segunda-feira, 17 de junho de 2013

17 de Junho ou Notas do Outono Brasileiro

Largo da Batata -- São Paulo
Hoje, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, alguns jovens invadiram o Congresso Nacional em Brasília, depois de dias de manifestações contra o reajuste das tarifas nas capitais brasileiras, além do levante durante a Copa das Confederações. Grande parte dessas movimentações foram reprimidas duramente pelas polícias. O estopim parece ter sido a enorme violência que a polícia militar paulista usou contra manifestantes há poucos dias numa das manifestações contra o reajuste nas passagens -- depois de ter abusado em manifestações anteriores. 

Violência policial em alta escala não é novidade no Brasil, um país cuja democracia carrega até hoje o fardo de ter uma polícia militar com competência de atuação sobre a população civil, uma herança histórica de sua ditadura militar. Contra o que protestam os brasileiros? Contra e a favor de muita coisa. Coisas diferentes e até conflitantes entre si. Por exemplo, José Dirceu e Arnaldo Jabor estão, neste exato instante, apoiando as manifestações -- embora certamente por motivos muito diferentes e o segundo só depois de um mea culpa.

Além disso, há uma miríade de pautas e insatisfações diferentes que vieram à tona muito rapidamente e há, também, um efeito caleidoscópio geral -- seja porque se veja o que quer ou se quer fazer com que se veja o que desejamos nisso tudo. No entanto, existe um sentimento sincero, sublime e difuso que perpassa as pessoas. Há um incômodo, um verdadeiro nó na garganta, com o modo como as coisas são postas, ou como não são, neste exato momento. A era da inércia, da paralisação da redução da política encontrou seu limite. 

O problema aqui é o déficit afetivo no funcionamento da democracia brasileira atual, a insatisfação em relação à era dos políticos-executivos que vieram na esteira dos -- merecidamente ou não considerados -- campeões da "redemocratização" -- que jamais se concretizou e passou a funcionar à base de composições cada vez mais confusas, contraditórias e insuficientes. Uma série de gambiarras cujas faíscas são apagadas às custas dos extintores policiais, que apagam fogo com querosene. 

Há uma crise política e uma crise que não foi feita da catástrofe -- e aumento das passagens ou não investimento em áreas estratégicas é lateral -- mas do fortalecimento da multidão -- que come, que veste, que toma remédios --  acompanhada de um vazio simbólico cada vez maior. As coisas passaram a não fazer sentido e a incompreensão foi recompensada à base de cacetetes.  

Trata-se de um fenômeno parecido com o Maio de 68 europeu, não só por sua natureza de alastramento global, no qual os ganhos objetivos do bem-estar social, decorrentes de governos social-democratas e democratas-cristãos, vieram desacompanhados de um vazio espiritual que se tornou insuportável: no Brasil de 2013, vive-se melhor do que em 1993 ou em 2003, mas a dimensão subjetiva é reduzida ao dado estatístico -- assim como os fluxos não codificados precisam desesperadamente serem reduzidos a um regime qualquer, sistemicamente válido. Ainda assim, não havia meios tecnológicos em 68 suficientes para possibilitar uma efetiva disposição em rede do movimento.     

Desse modo, a disposição em rede, o rápido alastramento das chamas, a intensidade fugaz e, ao mesmo tempo, potente são características semelhantes tanto cá quanto na Primavera Árabe, nas revoltas estudantis chilenas ou nos occupy americanos e europeus -- em todos os casos, Maios de 68 2.0, cujas consequências culturais-políticas permanecem por muito tempo sem que impliquem na resolução de impasses: são movimentos sobreproblematizantes, que expõem tensões, trazem à tona o submerso, operam uma catarse social ímpar e atentam para o abismo monstruoso entre o velho e o novo, sem necessariamente resolverem seus impasses.

O tamanho da movimentação hoje aqui em São Paulo foi espetacular. Ainda mais por se tratar de uma cidade que mais até do que outras capitais, o espaço comum está erodido entre os carros e a especulação imobiliária. Sem dúvida alguma, a enorme tolerância e leniência da população paulistana esgotou-se quando as liberdades burguesas foram abaixo via ação policial. A polícia do Carandiru, do Pinheirinho e da Cracolândia não poderia ter mostrado a cara de verdade.

Em termos práticos, todo o jogo político-partidário de 2014 será rearranjado, o que não quer dizer que os partidos simplesmente deixarão a obsolescência, se renovarão ou serão substituídos por formas melhores. Mais o repeteco monótono de 2010 dificilmente acontecerá. O que não quer dizer que o alívio, ou o desabafo, de hoje será a salvação de amanhã. Hoje, o que fazer, no hoje de amanhã, como.  



4 comentários:

  1. Paz e bem!
    De fato estas são mais outras peças
    do jogo Eleições 2014.
    As manifestações e os manifestantes
    gostem ou não gostem,
    queiram ou não queiram,
    tem também à ver com o próximo ano.
    .
    Meu palpite:
    inicialmenete ganha o anarquismo
    e ganha o esquerdismo (doença infantil das esquerdas);
    depoi ganha a direita:
    ou ganhando a coroa (i.e. presidência)
    ou ganahndo força para neutralizar ou orientar o governo.

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  2. Hugo,

    Participei das manifestações de ontem, em S. Paulo com um sentimento misto de orgulho, surpresa e decepção. Orgulho de ver um povo que redescobre as ruas como local de protesto e reivindicações e não apenas como mera via de passagem entre a casa, a escola e o trabalho, destinadas a veículos motorizados e hostis às pessoas e a tudo o que não serve ao capital; Surpresa por ouvir uma juventude rotulada de alienada, individualista e consumista ao extremo defendendo o bem comum, reivindicando a melhora de serviços públicos como saúde e educação, além, claro, de um transporte coletivo decente, enfim, reivindicando direitos para todos e não privilégios ou causas individuais; E decepcionado, por estar no meio de uma multidão, talvez a maior que já vi na vida, sem saber para onde caminhava: Av. Paulista, ALESP, Berrine, Marginal Pinheiros, Globo? Ninguém sabia. A falta de sinal e de internet (nem 3G, nem nada!) me deixava mais perdido. O protesto virou quase um passeio bem ordenado pela Faria Lima, uma avenida vazia de significados e de gente. Nos prédios de escritórios e shoppings fechados um ou outro funcionário de plantão acenava para a multidão lá embaixo. Decepcionado também por perceber que a manifestação virou um ato contra a Presidente Dilma, de longe a pessoa mais xingada, seguida por Haddad e, na lanterninha, por Alckmin. O governador responsável pela PM, portanto pela selvageria da ação policial cuja indignação acabou gerando as condições para o protesto de ontem foi pouco lembrado pelos manifestantes. A responsabilidade do governo do estado pelo aumento nas tarifas dos ônibus metropolitanos, dos trens e do metrô também parece ter passado despercebida pelos manifestantes. E, por fim, decepcionado por ouvir muita gente dizendo-se sem partido, protestando contra a Globo, mas xingando sem parar Dilma e Haddad. E estes dois terão muito a perder se não se esforçaram para entender o que está acontecendo.

    Chegando na av. JK não vi mais sentido naquela caminhada toda e decidi ir para a Paulista, onde já havia outra multidão, bem menor, mas suficiente para ocupar as duas pistas na região do Masp. Ironia das ironias: fui de ônibus da JK para a Paulista quase sem nenhuma dificuldade e voltei para casa, também de ônibus, ainda com a manifestação rolando, praticamente sem transito e sentado, o que não é nada comum para aquele horário. A cidade tremeu, mas não parou!

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  3. ... corrigindo um pouco do que escrevi acima. A manifestação não virou um protesto contra a Presidente Dilma, mas a Persona da Presidente acabou catalizando parte da insatisfação dos jovens ali presentes em relação as principais reivindicações, que é a melhoria dos serviços públicos e os gastos com a Copa entre um montão de outras coisas.

    abração!

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  4. Por um triz

    Falta uma infelicidade qualquer para que algum desses atos públicos nas capitais se transforme em tragédia. Alguém tropeça, puxando outros consigo, durante uma correria. Um bate-boca leva ao pugilato e a trocas de facadas ou garrafadas. Um bandido infiltrado, civil ou militar, aproveita qualquer tumulto para dar um tiro na direção da turba. Um tijolo despenca do décimo andar de um prédio. Uma bomba explode no lugar errado.

    E assim, de repente, surge o primeiro cadáver dos protestos.

    O simples fato de tudo estar tão sujeito ao acaso e à boa-vontade das gentes já é sintoma de perigosa fragilidade. Se considerarmos o caos probabilístico gerado por um fenômeno em que dezenas de milhares de pessoas se espremem pelas ruas da metrópole, concluímos que os anjos das passeatas vêm trabalhando como nunca. É quase absurdo que não tenha ocorrido alguma ocorrência fatal, especialmente porque as chances se multiplicam na repetição diária dos atos.

    Talvez eu esteja apenas sendo pessimista, mas na base de toda medida preventiva existe uma dose de fatalismo. Depois de acontecer o pior, será inútil discutir se houve uma coincidência idiota ou a ação de malfeitores oportunistas. Não podemos menosprezar a possibilidade de que alguém esteja ansioso para que a violência fuja ao controle da imensa maioria pacifista. É necessário, portanto, que os organizadores dos protestos passem a trabalhar com esse risco de forma responsável.

    http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com.br/

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