terça-feira, 1 de maio de 2012

Dilma e a Dívida Infinita

A Noite, Beckmann
Na véspera do Primeiro de Maio, Dilma Rousseff surgiu na televisão e, a exemplo do ano passado, não deixou de fazer uma declaração eloquente nessa data: atacou os bancos comerciais, criticou as altas taxas de juros que eles praticam - a despeito das quedas na Selic - e fez aquela que, sem dúvida, foi sua fala mais corajosa no ano, ancorada numa popularidade recorde e na implosão de sua oposição. A fala de ontem, comemorada entre apoiadores desanimados, mais do que um gesto de petismo aflorado foi, sem dúvida, um eco do velho trabalhismo de onde a Presidenta é, afinal de contas, egressa: só que não é isso que nos interessa, mas as implicações do gesto de ontem - o primeiro de cunho massivamente público - sobre a economia da dívida.  

Dilma tem um problema dentro do seu projeto: ela precisa de uma ampliação do mercado interno, tanto pela via do aumento de salários e empregos quanto pela ampliação e capilarização do mercado creditício. Sobre o segundo item, é fato que para além de uma taxa Selic alta, os bancos comerciais ainda sustentam altas taxas e estão pouquíssimo preocupados em fomentar o consumo - existem atividades mais seguras e rentáveis como o próprio financiamento da dívida pública. Mesmo que a manutenção da taxa sobre cheque especial, p.ex., não seja compatível com as últimas quedas da Selic, é o valor ainda alto daquela taxa que permite essa morosidade nas quedas, pois torna o mercado de financiamento da dívida pública um centro de gravidade irresistível para os fluxos de crédito.

É fato que Dilma poderia determinar uma nova queda da Selic, a taxa de juros de curto prazo, mas nesse momento, ela precisaria mexer na fórmula de cálculo do reajuste da poupança - o que não seria prudente num ano eleitoral - e, ainda assim, restariam taxas altas para o fomento ao consumo porque elas não se devem unicamente ao valor da Selic, mas à própria desídia dos bancos em concorrerem nesse segmento: é cômodo viver dos títulos da dívida pública, por menor que seja a inadimplência dos consumidores.

Nesse sentido, ela foi inteligente em repetir o gesto de Lula, no auge da crise em 2009 e, assim, usar os bancos estatais para furar esse acordo de cavalheiros entre os bancos privados. Para entender melhor isso, é preciso recapitular ao início do Governo Lula e seu principal feito: ter nacionalizado a dívida pública - até ali conhecida pelo palavrão "dívida externa". Esse foi o verdadeiro giro copernicano de seu governo: reposicionar a principal dívida econômica do Estado e, assim, alterar uma série de relações políticas, sociais e econômicas.

Vejamos, o processo descrito não implicou apenas no "fortalecimento" do Brasil junto à comunidade internacional, mas sim em outro ponto pouco explorado: o sistema bancário brasileiro é recente e atrofiado, se desenvolveu parasitando a hiperinflação - e quando ela acabou, entrou em colapso demandando dinheiro público, na saída privatista que FHC fiou via Proer - e não tinha nada a oferecer para o fomento ao consumo. A abertura do mercado brasileiro a bancos estrangeiros, verificada nos anos 90, não funcionou 

Lula, ao repassar a dívida pública para os bancos lhes deu fundos pela primeira vez na história e, a partir daí, pode estruturar uma política de alavancagem do crédito. O ágio favorável ao mercado financeiro que existe entre a emissão de moeda pelo Estado brasileiro e a remuneração do Estado pelos títulos da dívida é, na verdade, o custo do recém-inaugurado sistema creditício nacional. A manutenção da dívida pública é, na verdade, meio: o Estado paga os bancos, emite dinheiro, faz reserva em moeda estrangeira; os bancos ficam capitalizados e passam, assim, a ter meios para emprestar dinheiro e, por fim, a realizar o valor no capitalismo nacional.

Isso está no mesmo patamar do que foi o New Deal para os EUA ou aquilo que representou a Boa Nova na história do monoteísmo: uma renegociação da dívida infinita, gerando uma alteração da articulação dos modos estruturantes das relações. Mas Lula deixou o processo inacabado: graças à internalização, ele foi obrigado a manter taxas de juros abaixo das de FHC, mas ainda altas - em relação sempre ao tamanho do crescimento do PIB e da inflação projetados - e, por tabela, bancos preguiçosos para emprestar dinheiro - o que só aumenta o custo do crédito para o consumo. 

Dilma não descerá tão cedo a Selic, mas pode baixar as taxas praticadas usando os bancos estatais - Banco do Brasil à frente -, o que força os bancos privados a se moverem - embora o valor da Selic em relação as taxas de crescimento e inflação do Brasil ainda os deixem, não à toa, pouco preocupados em fomentar consumo de pessoas físicas (por mais baixo que seja o risco da primeira atividade, mexer com títulos da dívida pública é igual a risco zero no novo Brasil). É um paliativo funcional, embora no médio prazo a Selic precise cair mesmo, por mais transtornos que mudar a forma de cálculo da poupança possa lhe trazer.

Esse pequeno tour pelo Brasil recente aponta para o seguinte: o que importa, em matéria de Capitalismo, é como se dão as relações ordenadas pela dívida e como aquela designa as relações de sujeição na sociedade, dentro de sua dinâmica conflituosa - uma vez que mais do que os produtores estão alijados dos meios de produção como, também, produção de valor e sua respectiva realização estão separados perpetuamente neste sistema. 


A luta de classes, ainda em curso, não pode ser enxergada de forma desvinculada ao modo como o financismo se articula e a dívida, por sua vez, ocupa uma posição central nas relações humanas: mas a problemática em questão é ambígua, se a apropriação de bens e serviços via dívida prende, em um extremo, os viventes a uma certa escala de servidões, no outro, verificamos que a dívida é ficcional e a posse daquilo que foi adquirido é real. O sistema nunca esteve tão garantido quanto está ameaçado e mesmo que nada vá se operar por si só, o campo está aberto, sobretudo no que toca à reivindicação de um direito à insolvência, talvez o único direito que mereça ser realmente reivindicado pelo seu caráter intrinsecamente anti-jurídico.




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