o nosso Bruno Cava, publicou uma bela resenha a respeito de A Crise da Economia Global (Civilização Brasileira, 364 páginas), coletânea de nove ensaios organizados por Andrea Fumagalli e Sandro Mezzadra que traz, por sua vez, o resultado de uma série de discussões acumuladas pelo pessoal da UniNomade da Itália acerca da crise atual. A contribuição do pessoal ligado ao pós-operaísmo, nem preciso dizer, é fundamental para a compreensão das transformações no Capitalismo nos últimos quarenta anos e, por tabela, para entender o presente momento.
Não vou repetir o que o Bruno colocou lá, até porque não conseguiria fazer de forma tão precisa, mas o argumento central que perpassa o livro é que a financeirização não é um mero acidente, uma anomalia do capitalismo contemporâneo, mas sim uma consequência imediata do seu desenvolvimento, no qual o lucro converte-se cada vez mais em renda financeira - marcando, assim, uma sólida objeção ao neokeynesianismo. Tampouco, é a financeirização um fenômeno meramente "econômico", uma vez que ele toma a forma de governança - o que está definitivamente escancarado na Europa contemporânea, mas não deixa de ser uma realidade ali, acolá, aqui...
O que me interessa fundamentalmente no livro em questão, mais do que aquilo que ele diz, é o debate que ele abre. Duas coisas me chamam a atenção nesse sentido: a questão do tempo e o direito à insolvência.
Sobre a primeira, se o bom pensamento contemporâneo se atém com certo êxito à questão da teologia-política - e também da teologia-econômica, como o fez Giorgio Agamben no Reino e a Glória -, mas é preciso pensar como isso se articula com a teologia-histórica. E quando falamos em História, a questão do conceito de tempo é fundamental - como nos lembra Peter Pál Pelbart. O conceito moderno de tempo - que, na verdade, é elemento fundamental e fundante da própria modernidade - é uma diacronia tripartida: Passado, Presente, Futuro, se concatenam numa linha reta que teria natureza substancial. Uma ideia com efeito, tão formidável quanto é fantasiosa.
Qual o fundamento desse conceito de tempo? Sem dúvida, o Futuro, uma vez que ele é, dentre todos os três elementos constitutivos que não tem fundamento; se o tempo é duração da existência, logo, o que haveria de ser algo que, por definição, não existe ("ainda", dirão os incautos, mas é fato que o amanhã jamais chega enquanto amanhã). O Futuro está para o tempo como o Deus-Pai está para a Trindade, portanto; é dele que derivam Presente e Passado, uma vez que a perspectiva de marcha progressiva, inadiável e incontrolável transforma o aqui-agora em mero "presente", isto é, uma mera etapa, cujo princípio estaria em um "antes" (o Passado) e se voltaria ao que interessa (o Futuro, na verdade o movimento "para frente", uma abstração destinada a coordenar o movimento...).
Trata-se de um esquema trinitário, cujas feições, incontestavelmente, o equiparam a um dispositivo - no sentido etimológico de dispositio, que sendo uma das traduções latinas possíveis para oikonomia (e sendo a última uma ideia aristotélica ou de sua escola), passa sempre pela lógica da mediação articulada sempre na forma trinitária...
Se deixamos de viver pela expectativa de tristezas que ainda não aconteceram (medos) e pela resignação de alegrias que serão, supostamente, vividas (esperanças), então é fundamental fazer com que o Futuro seja tomado como concretude. É um jogo de espelhos baseado na ilusão de que o depois chega enquanto depois. Uma farsa. Mas não basta para tal construção um binarismo simples, um agora e um depois, é preciso tirar do aqui-agora toda sua potência, enunciando que os fundamentos do agora estão no antes e não na atualidade dos efeitos do que foi construído.
No capitalismo contemporâneo, o mercado, enquanto instância alegórica fundamental do exercício do arbítrio, converte os medos na indústria dos seguros (e dos seguros dos seguros, as imagens de imagens) e converte as esperanças no mercado acionário, como bem observado pelo Bruno. A própria Teologia-Política - a força que se põe, agora, de forma oculta, na medida em que é importante não desnaturar a naturalidade das relações econômicas - se vale desse conceito de tempo: a concretude da ficção da dívida é fundamental para o Estado, máquina teológico-política definitiva, que subjuga os viventes enquanto súditos sob o discurso de que eles lhe devem a vida (e partir dessa dívida fundamental, surge o fundamento de legitimidade de qualquer espécie de dívida).
É aí que encontramos o gancho para a questão do direito à insolvência. O direito surge da dívida (finitas e em blocos móveis, mas já visando a sua infinitude e sua imobilidade) como nos lembra Nietzsche. O sistema de direitos e obrigações (não à toa identificadas com "deveres") corresponde à bipartição crédito-débito, isto é, alude a uma dívida cuja existência é hipotética. O direito estatal é uma das formas mais brutais de domínio porque prevê uma dívida infinita e não realocável - basta pensar no sistema de pagamento de tributos. Um direito à insolvência é a subversão máxima do direito estatal porque representa a neutralização do conceito de dívida infinita - na forma de afirmação do aqui-agora, da potência -, a fantástica ideia de ser creditado a um sujeito poder não ser debitado pelas condições impostas.
Isso tem todo significado em uma economia na qual as pessoas produzem o valor que não lhes é retornado e, para que tal valor se realize, lhe é "emprestado" a riqueza social que elas mesmas já produziram para compra...o que elas produziram...O homem endividado é uma das expressões máximas da nossa época, como nos lembra Negri, mas é possível, a partir daquilo que ele se empoderou por conta da dívida, que se reconecte as partes que atritam no vazio e, assim, se realize sua potência perdida. Um passo importantíssimo para tanto é dizer que o rei está nu - e hoje, isto é o mesmo que dizer que o Futuro nunca chega. Se o Homem não é nada e o tempo é tudo, é preciso construir um conceito de tempo, material, potente e funcional para operarmos o corte Histórico do qual depende nossa sobrevivência.
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