Minha fala no Primeiro Encontro Internacional de Política, Trabalho e Território em Salvador, no campus da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA.
Nova Composição Social só pode ser Resistência!
Antes de tudo, é preciso colocar o problema que se sucede . O que é uma sociedade? Pois bem, sociedade, como modo de organização coletiva humana, é algo relativamente novo. É uma criação da modernidade. Antes disso, sociedade era sinônimo de sociedade mercantil-empresarial. Ela não existe realmente, mas sim como construção imaginária -- de um tipo bem particular, aliás; ela pertence ao imaginário de uma burguesia ascendente que vê, não por acaso, a universalização do contrato e a relação humana na forma social uma nova ordem, isto é, a sua ordem.
A relação social implica no imersão do homem em esfera de direitos e deveres. Somos, portanto, sócios, companheiros mutuamente obrigados a realizar uma obra. Isso pouco tem a ver com a velha phylia grega. Não existe graça, é o próprio reino das obrigações, o que mostra-se sobretudo farisaico. Estamos vinculados a um contrato -- a forma que tomarão as constituições modernas --, que será sempre um acordo imaginariamente igual entre partes realmente desiguais.
Sociedade é, pois, a forma imaginária pela qual a burguesia explica e desenvolve a coexistência humana no interior de sua ordem, sendo o contrato\constituição o seu locus simbólico. A existência de classes sociais, portanto, é uma decorrência prática da realização da imagem “sociedade” como paradigma dessa organização coletiva -- e só pode nascer da luta por existência real dos diferentes setores reduzidos a termo no processo. A sociedade é o desejo da burguesia e o capitalismo, por tabela, é, como sempre foi, igualmente social.
Uma vez que a marca maior do capitalismo é o fim da produção doméstica, como nos lembra Agamben, sua expulsão, ainda que no caráter privado e exploratório, para a praça pública, gerando uma nova dinâmica dos fluxos de gente, é preciso, pois, que as relações sociais devenham universais. Não é mais a aliança entre pais de família para garantir a circulação da produção, mas a própria sujeição voltada para o produzir. É essa universalização da relação social que dá corpo ao dispositivo da economia política, o qual, por sua vez, toma o espaço da economia clássica e da economia medieval como instrumento de compreensão e intervenção controladora.
A diferença é ocultada por uma homogeneidade fundada no dever. Somos iguais, mesmo não sendo, e somos livres na medida do esquema pré-concebido de direitos e deveres, os quais voltam-se a regular nossos afetos, inserir uma culpabilidade prévia, e nos expulsar das nossas vidas comuns. A classe é o que excede à esta regra que faz tudo homogêneo, simétrico, igual -- e decodificável. O devir da classe social é o que permite, paradoxalmente, a fuga da vida em sociedade e um retorno, uma revolta, ao comum.
Uma composição de classe é, como sempre foi, uma cartografia de tecido de lutas em meio à fantástica justaposição de grupos, blocos, arcaísmos sintetizados na forma sociedade. Não existe jamais uma situação na qual, digamos, classes pactuam uma (co)existência pacífica. Os eventuais pactos de classe são como o direito de guerra. Classes estão em atrito permanente. Sua existência é luta, como diriam Negri e Thompson.
Há, no entanto, um corte entre a sociedade industrial e a sociedade pós-industrial. Enquanto na primeira situação, o desgarramento do comum promovido pela violência capitalista nascente joga uma série de desabrigados na praça pública, prontos a se associarem como buchas de canhão em troca da subsistência, havia lacunas de liberdades e não participação no sistema: mesmo os proletários estavam, em parte, fora da máquina. Era a sociedade da esperança e do medo. Hoje, nossos próprios afetos são ativos financeiros e todos, desde o executivo até o sem-teto, cumprem alguma função econômica no império do capital -- isto é, o colonialismo chegou à sua fronteira final, qual seja, nossos próprios corpos, nosso inconsciente, nossa libido; é a sociedade do desespero e da segurança.
Existe algo comum neste mundo globalizado que é novo; a existência de uma multidão perene como atriz contínua do drama social -- e não só como acontecimento político. Não é que a multidão em si seja uma novidade, mas o seu modo de existência nos termos atuais, sim, é: no lugar da velha fábrica fordista, com a linha de montagem bem definida e sua classe operária, um operário social, o qual vê sua própria vida como objeto de expropriação, na medida em que seus atos e fatos mais comuns são tornados mercadoria.
Essa multidão emergiu das novas formas de integração e relacionamento oriundas da revolução das comunicações, que antes de ser tecnológica, é também política. A multidão, nesse sentido, é sim conceito de classe. O capital a captura. E precisa ser flexível para captura-la, eis aí o dito neoliberalismo. A multidão se impõe politicamente, como sempre o fez pela história, embora desta vez tenha uma conotação diferente, porque ela é a própria forma que se insurge contra a ordem do capital -- impessoal, corporativo...
A qualificação política da multidão no capitalismo cognitivo ocorre na forma de irrupções, ocupações de praças públicas e quetais. É a própria cara do mundo insurgente, pelo menos desde de 2011, com o pipocar insurgente face à economia de crise, modo definitivo que o neoliberalismo tomou nos dias atuais. O que não quer dizer que, a exemplo da própria luta da classe trabalhadora, não tenha problemas, dificuldades e suas impotências na forma de perturbações de ânimo.
Hoje, face as manifestações que assistimos pelo Brasil, não é o caso de dizer que a multidão chegou ao Brasil, como se ela fosse um gadget ou uma nova moda. É certo que é mostra da pós-modernização do capitalismo brasileiro e os novos contornos da produção e resistência. Genericamente, é o que vivemos. Mas a problemática brasileira atual comporta algumas nuances importantes que merecem ser sublinhadas.
A primeira, é como as políticas do governo Lula abalaram a ordem social clássica do país, na qual o contrato social diz respeito à manutenção de uma herança escravagista, colonizadora e opressora em um grau acentuado. O resultado da melhoria de vida material de negros, pobres, mulheres criou uma enorme classe sem nome, cujo movimento é de uma ascensão selvagem. A classe não tem nome, porque se recusa a tê-lo, ela é ela e nada mais e identidades só servem, afinal de contas, para o poder nos dar ordens. O ser da classe sem nome não é o da existência, mas da re-existência.
A segunda, é a própria termidorização do Petismo na forma do Governo Dilma. Se aquele que foi, ou talvez ainda seja, o principal canal político brasileiro por onde correram os fluxos livres nas últimas décadas, fecha-se, temos uma grande e abundante barragem pronta a estourar. É o que se vê no presente governo Dilma, no qual, apesar do fortíssimo apoio dos movimentos sociais à sua candidatura em 2010, o governo se fecha, abrindo mão da política em nome da macroeconomia -- e a macroeconomia não é senão a Lei da Casa Grande. As alianças do PT são cada vez mais confusas e traumáticas, implodindo o vínculo ético que o sustenta.
O maior erro, no entanto, foi como o petismo procurou agir em relação ao seu maior fruto. A classe sem nome logo precisou ser decodificada pelos cientistas régios. É preciso dizer “nova classe média” para tornar essa efervecência, de fato, uma pacífica classe média. E a classe média é a própria reterritorialização pela qual se tenta desbaratar a luta de classes, retornando ao kitsch do homogêneo: o homem moderno e racional, o mesmo de sempre, o normal etc. Se classe é classe porque luta, a luta da classe média é consigo mesma e a condição psicológica insuportável na qual se encontra.
O quadro atual é justamente isso. Uma classe sem nome que ascende de forma selvagem, empurrando a velha classe média. Pelos versos e perversos essa classe média se barbariza. São doces bárbaros ou não. Black Blocs e coxinhas de jaleco coexistindo. Quanto mais se universaliza a condição de classe média, pior ela se torna. A velha classe média e mesmo os setores já médio-classificados em revolta.
O típico homem médio, o homem da vontade de segurança e do desespero. E é tanto desespero e tanta vontade de segurança que o processo desagua, não por acaso, também em uma iconoclastia anti-policial, o que contradiz o próprio fetiche policialesco da nossa época e da nossa cultura. Se a atualização do medo leva à luta, por não se ter nada a perder, a atualização da segurança leva a atacar com força tudo que está aí, nos interditando, para “o nosso bem”. A nova composição social brasileira é resistência, só pode ser resistência, senão corre-se o risco de auto-esquecimento.
"as políticas do governo Lula abalaram a ordem social clássica do país".
ResponderExcluirQuais políticas do governo Lula teriam abalado a ordem social clássica do país?
Mestre João: Bolsa Família, Reuni/Prouni, Cultura Viva etc.
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