Muitas vezes, comentados e refletimos aqui sobre uma notícia, desta vez, a questão é outra: temos uma não notícia. Há pouco mais de um ano, a notícia da desocupação da comunidade do Pinheirinho corria o mundo. Tratou-se de uma pantomina judicial lamentável, cujo resultado foi um saldo de milhares de famílias arrancadas à força do terreno no qual residiam, pacificamente, há anos. Esta notícia foi repercutida sobretudo nas mídias sociais alternativas, como este perseverante blog: duas das postagens mais lidas desta Casa em 2012 (aqui e aqui) trataram justamente do Pinheirinho, muito embora sequer tenhamos sido cobrados, reles doze meses depois, por não termos publicado qualquer coisa sobre o caso no exato aniversário do feito.
Pois bem, um ano depois, o imenso terreno no qual residiam as famílias segue vacuoso, abandonado, sem uso enquanto as milhares de pessoas estão por aí, à deriva, errantes. Se viviam em condições precárias antes, agora, depois de perderem o pouco que tinham, vagam por aí. Estão alocados numa condição pior no seleto grupo que fazem parte: dos mais de 10% da nossa população que se encontram na zona do "déficit habitacional brasileiro", isto é, no grupo daqueles que foram deixados para morrer ao relento em (e por) nossa sociedade -- e vivem nas ruas, debaixo das pontes ou nas encostas de morros. Talvez se fale em respeito à propriedade privada alheia, mas o que se vê é a privação de propriedade e o desfazimento do habitar em comum, próprio de uma coletividade.
Não faltam imóveis em grandes cidades brasileiras, por óbvio. O número de imóveis desocupados em um município como São Paulo é semelhante ao número de famílias carentes de moradia. No Brasil, não faltam terrenos e espaço para terrenos habitáveis -- tampouco faltam terras férteis e cultiváveis, o que é a tônica do mundo, uma vez que o problema não está na produção, mas na distribuição de alimentos. É certo dizer que se trata de um mistério. Mistério no sentido teológico da coisa, pois é de teologia que tratamos quando pensamos no complexo edifício capitalista e na forma de organização política nossa, estatal. Não há excesso de produção pelo fato dos pobres consumirem -- inclusive espaços habitáveis --, mas por não consumirem, uma vez que se produz não para consumir, mas para vender, o que importa em acumulação e negociações com os excedentes -- ou mais do que isso: com a expectativa de tais excedentes, fantasmas: o excedente real é convertido em déficit prático pela maneira como é produzido, e isso não muda per se.
A educação medieval prestava bastante atenção aos intervalos, aos espaços entre, os intervalos: quadrivium; aritmética (os intervalos abstratos), geometria (os intervalos entre as coisas sólidas), música (o intervalo entre os sons) e astronomia (o intervalo entre os astros e as grandezas enormíssimas). O intervalo, eis aí aquilo que importa tanto quanto o que sobra, ele é quem marca o que é -- e a forma como ele repete é expressão do regime. A tônica do capitalismo é de largos intervalos, caóticas concentrações em núcleos: mas são os vazios, grandes espaços vazios, mesmo nas concentrações que dá o tom de como funciona a coisa; por isso, aqui mais do que em qualquer outro lugar, importa mais o que se silencia do que aquilo que se conta. Esses espaços são bolhas: desde a constituição física de um terreno como o que abrigava a comunidade do Pinheirinho às construções ficcionais das finanças.
O efeito prático é um existir vacuoso expresso em uma determinada concepção de tempo: é o tempo do nosso tempo, e é a maneira como percebemos, e em certa medida que criamos, o tempo que implica no nosso viver. Há a extensão e o movimento descrito nela, o tempo está em função do espaço, da medida e desmedida do existir. E é a reinvenção do tempo que marca uma passagem, que pode constituir uma verdadeira revolução como bem lembra Peter Pál Pelbart. A disputa pelo tempo, no entanto, passa pela constituição de uma ordem dos espaços, exige uma cartografia do terreno e uma construção que conceba a cinética: é preciso que os fluxos passem, fluam sem interditos que conduzem aos coágulos -- os grandes espaços do capitalismo são, precisamente, essas zonas de interdição, que cortam e sujeitam o movimento dos fluxos, delimitando uma métrica do tempo que estabelece uma forma de existir, submissa.
É por isso, não sem razão, que David Harvey concebe o potencial revolucionário da metrópole. É lá onde sobra, onde se excede de gente, no qual a capacidade de síntese do capitalismo esbarra no aglomerado de corpos sem encontrando que ele precisa apartar, afastar, mas não pode destruir por sua operação. É onde o tempo pode ser reinventado de modo mais livre, portanto. Como lutar contra os enormes espaços vazios? Contra o apartamento do encontro dos corpos? O que é pleno é a luta e luta é movimento, a física que interessa aqui, novamente, é tanto mais uma cinética do que uma óptica. Nas concentrações caóticas das metrópoles, causada pela pressão das bolhas vacuosas rurais, as pequenas e inúmeras bolhas internas vem à tona e são confrontadas.
Pinheirinho é um desses enormes espaços vazios. Um desses enormes espaços de vacuidade que, por ser espacial, torna-se existencial, torna-se tempo vago. Mas se a favela não pode ser objetificada enquanto fetiche pós-romântico, ela também não é catástrofe em si, mas sim resistência, nem doce, nem amarga, sublime. É esse excedente de movimento, de inquietação, de afirmação de que um outro destino possível que se trata a luta. É isso que pode tornar pleno o que é oco. É preciso lutar, protestar, discursar, articular, mas, também, escrever memórias, não de um passado, mas de um aqui-agora em esquecimento. A luta que constituía sua re-existência era o que há de pleno, e essa plenitude da luta é que nos resta frente à imagem vacuosa, a bela superfície esmaltada com seu interior oco (ou podre), que o capitalismo nos oferece.
Mais do que nunca, a palavra de ordem é Ocupar! as vastidões de mundos criados para serem estéreis, vazios, inúteis que decorrem da produção sob o regime do capital; expressões plenas da capacidade humana desperdiçada. Para além da catástrofe ou do idealismo -- ou melhor, dos dois pólos do idealismo -- existe uma instância que nos torna algo mais do que formas vazias a vagar, um desejo sonhador e impetuoso de eutopia que nos completa. É preciso ocupar o que há de vazio em nós mesmos no mesmo movimento que fazemos isso externamente: o formalismo e o idealismo são o latifúndio do pensamento. É preciso ser ingênuo, devir-criança como na fábula de Andersen, sem abrir mão jamais da coragem.
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