Marcha pró-Chávez em Caracas, ontem, 10/01 |
O presidente venezuelano Hugo Chávez está gravemente doente. Depois de sua quarta vitória eleitoral, Chávez, que governa aquele país desde 1999, teve uma séria recaída de um câncer que enfrenta há mais de um ano -- e agora está em meio à dura recuperação de uma cirurgia delicada. Sem condições de tomar posse para aquele que seria o seu quarto mandato, e com seu terceiro mandato expirado, se impôs uma situação de indefinição: de um lado a oposição surge com o argumento de "grave violação constitucional" -- a mesma oposição que, em 2002 deu um golpe de Estado contra Chávez, chegando até mesmo a sequestra-lo --, enquanto a suprema corte local entendeu pela constitucionalidade do adiamento da posse (cuja decisão, na íntegra, pode ser lida aqui).
Como aponta Jânio de Freitas, não é uma situação muito diferente daquele que nós, brasileiros, vivemos em 1985, quando Sarney tomou posse no lugar de Tancredo, falecido pouco depois de ter sido eleito presidente pelo colégio eleitoral. Naquela situação, era impensável que Sarney, vice da chapa, não tomasse posse no lugar do falecido titular, uma vez que havia uma intensa comoção popular em prol da redemocratização do país, parte de um processo que vai da resistência à Ditadura, inclui o movimento pelas Diretas Já! e culmina com a própria eleição de Tancredo -- ainda de forma indireta -- contra Paulo Maluf, o candidato da Ditadura.
Por uma análise jurídica que se prende meramente às formas, a posse de Sarney e o adiamento da posse de Chávez parecem violações. Mas não são. Ambas as decisões são a confirmação jurídica de uma intensa, e incontestável, afirmação do desejo democrático da multidão: ela quer, e precisa, instituir um arranjo político que sustente a constituição de seus direitos e tal fato, naturalmente, não pode ser posto em função de uma formalidade. Grosso modo, apesar de todas as maledicências ditas contra Chávez, é impossível negar os avanços e melhorias vistos nesses mais de dez anos -- em oposição a um processo de mais de vinte anos que, não obstante toda a pujante produção petrolífera local, fizeram a qualidade de vida na Venezuela se estagnar violentamente. Nos últimos quatorze anos, erros e acertos foram cometidos, mas todos eles se deram em função da geração de direitos para os desvalidos.
Alguém fará referência a certos aspectos militaristas e populistas de Chávez, mesmo seu apoio à regimes autoritários em nome de uma aliança anti-ocidental, mas elas são componentes laterais de um movimento complexo que, com o perdão da ousadia, é de natureza firmemente democrática: o Chavismo jamais deixou de consultar a população -- e de respeitar sua palavra, mesmo quando ela lhe foi negativa --, de se submeter a constantes votações (entre mais de uma dúzia de eleições e consultas populares, perdendo apenas uma) e outros quetais. Quem deu golpe foi a oposição, que na quartelada de 2002, apesar do apoio americano, se viu isolada no continente -- inclusive, e sobretudo, pelo Brasil então governado por FHC --, além de, logo adiante, ter aberto mão de disputar um pleito democrático, o que lhe deixou sem representação durante uma legislatura.
Comparações e eventuais antagonização entre Chavismo e Lulismo permeiam o imaginário latino-americano. A verdade é que ambos os movimentos decorrem do mesmo processo -- a luta por libertação da praga neoliberal, que infestou o continente no período posterior à Guerra Fria --, sempre estiveram estrategicamente juntos -- embora tenham feito opções táticas diferentes de como atuar no Estado -- e ambos legaram um quadro social e político melhor para a sua gente -- e agora, por motivos diferentes, enfrentam uma fase decisiva na sua existência. Sempre haverá a discussão se teria sido melhor Chávez ter evitado polarizações, como fez Lula, ou se Lula deveria ter confrontado mais, como fez Chávez, mas o exercício do poder de Estado por uma força democratizante não é uma ciência exata ou uma construção meramente teórica.
É verdade que Chávez não resolveu muitos problemas e criou alguns. Como o da demasiada personalização do movimento que, incontestavelmente, lidera -- o que atrapalha
o surgimento de novas lideranças e o engessa pela hierarquização. Tampouco
constituiu uma alternativa efetiva ao modo de organização estatal,
organizando tudo nos termos de um tradicional republicanismo. Seu apoio a
governos como o do [falecido] Kadafi na Líbia ou ao de Ahmedinejad Irã,
em nome da cruzada de confronto ao imperialismo americano, por outro lado, sempre
colaboraram para a propaganda internacional contrária ao seu governo --
ao passo que o confundia com a figura de regimes e governos que,
ironicamente, jamais colocariam em prática instrumentos democráticos como
aqueles vistos na Venezuela, cotidianamente.
No entanto, o líder venezuelano executou mudanças relevantíssimas no seu país. Hoje, a Venezuela é o país menos desigual da América Latina -- registrando uma queda de 0,48 para 0,38 no índice de Gini --, erradicou em 2005 o analfabetismo, ampliou a rede de ensino superior local e, grosso modo, está atravessando a atual crise econômica com algum êxito. No mais, Chávez colocou a Venezuela no mapa-mundi, depois de décadas de ostracismo: uma vez eleito, seu governo não apenas se empenhou na democratização interna como, também, na integração latino-americana e na constituição de organizações internacionais como a União das Nações Sul-Americanas. Em outras palavras, o governo Chávez foi pioneiro na democratização continental, depois da onda de ditaduras militares -- impostas por Washington em quase todos os países do continente -- e da imposição do neoliberalismo de canto a canto.
As "décadas de ostracismo" aliás, correspondem à época em que o país vivia sob uma falsa democracia, em decorrência do chamado Pacto de Punto Fijo -- documento fundante da IV República Venezuelana, uma ditadura disfarçada na qual os dois grandes partidos, a AD e a Copei, monopolizavam o jogo eleitoral por conta da alta cláusula de barreira que barrava os novos partidos além de outras regras cômodas, cujo efeito prático era a manutenção da população local à margem do processo decisório; um modo, digamos, limpo de produzir os mesmos efeitos que as ditaduras operavam no continente.
É fato que a situação da Venezuela é delicada e incerta. Mas grande parte das vozes que se erguem contra Chávez internamente, sem dúvida alguma, estão voltadas contra suas virtudes e não contra seus defeitos, basta conferir a biografia e o ideário defendido pelos ideólogos da oposição local. Chávez e o movimento bolivariano, apesar do discurso, ainda passa longe de pôr em prática medidas socialistas ou comunistas, mas ele incomoda como poucos o capital global numa época em que o poder das finanças devora direitos sociais mesmo na Europa. A ofensiva contra Chávez, nos termos atuais, é, portanto, uma ofensiva contra a democracia venezuelana e contra a democracia global.
P.S.: 68,5% dos venezuelanos é favorável ao adiamento da posse.
P.S.: 68,5% dos venezuelanos é favorável ao adiamento da posse.
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