Savonarola (Bartolemeo): o moralista anti-maquiavélico |
Para ser bastante direto, no que toca ao mensalão, este blog, como não poderia ser diferente, não irá rufar tambores pela condenação de quem quer seja no julgamento do STF, seja o petista José Dirceu ou o tucano Eduardo Azeredo - e de qualquer um outro suposto envolvido - porque, ao contrário de ambos, não é punitivista e também porque não crê em saídas penais (que costumam ser entradas em becos sem saída infernais), muito menos para problemas políticos, que se resolvem com a devida reforma.
Não serão os tribunais da razão que darão resolução ao problema, ainda mais diante de um nexo de coisas tão confuso, no qual a decisão "justa" seria a abolição do sistema pelo próprio sistema como em uma autodestruição. Mas, ainda assim, nos resta tecer alguns comentários sobre o cenário geral.
Se a filosofia aparece, desde tempos imemoráveis, sob as mais diversas máscaras concebíveis, é certo que com a doxa - a glória, a aclamação ou a mera opinião - também não é muito diferente: no Brasil de hoje, apesar das conquistas todas, ela vem na forma de uma curiosa telenovelização do debate político, o que se espraia da mídia tradicional até as redes sociais. Da direita mais anti-democrática à intelectualidade de esquerda.
É dessa conversão de tudo em dramalhão, do estímulo à má consciência e da produção constante de superstições que se faz a cortina de fumaça do que realmente interessa: a questão social, a urgência da crise ambiental a problemática da política. Isso ajuda a explicar toda a história do mensalão, cuja incessante e pouco desinteressada repetição ocupa boa parte do dito noticiário político nos últimos anos.
A mídia de massa tradicional, presa a interesses que vão do comezinho sensacionalista - que demanda vilões, mocinhos etc - até interesses políticos e econômicos maiores - que importam na sua própria sobrevivência - assume as rédeas do processo, cria histórias para justificar suas teses e condena previamente quem ela deseja. Para completar o quadro, é preciso lembrar que se setores da nossa política vivem de certo idealismo e purismo, outros são suficientemente espertos para manipularem isso.
De repente, toda a disfuncionalidade histórica do Congresso Nacional é narrada de modo a parecer que ela foi causada por um governo em específico, em um fantasioso esquema de compra por votos - o que cai por terra rapidamente quando as investigações avançam e chegam até um influente político da oposição. Os anos sequer pouparam um outro senador, há pouco alçado a paladino da moral, mas rapidamente desmascarado (e mesmo seus aliados mais íntimos se declaram traídos, afinal, como ele pode ter nos enganado por tanto tempo?)
O sistema político brasileiro funciona mal, os partidos estão distantes da sociedade, a maioria deles sequer existe realmente, e o Legislativo é eleito dentro de um sistema ruim. Não obstante o fato da problemática histórica do Estado. O Congresso Nacional, que consegue piorar a cada legislatura, vive da defesa de seus lobbies, configurando-se em uma constante ameaça de desgoverno para o país: seja pelo seu modus operandi ou pela chantagem que exerce.
E desgoverno é diferente de antigoverno, é uma catástrofe só pode gerar alento em mentes niilistas suficientemente bem colocadas, ou iludidas, para não naufragarem, ou acharem que não vão junto. O que se passa na zona cinzenta entre o executivo e o legislativo importa por completo tanto quanto não importa. É uma zona de guerra, que não raro é desenhada como zona de paz conforme o sabor do momento (e do adversário).
Fica a lição, para todas as partes envolvidas, do velho Savonarola, o moralista militante e antítese de Maquiavel que tentou purgar a Itália renascentista da corrupção como se ela fosse uma entidade transcendental e onipotente, mas terminou provando de seu próprio veneno e morreu queimado nas mesmas fogueiras que tanto incitou contra os outros - e isso vale para a esquerda que hoje queda vítima desse ardil, mas que alimentou durante anos essa perspectiva moralista de política, quanto para a oposição oportunista que se regojizou com a presente situação, mas que morre pela língua de uma forma tão rápida que é digna de piada.
O que está em colapso aqui não é este ou aquele partido, tampouco as "instituições" - como se sua funcionalidade não compreendesse uma disfuncionalidade permanente, uma doença crônica -, mas a perspectiva moral(ista) de pensar e de fazer política e, sobretudo, como a glória sem limites, seja das fogueiras dos autos-de-fé ou da mídia, produz uma luminosidade tão intensa que nos deixa cegos. O Brasil está aí, ao lume, e, curiosamente ou não, os pobres que ignoraram tudo isso até agora, são aqueles que continuam a ver a nudez do poder como a sua roupa definitiva.
Oi, Hugo!
ResponderExcluirFico com o final do seu post: O Brasil está aí, ao lume, e, curiosamente ou não, os pobres que ignoraram tudo isso até agora, são aqueles que continuam a ver a nudez do poder como a sua roupa definitiva.
Não tenho TV em casa faz um bom tempo. Falando em tempo, ele me é muito pouco para ser ocupado com outras coisas que não o trabalho e os estudos, então mal e mal ouço alguma coisa no rádio ou pego um jornal ou revista para ler. Fico sabendo das coisas pela internet, nas conversas no trabalho, na rua. Pela internet sei que o julgamento do chamado mensalão é destaque nos noticiários. Já li até que a Globo anda tentando desbancar a audiência da Record com ele, mas o fato é que, ou meu bairro está totalmente desconectado do mundo ou o Julgamento do mensalão não esta sensibilizando ninguém. Sei tudo o que se passa na novela das 9:00 sem nunca ter assistido um capítulo inteiro. Fico por dentro do desempenho dos atletas brasileiros nas olimpíadas sem assistir aos jogos, mas se depender da rua pra saber o que se passa no Julgamento do mensalão, fico quase como estou, sem saber de nada. O povão mesmo, não tá nem aí. E eu tenho um palpite. A mídia apresenta os fatos de uma maneira tão truncada, tão complexa e contraditória que acaba por fazer pouco sentido. Acho difícil você encontrar alguém que nunca ouviu falar sobre o mensalão, mas pede para explicar. Pede.
Esse julgamento, que na verdade é o julgamento do PT, me lembra os tempos da República Velha, em que as oligarquias, que governavam o país a seu bel-prazer, sempre davam um jeito de fazer a oposição pagar na justiça pela ousadia de vencê-las nas urnas (na verdade não havia urnas ainda, mas livros com as lista dos eleitores). Acostumadas a emplacar seus candidatos através de fraudes eleitorais, quando alguma coisa dava errado e alguém da oposição vencia, impedia-se a posse na justiça, acusando o ousado vencedor de _ adivinha? _ fraude eleitoral. A condenação era certa.
Ah, a TV já está me fazendo falta...
Pois é, Edu, você pegou o espírito da coisa.
ExcluirEsse termo é muito esquisito. "Mensalão". Tem gente que diz que é compra de apoio parlamentar com dinheiro público. Outros que é lavagem de dinheiro. Outros que é gestão fraudulenta de instituição financeira. Outros que é o crime de estar filiado ao PT. Tem gente ainda que coloca toda irregularidade que aconteceu no governo Lula como "mensalão". Afinal, o que é mensalão?
ResponderExcluirQualquer coisa que sirva para fazer nada ser tudo culpa do Lula.
ExcluirPois, é, Duda...
ResponderExcluirO Mensalão que está sendo julgado agora no STF mistura elementos do que seria uma prática de compra de votos dos parlamentares por parte do governo federal, ou de membros do PT dentro do governo federal, com indícios de um caixa 2 com as sobras da arrecadação da campanha de Lula para a presidência da república. E mais uma acusaçãozinha aqui, outra ali que, somadas, descaracterizam a acusação de "mensalão", ou seja, de compra de votos na Câmera. A formação de caixa 2 e o desvio desse dinheiro parece ser uma das poucas coisas concretas que se tem. Até porque é prática comum nas campanhas eleitorais de qualquer partido, talvez não de todos. Bom, pelo menos é isso que eu sei. Ou acho que sei.
Fico imaginando como seria o Brasil se a nossa imprensa fosse tão ciosa da moralidade política com outros partidos também, e não só com o PT. Seria uma benção para nosso país.
texto preciso, Hugo. Grandioso. O efeito do "estardalhaço midiático" é esvaziar, atravessando (de forma transversal), a juridicidade.
ResponderExcluirAchei ótima a ilustração (tão transversalista quanto) de Girolamo Savanarola que odiava o humanismo por "corromper" os costumes, a poesia, a arte e a religião. Ele assumiu o posto de pregador do convento de São Marcos e se posicionou contra os "vícios" do clero e os abusos do governo. No seu famoso sermão, condena Florença por ter se tornado uma cidade "infame" ao acolher a "sodomia". O seu grande poder retórico comoveu platéias. Objetos que celebravam o passado clássico: livros, ornamentos, perucas, quadros, mesas e cartas de jogo, foram consumidos em grandes fogueiras. Seu poder alarmou tanto o Papa quanto os Médicis, que lhe conseguiram um julgamento eclesiástico e Savanarola foi executado da forma que você descreveu.
Abraço
Convenhamos que é uma história sempre válida, mestre Dan. A política brasileira, e a nossa esquerda, estão aí para provar tudo.
ExcluirHugo ao não condenar nada, tb não se absolve tudo? Se as instituições são imperfeitas, o que dizer de pessoas que se comprometeram em mudá-las, e se não mudá-las pelo menos agir de forma diferente? Ana Paula, não sei minha URL e vou por isso colocar anonimo(a)
ExcluirAna, a questão é outra, não é o caso de absolver ou condenar, mas de tentar reorganizar o nosso sistema político que funciona assim mesmo, na mão seja lá de quem for, embora só gritem quando se trata do PT.
ExcluirO PT paga hoje seus anos de atuação como "UDN de macacão" [palavras do Brizola]? Nem isso. Os indignados de hoje serão os pragmáticos de amanhã e a cortina de fumaça continua ocultando a natureza do sistema que mantém as coisas como estão. Li recentemente um artigo sobre a situação política no México e, com todas as diferenças, o que há é um longo processo de "reformas" políticas dominado sempre pelo velho PRI em nome da continuidade. Continuidade de quê? Na superfície fica a continuidade do que veio de Minas com Azeredo e companhia e continuou com as articulações entre PT e PL/PP/PTB: o uso de caixa 2 para amarrar o processo político a grupos econômicos [e se alguém fala de PSDB mineiro e mesmo alguns bancos estão no julgamento, NINGUEM parece querer saber de que caixa 2 veio todo esse dinheiro. Só que num nível mais complexo a continuidade é a da "governança corporativa" que o capitalismo tardio promove em todas as esferas políticas. Esse não é um problema especificamente brasileiro nem latino-americano. Ele existe, com suas particularidades, na Espanha, Israel, no Egito, nos EUA, na França, na Inglaterra, na Grécia, na Rússia, etc.
ResponderExcluirSim, Paulo, há um estado de coisas que envolve todo o jogo - e que o PT nasceu como alternativa -, mas é bom frisar que a maneira como ele opôs a isso não foi congruente com a demanda real de atuação dentro desse jogo, caso se tornasse, como se tornou, partido hegemônico. Nesse sentido, ele acabou pagando um pouco desse preço sim, embora não no sentido moral como o velho Brizola colocava. Os efeitos disso são um certo pragmatismo vazio, circular e não raro pouco inteligente por parte de algumas alas do PT e o surgimento do PSOL, ainda mais eivado do moralismo cristão, idealista e cheio de modelos, que tende a ser um presa ainda mais fácil para o Poder.
Excluirabraços
Acabei escrevendo um post no meu blogue com o comentário que ia postar aqui. Qualquer incauto que tem esperanças num suposto poder regenerador desse julgamento deveria reler alguma retrospectiva da atuação da ala Lacerdista da UDN [e de grande parte da imprensa que ainda hoje pauta a opinião pública] durante os governos Vargas e JK. Um espetáculo histérico em nome da moral pública que desembocaria em Jânio quadros e depois em 1964, movimento cujo conteúdo anti-corrupção era tão importante quanto o anti-comunista, porque a cruzada moralista garantia o apoio ou pelo menos a conivência da maioria da tal opinião pública.
ResponderExcluirmeu post está no paulodaluzmoreira.blogspot.com
E, sim, Paulo é por aí mesmo. A direita brasileira sempre vai nesse sentido e é possível que se não tivéssemos a eleição do PT em 2002, talvez o Brasil estivesse hoje como o México - que sucumbiu à guerra às drogas, ao alinhamento automático aos EUA e à privatização geral. É claro que ninguém propõe frontalmente esse tipo de agenda, mas é possível desconstruir o adversário usando da superstição definitiva que é a moral.
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