Mural from the Temple of Longing -- Klee. |
A morte do cinegrafista Santiago Andrade, vitimado pelo ataque de rojões possivelmente disparados por manifestantes, deflagrou uma nova rodada no ciclo de manifestações começado em Junho de 2013. Ele não foi a primeira vítima fatal das manifestações, mas foi a primeira a não ter morrido em virtude de ação direta da polícia -- e sequer foi a única vítima fatal naquela manifestação, na qual um idoso também morreu, atropelado por um ônibus, enquanto a polícia disparava bombas contra os manifestantes.. De repente, a mídia, as polícias, os políticos e toda sorte de conservadores que, com o mesmo sorriso amarelo que escondeu a inclemente violência policial nos últimos meses, assumiu uma postura nova e ofensiva: era hora de jogar a conta da violência para os manifestantes e, assim, deslegitimar suas pautas.
A estratégia agora é sufocar, com todas as forças, as manifestações em culpa. É possível discutir muita coisa, mas o fato é que em meses de manifestações massivas, foi a primeira vítima fatal decorrente de dolo ou (mais provavelmente) culpa dos manifestantes -- muito embora, agressões tenham sido noticiadas. Da parte das polícias, a violência foi certamente muito maior, com pessoas baleadas, mortas e/ou desaparecidas. E, independentemente da quantidade, o abuso de Estado será sempre mais grave do que de qualquer particular, uma vez que ele é perpetrado por quem nos deveria proteger.
Até a morte de Santiago, o que se falava era em "violência dos dois lados", um recurso retórico usado em várias situações de luta social, sempre que se quer comparar a violência do opressor à resistência do oprimido. Agora, a violência de Estado é convenientemente apagada para dar lugar a violência apenas dos manifestantes. O jovens suspeitos de terem atirado os rojões, prontamente capturados, aparecem defendidos por um conhecido advogado das milícias cariocas que, por sua vez, os acusa publicamente -- num dos gestos mais estranhos da história da advocacia nacional -- enquanto busca liga-los ao deputado estadual carioca Marcelo Freixo -- conhecido pelo combate às mesmas milícias e cujo partido, apesar das vacilações, se põe à esquerda do espectro político brasileiro.
A partir daí, em forma de blitz, se vê uma assustadora onda de repressão, inclusive com direito à tentativa de aprovação do bisonho projeto de Lei Antiterrorismo (PL n. 499/2013 ) -- de autoria de parlamentares governistas (isto é, de Romero Jucá do PMDB-RR, mas avalizada pelo bom e velho deputado federal Cândido Vaccarezza PT-SP), o qual se abre margem para a criminalização de manifestações políticas -- a abertura da chamada "CPI do Vandalismo" -- na Assembleia Legislativa do Rio -- além de uma ofensiva midiática que mira políticos e intelectuais favoráveis às manifestações como responsáveis por "incitarem a violência" -- como no horrendo texto de Demétrio Magnolli, que nos faz lembrar a perseguição oficial aos intelectuais da Itália dos anos 70 e 80.
Sobre o projeto de Lei Antiterrorismo, nem é preciso tecer comentários mais filosóficos: uma lei contra o terrorismo, mesmo partindo da premissa da existência da figura do terrorista absolutamente mau e louco, é tão idiota quanto uma lei proibindo a invasão do Brasil. Esquecendo todas as causas sociológicas, econômicas, históricas etc sobre o "terrorismo", é fato que essa figura que nos vendem, sobretudo nos países ricos, de "terrorista" seria alguém que, caso cumprisse a lei, já não seria terrorista, logo, uma lei não serviria para impedi-lo.
No mais, do ponto de vista jurídico, o ato terrorista, "infundir terror" é tão vago que serviria para prender ou soltar qualquer um. Matar, furtar, roubar são verbos autoexplicativos. O conceito de terrorista, sempre tão plasmoso, serviria para, mais do que nivelar a resistência do oprimido à violência do opressor, tornar a primeira um crime gravíssimo e a segunda natural, "autodefesa". O terrorista mau e barbudo do filme de Hollywood certamente daria de ombros para algo como isso, mas movimentos sociais que reivindicam direitos e são duramente reprimidos todos os dias, coitados, poderiam ser enquadrados por uma norma dessas.
E se uma das coisas que mais irrita os partidos estabelecidos no que concerne às manifestações, é que eles não controlam, nem pautam, as multidões nas ruas, um projeto antiterror para autorizar que se solte as focinheiras da repressão policial serviria, quem sabe, para recolocar as coisas no lugar. É, em parte, fobia de políticos com o movimento atual às portas da Copa do Mundo, por eles não o entenderem ou por o entenderem bem de mais, mas com algum ar de oportunismo mirando o futuro próximo -- e antes dessa Lei Antiterrorismo vir à ordem do dia do debate público, há pouco, falava-se no PL n. 728/2011, de autoria dos senadores governistas Marcelo Crivella (PRB-RJ), Ana Amélia (PP-RS) e Walter Pinheiro (PT-BA), requentado pelo susto com as manifestações anti-Copa.
As manifestações se abalaram, mas persistem. Se a história de deslegitimar os levantes sob a acusação de vandalismo saiu pela culatra, desta vez, o pode espera que o mesmo jogo funciona e aplica toda sua força nisso. Isto, naturalmente, não se trata de uma apologia cega às manifestações: existe, desde o começo delas, oscilações importantes, flutuações constantes de ânimo, giros que vão do apoio a pauta conservadoras, mas o incômodo mesmo, à direita e à esquerda, é que a multidão criou, espontaneamente, sua própria estética e sua política, indo contra o status quo brasileiro e fazendo luta social não mediada, negociada e capitalizada pela estrutura de comando de partidos e sindicatos.
Mas é no campo dessas "flutuações de ânimo" que moram os aspectos negativos das manifestações. Não há, de fato, só flores. E isso, reitero, nada tem a ver com vontade de Estado e de Partido, ou conservadorismo social. Não é possível uma leitura maniqueísta ou moral de um processo histórico e político. O gesto do disparo dos rojões, mesmo que possivelmente acidental, é fruto de uma desarticulação presente aos movimentos desde Junho. Não haveria de se esperar, ou desejar, "formação militante" de jovens pertencentes a uma geração alijada da política -- e que talvez por isso também, tenham saído a rua -- e possivelmente isso nem seria bom. Mas é preciso criar regras práticas para ordenar essa criação manifestante -- para fugir ao suicídio individualista ou a morte pela ditadura do coletivo e da burocratização.
O poder, em toda sua podridão, nada mais faz do que aquilo que sempre fez. Na prática, é isso mesmo. Sempre que o poder estiver sob real ameaça, ele reprimirá. Só não fará se os movimentos, em verdade, não o ameaçarem. Sempre foi assim, sempre será. Toda a violência que o Estado produzir será escondida (não aconteceu), justificada (aconteceu, mas eles mereciam) ou diminuída (não foi tudo isso) -- como na lógica da chaleira de Freud -- e qualquer acidente ou violência perpetrada por contestadores será, em sentido inverso mostrada (se existir realmente), deslegitimada ("não havia motivo para tanto") ou aumentada (por fatos mentirosos mesmo).
A razão em uma causa não poderá jamais esconder a necessidade de autocrítica, organização estratégica e pragmatismo. No caso em tela, é preciso fugir à praga das organizações socialistas clássicas, a lógica do cérebro -- na prática, um órgão dirigente que definirá o motivo, o modo e as razões para agir -- quanto o narcisismo individualista, onde cada um faz sua própria manifestação, sua própria tática, sua própria estratégia, inclusive pondo em perigo a vida alheia. Isso precisa ser olhado e ponderado no interior do movimento. É preciso criar um sistema imunológico nas manifestações contra a insanidade suicidária -- e isso nada tem a ver com controle e direção, autores insuspeitos de alimentar qualquer tipo de fascismo como Deleuze e Guattari, abordaram exaustivamente essa questão em Mil Platôs, quando falavam do enigmático CsO.
E, não, não haverá piedade para quem for às ruas daqui para frente. Quem supor que essas manifestações, quanto mais ameaçarem o poder no Brasil varonil -- e, por que não, o equilíbrio de forças no Império Global --, mais serão reprimidas, por qualquer motivo. E também é ilusório acreditar, agora, que o diálogo, a interlocução institucional cândida com e no Estado irá mudar algo, pois mesmo dentro dos partidos socialistas não existe essa disposição: da parte da oposição à esquerda ao PT, existe um jogo que envolve a disputa de bases sindicais e estudantis (por parte do PSTU e do PCO) e de mandatos parlamentares (olhem para o PSOL), enquanto pelo lado do partido da estrela, o núcleo dirigente se vê na obrigação de uma defesa do regime atual, contra quem for e a qualquer custo, mesmo que isso signifique um tiro no pé (conforme a pequena e surpreendentemente lúcida nota do PCO, sinal dos tempos), o que em todos os casos é uma defesa em abstrato do Estado.
O choque geracional de velhos -- e falo aqui dos honestos -- militantes com a militância em rede, horizontal, sem rostos é óbvio, se explicando não apenas pelo novo mundo criado a cada instante pela revolução comunicacional mas, também, pela falência precoce dos partidos socialistas clássicos, incapazes de superarem o século 20º. Melhor seria a situação, na conjuntura atual, se houvesse uma confluência entre a velha e a nova tradição, mas infelizmente, isso parece estar longe nesse ponto crucial em que vivemos, o que exige sim que os jovens queimem etapas. O jovem PT, lá nos anos 80, era mais capaz de dar conta dessas demandas do que o atual, e o mesmo vale seus rachas partidários "à esquerda". A adesão da bancada psolista na Alerj à chamada "CPI do Vandalismo", proposta pela direita parlamentar em cima da blitz midiática em questão, ilustra essa leitura estreita, essa debilidade e o compromisso histórico com o Estado (o que, queira ou não, é contra a multidão) -- num recuo vacilante que, inclusive, pode não servir para lhe poupar.
A disputa que se põe, é entre a velha ordem modernista contra a liberdade comum, pois o sistemão, seja em seu flanco à direita ou à esquerda, está interessado em combater o que há de transformador nas manifestações e, vejam só, capitalizar só o que lhe interessa na disputa de poder dentro do regime vigente. Longe de maiores passeios teóricos, o Brasil vive em 2014 o maior risco ao processo de democratização em muito tempo. Essa ameaça não está nas ruas, por mais que se possa, com razão, identificar determinados excessos aqui ou ali, mas no oportunismo da velha ordem, da política de Estado -- e isso não está em um suposto movimento defensivo dela, mas em uma oportuna jogada na qual ela se blinda usando camuflagem militar para viver, daqui em diante, de jogos eleitorais convenientes seja para essa mesma elite política ou para a elite econômica.
Um outro mundo, para além da miséria das leis de exceção, das tropas de choque, da mídia idiotizante é possível e urgente.
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