domingo, 26 de janeiro de 2014

Um País em Protesto: PMD(epedência do)B(rasil)

Fausto e Mefisto no monumento a Goethe de Roma
Não é nenhum exagero dizer que no lugar de uma crise política no Brasil, existe, na verdade, uma política de crise. Essa política de crise representa um mal funcionamento crônico das instituições que, no entanto, serve a uma oligarquia política. Do mesmo modo que a crise econômica mundial é, tanto mais, uma economia de crise, que vive do desespero causado pela instabilidade absoluta. Nesse contexto, o PMDB é personagem central, uma vez que compôs todos os governos democráticos do pós-ditadura, salvo o de Collor, que caiu da maneira conhecida.

Que o PMDB é o fiel da balança da política partidária brasileira, há muito tempo, ninguém duvida. Mas a pergunta de um milhão de dólares, ou de vinte centavos, é "quem é o PMDB?", ou melhor, quem se coloca como peemedebista nas polêmicas da academia, nos almoços de domingo ou nas mesas de bar? Ninguém sabe, ninguém viu. O PMDB é o partido de maioria silenciosa. Segundo partido mais votado para a Câmara Federal e para os Municípios, detentor da maior parte das prefeituras e dono da maior número de filiados da política partidária brasileira, o PMDB, hoje, é como o Mefisto de Goethe: um agente sedutor e sorrateiro que se move no claro-escuro dos gabinetes, sempre a procura de liquefazer o desejo (aqui, político) em um mero contrato; aí, projetos políticos se tornam mera matéria para o toma-lá-dá-cá nosso de cada dia.

E não é verdade que o PMDB seja a favor de qualquer um que esteja no poder, mas, muito pelo contrário: todos os que estão no poder se tornaram a favor dele. Quando o vice-presidente Michel Temer, peemedebista de longa data, explica sua vinculação tanto com o governo FHC quanto com os governos Lula/Dilma, ele não mente ao dizer que apenas aceitou as ofertas feitas por PSDB e PT, quando estes o procuraram. A refutação para essa constatação é usual: sem maioria no Congresso, tucanos e petistas precisariam fazer acordos, sobretudo O Grande Acordo, com O Grande Parceiro, para, assim, governar. Isso é uma falácia. Evidentemente, a dependência do PMDB varia conforme a indisposição dos partidos "programáticos" em se relacionarem com as pessoas comuns, e suas instituições.

Ai chegamos nessa enorme obsessão de governo e oposição em, respectivamente, manterem e derrubarem a família Sarney. O último episódio dessa novela foi a revelação da tragédia humanitária da prisão de Pedrinhas, no Maranhão, estado governado há décadas pela família e seus aliados. Agora, a pergunta, quantos votos José Sarney, patriarca do clã, teria se fosse candidato à presidência? Poucos. Mas ele certamente tem votos suficientes no Congresso, dentro e fora do PMDB, para obstruir e desobstruir muita coisa. Num jogo onde as principais forças partidárias estão sedentarizadas nos gabinetes e palácios, ele se torna um personagem central. Não à toa, é notório que Dilma dependa e recorra mais a Sarney do que Lula mas, mesmo assim, amargue cada vez mais derrotas parlamentares.

Embora seja possível colocar o peemedebismo como expressão partidária do cordialismo brasileiro, à maneira do filósofo Marcos Nobre, isso é certamente superficial. O PMDB pode exprimir essa confusão, essa geleia geral, mas ele é um sujeito com um lugar histórico bem determinado. Não há "peemedebismo" fora do PMDB e, mais ainda: esse peemedebismo não é a realidade triste da política brasileira, mas sim o próprio tecido conjuntivo dessa formidável colcha de retalhos que é o nosso sistema político.

O PMDB nasceu com MDB em consequência do golpe de 64 -- que não era, logo de cara, um plano de perpetuar uma ditadura militar fascista, mas sim o de criar uma democracia de fachada na qual, a exemplo do México e, sobretudo, da Venezuela da época, os elementos populares e comunistas estariam fora do jogo. Aí, teríamos uma democracia de brincadeira, com "conservadores" na Arena e "liberais" no MDB numa possível alternância sem surpresas -- seja para a burguesia brasileira ou para Washington.

Com a ascensão da linha dura do exército na Ditadura, o endurecimento da política americana para a América Latina na Guera Fria e outros fatores, a ditadura se prolongou, o país ficou em um impasse e o PMDB se tornou, involuntariamente, uma das soluções para um problema do qual ele, na verdade, fazia parte. Se a ditadura era, como hoje sabemos, civil-militar, o termo civil da encrenca se dividia entre arenistas/conservadores (Sarney, ACM et caterva) e emedebistas/liberais (Tancredo, Ulysses etc) -- enquanto, de outro lado, os próprios militares se dividiam entre a linha-dura/conservadores (Costa e Silva, Médici os golpes dos fins dos anos 70) e a "turma da Sorbonne" (os "ilustrados" da conversa, isto é, Castelo Branco, Geisel, mesmo Figueiredo).

Golbery, estrategista da Ditadura, pôs fim ao plano do bipartidarismo para, num ambiente político amplo, manter a unidade da direita na Arena/PDS e ver o centro e a esquerda fragmentados. Isso também deu errado, com a formidável derrota conservadora no pleito estadual de 1982, mas o que não quer dizer que a ascensão do PMDB -- e sua ampla hegemonia ao longo dos anos 80 -- tenha marcado uma democratização efetiva. Nem poderia. O PMDB serviu como cooptador dos setores de transformação social, ao centro e à esquerda, enquanto atraía líderes conservadores como Sarney e tantos outros, tornando-se um partido-ônibus.

Se o PT era o local próprio onde se reuniam operários da indústria, ambientalistas, agentes de pastorais, militantes comunistas, camponeses e outros, forçando uma democratização substancial do país, o PMDB era o arranjo liberal onde a constituição dos direitos rumava para uma cristalização na forma de um direito constituído, estratificado, previsível. O PMDB, mesmo quando se afigurava uma força transformadora, já trazia em seu ventre a nova velha ordem. O próprio PT experimentou isso quando, após as derrotas nas eleições estaduais de 1982, foi cooptado pelo PMDB, respondendo no famoso manifesto da "articulação dos 113", na qual foi solidificada uma posição em prol da manutenção do partido -- censurando, assim, tantos nomes que viam na dissolução da então jovem legenda no PMDB como a saída.

A aparente desidratação peemedebista, com o racha em São Paulo que deu no PSDB, o crescimento de outros partidos e o fracasso de Sarney minorou sua posição, mas não a apagou, como sabemos. Se o PSDB era a manifestação de que o PMDB se tornou impossível para si mesmo, por outro lado, ele se viu obrigado a se reunir com sua matriz em defesa do neoliberalismo nos anos 90, o que era para sua própria proteção, tanto programática quanto  eleitoral -- num momento em que o consenso dos contentes, olhe só que coisa, era combatido pelo PT. Mas foi no governo FHC que o PMDB manifestou sua face atual: um partido incapaz de admitir uma liderança, como Quércia tentou ser, um projeto, para ser apenas um grande, e diverso, balcão de negócios políticos. E isso implicava, inclusive, em rachas e divergências no apoio ao governo FHC, sobretudo por parte do grande bloco nacionalista da agremiação.

A aliança com Lula é outro capítulo: feita à base da inimizade aguda de Sarney com José Serra, e pelo naufrágio da estratégia petista em comandar um Congresso a partir dos pequenos partidos, ela se aprofunda com Temer sendo imposto vice de Dilma em 2010 para, afinal de contas, tomar proporções gigantescas. O PT, que preferiu se distanciar das suas bases sociais, seu grande diferencial, ao longo de sua estadia no poder federal, terminou enredado pelo maior dispositivo quando da opção gerencial-burocrática de Dilma no poder.

Novamente, voltamos a Nobre e sua hipótese de que as jornadas de Junho seriam, na verdade, revoltas "antipeemedebistas" -- como bem resenhado recentemente por Bruno Cava --; a bola levantada pelo filósofo escapa à tão necessária avaliação da nova composição, e dinâmica, de classes sociais, embora acerte, ainda que de maneira desfocada, o alvo no que toca a um dos principais desdobramentos do processo atual, qual seja, a insuficiência das formas políticas postas e a centralidade do PMDB nisso. O PMDB, pois, é uma das múltiplas consequências do republicanismo brasileiro, a agenda oculta -- e positivista -- de Estado, menos e mais do que Nobre imagina, mas certamente algo a se afastar e, até mesmo, a confrontar. 

As revoltas de Junho, por certo, exprimem um quadro de miséria política causada não pela falta, mas pela sobra de energia causada pela transformação imensa que a sociedade brasileira passou nos últimos anos. O sistema político, pois, foi encurtado, apequenou-se diante da intensidade que despertou. No momento em que o PT preferiu os gabinetes, a estatística e o cálculo aritmético em vez do ritmo da vida -- e os demais partidos de esquerda, por seu turno, não foram capazes de dar vazão a esse fluxo --, a enorme correnteza foi ao mar. Obviamente, o desembarque do formalismo, do projeto inclemente -- e antidemocrático -- do Estado brasileiro passa hoje por uma nova política,  colocar em outras bases qualquer forma de relacionamento com o Congresso, o que é o mesmo que esconjurar o PMDB. 

Mas isso não é o mesmo que derrotar apenas um partido, uma cultura política  que giraria em torno dele, mas uma concepção de política baseada na ausência das pessoas comuns, na prevalência do funcionamento do sistema -- político, econômico etc -- sobre o desejo delas e na crença de um evolucionismo civilizador implacável e no culto ao poder constituído -- no lugar da luta pela constituição de direitos. No que toca ao PMDB, em particular, o que interessa é saber que para além de qualquer devaneio com os riscos de uma ditadura, o perigo está na própria democracia liberal -- formalista e institucional -- e o enorme vazio na qual ela se constitui. É preciso mais coragem não para jogar o jogo, mas lutar onde se pode lutar, isto é, no terreno do próprio imaginário, na criação da realidade política do país.

P.S.: A defesa da aliança entre o governo de Dilma Rousseff e o PMDB passa pela ideia da necessidade de governabilidade. Mas de tanto falar em governabilidade, hoje, no parlamento e nas ruas, o governo tem sofrido derrotas relevantes; aos oligarcas do Congresso, nenhuma concessão basta, para o povo, é impossível tolerar mais concessões. Quando tudo dá errado, o próprio PMDB não hesita em largar o PT aos leões, como na recente demissão, por e-mail, dos petistas lotados no governo estadual carioca. Ou nas incontáveis derrotas do governo no Congresso.  Em outras palavras, é tanto realismo que falta realidade.





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