Lula nas caravanas da cidadania |
Um cenário muito complexo e, ao mesmo tempo, muito simples se monta no horizonte: a recente ascensão dos tribunais na América Latina como senhores absolutos da razão, e tutores da democracia, é uma forma branca de impedir a democratização real no continente. Substitui-se a política pelo jogo judicial, quando, na verdade, é só uma forma de retirar das assembleias e da multidão a autonomia para produzir direitos -- ou mesmo tutela-la, seja pelo poder de negar reivindicações ou mesmo, do poder de chancela-las, aparecer como sumo produtor de direitos, uma ilusão recorrente em meio à esquerda: é como, de repente, que não fosse a militância gay que tivesse lutado pelo direito à união estável igualitária, entre outras coisas.
Tivemos os recentes ocorridos em Honduras e no Paraguai, onde os presidentes -- ambos coincidentemente à esquerda no jogo político local -- foram removidos do poder em decisões de exceção: a primeira, a determinação de expulsão do país que impediu o devido processo legal e resultou na destituição de Manuel Zelaya, a segunda, uma decisão de impeachment relâmpago contra Fernando Lugo, sem direito à defesa e por conta de um libelo acusatório que não tem provas. Em ambos um caso, um padrão: a suprema corte como detentora da palavra final, por ter a suprema capacidade de acessar a verdade pura, dizendo quem fica ou quem vai. O fetichismo do direito trazido às suas origens viscerais: os sábios leram nas tripas dos animais quando e se deveria se fazer a guerra.
No Brasil, não foi diferente com o dito julgamento do mensalão. O foco dado aos dirigentes petistas no processo em questão, a antecipação do julgamento das acusações contra líderes petistas -- quando aquelas que pesavam contra líderes do PSDB eram cronologicamente anteriores --, sua realização durante o pleito eleitoral e declarações de ministros de que se basearam por ilações e suposições em vez de provas fecham o quebra-cabeças.
Existe uma retórica institucionalista de canto a canto que alimenta isso. Petistas e mesmo tucanos e demistas estão contra a última decisão do STF de se arrogar como cassador de mandatos dos parlamentares -- uma hipótese ridiculamente inconstitucional --, mas os tucanos ainda falam em "palavra final" do STF -- embora saibam que não possam concordar com ela em termos gerais -- e todos falam em "defesa da Constituição" em termos bastante liberais. Mesmo os ex-partidão, o PPS, e o PSOL que se mantêm juntos na defesa da decisão do STF carregam o mesmo ranço conservador, aliado a um punitivismo e um revanchismo em relação ao PT.
Em tempos nos quais não é possível mais imaginar mudanças de poder via forças armadas, um novo deus ex-machina aparece: os quarteis dão lugar aos tribunais e as fardas às togas. Se as lutas constituintes que resultaram na atual democracia, contidas sobretudo no ciclo de 13 anos entre 1975-88, foram cristalizadas na Carta Constitucional -- que desde os tempos de Napoleão é a forma de fazer cessar a revolução como nos lembra muito bem Antonio Negri em seu Poder Constituinte -- e se tornam objeto da guarda de um órgão que decide o que está de acordo ou não com ela: há poder mais supremo do que assumir o monopólio do discurso da legitimidade jurídica de tudo que existe?
Se tudo passa a ser medido por uma máquina que funciona à base do binarismo constitucional-inconstitucional, e só um órgão controla isso, o que temos? A decisão sobre o que é constitucional nas mãos de um grupo de notáveis que é, ironicamente, do tamanho de um time de futebol. Constitucional passa a ser o que o STF dita e completa-se a boa observação de Agamben: embora falemos de Estado de Exceção, é fato que esse fenômeno não é propriedade exclusiva dos regimes jurídico-constitucionais especiais, tampouco dos regimes autoritários, mas ele opera tranquilamente por dentro das "democracias" e de seu funcionamento regular -- como na situação atual e ridícula do Estado brasileiro, na qual o STF decidiu quais recursos, e como suas próprias decisões recentes podem sofrer questionamentos (sim, vocês podem me embargar!).
Talvez Lula tenha percebido isso, ao retomar as caravanas da cidadania, viagens pelo interior do país para mobilização das massas em um momento de paralisia e desencanto, quando a democracia nascia desde já tutelada e a hiperinflação corria a vida dos pobres -- para depois ser resolvida às custas da oneração deles mesmos -- nos anos 90. Lula sabe que precisa sair politicamente das cordas e a resposta para tanto, é claro, só pode ser pela deflagração da potência da multidão de pobres e minorias, a monstruosa classe sem nome com a qual ele bailou nos últimos anos. Mas é preciso ter algo o quadro em mente, inclusive do fracasso das suas escolhas para o STF, que repetiram a mesma fórmula batida de obscuridade nos métodos de escolha de gestões anteriores: seu problema, aliás, não é ser fiel a Lula incondicionalmente, mas ter sido fiel incondicionalmente à aclamação e à glória pública do teatro da mídia.
A resposta para tanto precisa completar a própria burocratização do PT no governo, sobretudo com o gerencialismo de Dilma, e a falta de uma resposta suficiente ao "neoliberalismo" -- embora eu prefira me referir ao fenômeno que devora a terra nos últimos quarenta anos como "capitalismo cognitivo" pela, digamos, amplitude e precisão do termo. Lula e Dilma continuam, ressaltemos, bem avaliados: a opção por enfrentar a crise defendendo o emprego e os salários dos trabalhadores, a manutenção dos programas que vertem renda para a multidão -- como o bolsa família e os pontos de cultura -- e as cotas continuam aí, além de existir uma percepção geral de justiça social entre as pessoas comuns, gera isso, somado a incompetência generalizada das oposições (que defendem a manutenção dos preços das contas de energia nas alturas, por exemplo).
Isso não quer dizer, no entanto, que o PT esteja ciente do tamanho do desafio. Aumentar investimentos públicos para expandir, por exemplo, a rede de internet de banda larga pelo país era uma necessidade premente. Resolver a atual crise por meios que passem pela constituição do comum, por dentro do Estado, talvez seja ignorado: a questão é procedimental demais e preocupada demais com parcerias, e modos de parceria, com o privado. A exemplo do que fizeram Schroeder na Alemanha e Bush nos Estados Unidos, Dilma promove isenções de tributos e diminuição de alíquotas, quando poderia mantê-las e ampliar programas sociais -- e não precisaria de disciplina fiscal tão rigorosa que, inclusive, a colocasse na dividida de bola com servidores públicos --, evitando assim empresas com caixas gordos e pouco dispostas a investir em qualquer coisa (como nos Estados Unidos de Obama).
É preciso mobilizar as bases, mas é importante integra-las, do contrário o apoio pessoal terá sempre uma dimensão ampla e pouco profunda, pronta a capitular ao desejo de exceção soberana, e de fascismo, alimentado diariamente pela mídia em toda parte.
P.S. (D.B.): depois de alguns dias em marte, em decorrência dos compromissos de final de curso, volto à terra e me deparo com novidades curiosas. O Coronel Telhada, ex-matador da PM e vereador eleito em São Paulo pelo glorioso PSDB, foi nomeado para a comissão de Direitos Humanos da Câmara é piada pronta, ou melhor, seria trágico, não fosse cômico.
P.S. 2: tratei de alguns temas abordados aqui nesta entrevista dada ao meu amigo Tiago Aguiar, ao lado de muita gente boa como Pedro Serrano e Giuseppe Cocco.
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