Sarkozy e Dilma na ONU - Ricardo Stuckert |
Neste dia chuvoso de Abril, duas notícias sobre a grande cena política chegam até nós: a primeira trata do fato de que Dilma Rousseff bateu novamente o recorde de aprovação presidencial no Brasil, a outra fala que François Hollande está registrando uma vitória mais apertada no Primeiro Turno das eleições presidenciais francesas e, a julgar pela boa votação de Marine Le Pen, ele terá uma certa dificuldade em um Segundo Turno para o qual, entretanto, ainda é favorito.
Dilma é um fenômeno assentado na popularidade herdada por Lula, pelo momento relativamente bom que vive o país e por não representar, pessoalmente, a ameaça que seu antecessor se afigurava junto à classe média tradicional do sul-sudeste. Ainda, Dilma vive uma situação curiosa: ela alterou, sem muita cerimônia, alguns vetores importantes do modo de fazer política do governo Lula como, por exemplo, a relação com a grande mídia - que antes era de confronto, agora é de aliança como Palocci defendia - e com os movimentos sociais e ativistas em geral - que foram colocados na berlinda.
Com isso, Dilma agrada quem simpatiza com o PSDB e mesmo quem votou em Serra, enquanto, pela falta de uma oposição consistente à esquerda, ela não tem perdido essa fatia do eleitorado - que é precisamente a mais fiel ao PT em termos históricos, mas que não está tão satisfeita assim e ainda é saudosa de Lula. Dilma agrada tucanos e desagrada petistas porque acha que já tem os segundos e precisa pregar para não-convertidos, além de, também, suas convicções pessoais - que passam por um asceticismo gerencialista.
Também não é de se ignorar a má relação de Dilma com os intelectuais: se FHC, intelectual de cátedra, só agradava sua patota - não era de se estranhar, dificilmente um intelectual no poder faria o contrário - Lula, político nato e não-intelectual, ouvia a todos, os fazia sentir ouvidos e fagocitava-lhes o que lhe interessa e só não teve relações com os intelectuais que o rejeitavam. Dilma é diferente porque não é intelectual e tampouco é política nata, não está disposta a afagar o ego de ninguém e confunde ouvir os outros com indulgência: manda de forma centralizada e deixa isso claro.
Os intelectuais estão em choque: qual o seu papel diante de um governo muito popular e que não os ouve? O governo Dilma torna-se, assim, um fenômeno tão preocupante quanto exótico nascido no meio da disputa que mobilizou o Brasil nas últimas duas décadas. Ironicamente, o desintelectualismo falsamente atribuído a Lula pela pequena burguesia encontra, na verdade, sua forma acabada em Dilma e junto disso recebe aplausos das camadas médias.
Na distante terra francesa, o pêndulo move-se em direção contrária: em um país, ao contrário do que o imaginário esquerdista brasileiro supõe, tendente à direita, o governo altamente desmoralizado de Sarkozy ruma para a perda de uma reeleição que poderia ser tranquila, embora boas doses de xenofobia ou mesmo do tradicional conservadorismo brando francês lhe garantam o Segundo Turno. Hollande, seu opositor e possível vencedor do Primeiro Turno, é morno, mas ousou mais do que os socialistas ousaram desde o primeiro Mitterrand e a coalizão com os comunistas.
As estrelas dessa eleição francesa, no entanto, não são nem Sarkô, nem Hollande: são Marine Le Pen, candidata da extrema-direita francesa e sucessora política de seu pai, Jean Marie, e o esquerdista Melénchon que com sua Frente de Esquerda tentou recuperar o espírito da velha Frente Popular. Juntos, eles somaram quase um terço dos votos, enquanto os dois primeiros colocados sequer chegaram, com sua votação somada, a metade dos eleitores.
Marine, no entanto, ilustra também um voto difuso de insatisfação com a União Europeia, justamente por isso, uma parte de sua votação - estimada em 25% - migrará para Hollande, enquanto o mesmo não pode se dizer dos eleitores de Melénchon que majoritariamente devem votar em Hollande, ainda mais com seu candidato declarando apoio incondicional e sem contrapartidas a uma cruzada anti-Sarkozy.
Já o centrista François Bayrou tende a ser o fiel da balança, mas seus votos devem se repartir quase que perfeitamente entre os dois candidatos e a abstenção, o que dá, no fim das contas, vantagem moderada - e, para falar a verdade, pouco segura - para Hollande. Em termos práticos, um governo Hollande abalaria os alicerces do atual consenso europeu justamente porque seria um governo tradicional de centro-esquerda francês - e por tradicional entenda-se nacionalista e pouco disposto ao alinhamento automático com os EUA e, por tabela, com o governo Merkel em Berlim que lhe serve de tarefeira.
Basicamente, uma vitória da centro-esquerda francesa, que pouco tem a ver com a experiência petista e mais com com a experiência tucana - que, no entanto, se endireitou -, favorece ao Brasil e aos países pobres apesar do eventual protecionismo: hoje, a maior ameaça é, sem dúvida, os efeitos dessa governança tecnocrática voltada para o mercado financeiro, em relação ao qual Sarkozy é a pedra de toque, por mais que o protagonismo aparente caiba à Alemanha - e isso é suficiente para que, no íntimo, Brasília prefira um socialista em Paris ao atual mandatário, com quem tanto Lula quanto Dilma nutrem boas relações.
Seria uma vitória para a diplomacia de Dilma, que já se pegou às turras com Merkel: mas a pendenga aí teve menos a ver com o jeito de fazer política e tanto mais com a direção do projeto. E Hollande, ainda que acene para uma direção de oxigenação da política, não pertence a um partido historicamente disposto a isso - coisa que Melénchon pareceu ser, depois de décadas de paralisia mental da esquerda francesa, presa entre o estupor filo-stalinista do PCF e o tecnocratismo pequeno-burguês do PS, coisa que só Mitterrand furou levemente.
Enquanto o mercadismo implode, o Plano, repaginado, volta à ordem do dia como possível novo paradigma do Programa. É o que está em jogo por aqui.
Sei a função do intelectual é criticar, e não afagar governos. Mas não haverá nenhum comentário sobre a queda dos juros ou a respeito da rispidez da presidenta com relação à Cuba na última viagem aos EUA?
ResponderExcluirTudo bem, Rafa? Eu não me considero intelectual, a bio aí em cima é até uma ironia com isso - "intelectual clandestino" quer dizer que eu sou anti-intelectual, o que não se confunde, por suposto, com desintelectual. Mas a crítica não se volta necessariamente ao fato de eu supor, no sentido de achar que eu e os meus são obrigados, a criticar isto ou aquilo, mas diante do mérito da questão, por assim dizer mesmo: e em lugar de detalhes tópicos, eu me ative à questão da arte de governo dilmista, que é o que me interessa aqui. E também como falo de Europa, me ative mais à questão Merkel do que o enfrentamento em relação à presença de Cuba no sistema panamericano.
ExcluirJá que você os levantou, eu dou dois pitacos rápidos: o primeiro é uma posição interessante, já esboçada na viagem dela à Ilha há pouco, e que força Obama a assumir aquilo que ele voltou atrás por pressões do seu Departamento de Estado que era, não custa lembrar, distender relações com Cuba. Sobre os juros, eles já deveriam ter caído antes porque - sem entrar no mérito de uma série de questões mais complexas -, a economia brasileira desacelerou desde o ano passado, o que é um processo até normal no qual a previsão de inflação e de crescimento caíram juntas, o que dentro de um panorama desenvolvimentista que as taxas caíssem mais radicalmente desde antes. Dilma precisa, dentro do seu projeto, radicalizar a postura de forçar, via bancos estatais, a capilarização e expansão do mercado de financiamento de consumo interno das pessoas físicas, uma vez que os bancos estão capitalizados, mas preferem se acomodar e viver do baixo risco das operações com títulos da dívida: nesse sentido, baixar os juros é acabar com esse marasmo e, ao mesmo tempo, lhes estimular a emprestar dinheiro para os pobres.
Mas não se iluda, ainda que seja desejável a diminuição dos juros vai construindo todo arcabouço de economia da dívida e gestão rentista da vida que está em colapso no mundo rico. Não que o Brasil não tenha uma relação histórica com a dívida, mas certamente num patamar muito menos complexo com a questão da dívida pública e suas implicações na nossa vida: falo, portanto, na construção interna de uma economia na qual as pessoas estão pessoal e privadamente endividadas num processo que é, por suposto, social. É claro que me interessa juros menores e acesso dos mais pobres aos bens e serviços, mas é preciso operacionalizar essa posse e trabalhar uma questão que eu julgo de mais alto relevo atualmente: o direito à insolvência.
abraços