Melancolia I __ Dürer |
Duas novidades tecnológicas, ocorridas há pouco, dão o tom desse clima. A primeira é um nascimento peculiar, a segunda, uma morte.
O novo iPhone chegou às lojas, na sua versão número 6. Enquanto isso, as atualizações de software constantemente exigidas para a "otimização" das outras versões, paradoxalmente, as tornam obsoletas: o hardware do iPhone 4 está com os dias contados, o 5 seguirá o mesmo caminho.
A outra história é que o Orkut, a rede social primeira, morreu, foi desativada oficialmente. Nunca usamos uma rede social tão tosca, mas é possível que nunca tenhamos sido tão felizes na Internet. O Facebook, com todos os seus botões e funcionalidades nos escravizou, o usamos compulsivamente: ele conseguiu trazer a nossa vida "real" para a virtual. Sim, essa potencialidade nefasta já estava no Orkut, mas havia um Contra-o-Estado nele que a esconjurava para os quintos do inferno.
É, enfim, o mundo da destruição criativa. Da falência planejada. Da pane programada. A melhora do componente imaterial leva à destruição do seu corpo físico, gerando mais vontade de consumo. As redes sociais, elas mesmas, precisam se enquadrar e nos enquadrar: se tornaram máquina de identificação dóceis, destinadas a nos domesticar na rede.
Estamos sempre preocupados demais em alimentar os nossos -- insaciáveis e descarregantes -- smartphones para sairmos desse círculo vicioso: horas na rede social via celular, por meio do qual nossa própria vida "real" aparece virtualizada, desgaste energético da máquina, recarga. Obsolescência da própria máquina posta no horizonte. No fundo, esse "prazo de validade" arbitrário parece se aplicar a nós mesmos, por extensão das máquinas técnicas com as quais nos agenciamos.
Vivemos às voltas de concepções complexas, cujas origens, desconhecemos. Mas algo que nos escapa dá a entender que isso não é natural. Vejamos nós que a filosofia ocidental desde Heidegger é, quase sempre, um mal-entendido, uma procura por qualquer pecado e pela descoberta da verdade. Seu labor é da ordem da "destruição criadora", do ciclo do mesmo, do igual e do idêntico; esse retorno sofisticado à teologia serve a uma economia política bastante concreta, o qual dá origem a um mundo feito de crises, de destruições e de reconstruções.
Pouca gente, é verdade, criticou Heidegger à altura. Talvez só Deleuze ao pensar o eterno retorno como o eterno retorno do diferente -- ou Benjamin, ao opôr as imagens históricas às essências da fenomenologia. O fato é que as ideias de Heidegger, como ocorre com os grandes pensadores, se naturalizaram nas esferas da nossa vida. Do mesmo modo que raciocinamos a partir das noções aristotélicas de proporção, sem muitas vezes sabermos quem foi Aristóteles, fazemos o mesmo com essa particular visão: uma destruição necessária para dar início a um novo.
Que não se fale em Heidegger como um nazista: ele de fato o foi, até os acréscimos do segundo tempo, mas é provável que ele fizesse do nacional-socialismo um meio e não um fim ao contrário de, por exemplo, um Carl Schmitt. Esqueçam, pois, o nazismo e a arquitetura da destruição: o capitalismo atual é capaz de, no seu procedimento normal, de destruir o "velho" e edificar um "novo". Quem gentrificou a velha Moscou não foram nem os invasores nazistas, tampouco o comunismo ateu, mas sim a nova economia capitalista dos anos 1990.
Ainda que um dos textos elementares do repertório heideggeriano seja, precisamente, um questionamento ao que seria a técnica moderna, ele, possivelmente, não problematiza corretamente o que desencava: ele ignora que a cisão da tekhné dos gregos em "arte" e "técnica [moderna]", por seu turno, está intimamente conectada como a divisão do trabalho moderno, e a exploração capitalista, e como a própria tarefa da "destruição" jamais prescindirá de uma técnica [enquanto dispositivo].
Do mesmo modo, a busca da "essência" da técnica, dessa técnica moderna, não nos salvará de seus efeitos; ao contrário, será uma mera corrida em círculo cujo objetivo, por sinal, é morder a própria cauda: se der certo, nos devoramos, se der errado, continuaremos a dar voltas. Não será uma ciência da técnica que nos "salvará" e, assim, nos libertará desse dispositivo -- e a liberdade tampouco é uma questão de salvação.
A própria arte uma vez imaginada cindida da técnica, como hoje, é ela própria um engano: é pensar a arte como objeto de uma transcendência "maior". Não é que "livrar a arte da estética nos levará a algo que nos eleve o espírito -- o que nem faz muito sentido à luz da lógica, uma vez que imaginar isso seria como supor uma arte sem sentido --, mas de pensar a arte como a intervenção humana plena naquilo que ela tem como experiência mútua e coletiva.
O resultado prático disso, como sabemos, é a ideia de uma redenção semi-religiosa numa arte elitista, desvinculada, anestésica. E, na outra ponta, um uso sim dessa técnica nos termos de sua "essência" -- uma cristalização de sua existência, a despeito da narrativa ela mesma. É o que dá forma à imagem vazia da "pós-modernidade" e o "pós-modernismo".
Não é que o neoliberalismo atual "apague da história" -- ou relativize o protagonismo histórico de certas pessoas e coisas --, mas sim que no reino das essências e da a-historicidade, de um mundo a ser descoberto por interpretação, a tradição dos oprimidos evanesce. Como na política brasileira atual, quando jovens bem-intencionados elegem heróis e vilões em um momento mágico desvinculado de qualquer contexto histórico -- e logo mais, se decepcionam ou se surpreendem.
O poder tal e qual se faz dele hoje, na larga ou pequena escala, não se ampara em qualquer tradição, em qualquer forma de narrar a História, mas na supressão desta pelas essências necessárias -- e, por que não, pela necessidade essencial como esse mesmo poder é apresentado. O presidente [da república e os das empresas], o rei e tutti quanti sempre foram e sempre serão quanto tais, a respeito da sua investidura no carga, muito embora pessoalmente estejam investidos naquela persona jurídico-política: o rei, em si, não é eterno, mas o ofício de rei é eterno, é uma essência. O poder, mais do que tudo, depende desse congelamento e dessa suspensão.
Pouca gente, é verdade, criticou Heidegger à altura. Talvez só Deleuze ao pensar o eterno retorno como o eterno retorno do diferente -- ou Benjamin, ao opôr as imagens históricas às essências da fenomenologia. O fato é que as ideias de Heidegger, como ocorre com os grandes pensadores, se naturalizaram nas esferas da nossa vida. Do mesmo modo que raciocinamos a partir das noções aristotélicas de proporção, sem muitas vezes sabermos quem foi Aristóteles, fazemos o mesmo com essa particular visão: uma destruição necessária para dar início a um novo.
Que não se fale em Heidegger como um nazista: ele de fato o foi, até os acréscimos do segundo tempo, mas é provável que ele fizesse do nacional-socialismo um meio e não um fim ao contrário de, por exemplo, um Carl Schmitt. Esqueçam, pois, o nazismo e a arquitetura da destruição: o capitalismo atual é capaz de, no seu procedimento normal, de destruir o "velho" e edificar um "novo". Quem gentrificou a velha Moscou não foram nem os invasores nazistas, tampouco o comunismo ateu, mas sim a nova economia capitalista dos anos 1990.
Ainda que um dos textos elementares do repertório heideggeriano seja, precisamente, um questionamento ao que seria a técnica moderna, ele, possivelmente, não problematiza corretamente o que desencava: ele ignora que a cisão da tekhné dos gregos em "arte" e "técnica [moderna]", por seu turno, está intimamente conectada como a divisão do trabalho moderno, e a exploração capitalista, e como a própria tarefa da "destruição" jamais prescindirá de uma técnica [enquanto dispositivo].
Do mesmo modo, a busca da "essência" da técnica, dessa técnica moderna, não nos salvará de seus efeitos; ao contrário, será uma mera corrida em círculo cujo objetivo, por sinal, é morder a própria cauda: se der certo, nos devoramos, se der errado, continuaremos a dar voltas. Não será uma ciência da técnica que nos "salvará" e, assim, nos libertará desse dispositivo -- e a liberdade tampouco é uma questão de salvação.
A própria arte uma vez imaginada cindida da técnica, como hoje, é ela própria um engano: é pensar a arte como objeto de uma transcendência "maior". Não é que "livrar a arte da estética nos levará a algo que nos eleve o espírito -- o que nem faz muito sentido à luz da lógica, uma vez que imaginar isso seria como supor uma arte sem sentido --, mas de pensar a arte como a intervenção humana plena naquilo que ela tem como experiência mútua e coletiva.
O resultado prático disso, como sabemos, é a ideia de uma redenção semi-religiosa numa arte elitista, desvinculada, anestésica. E, na outra ponta, um uso sim dessa técnica nos termos de sua "essência" -- uma cristalização de sua existência, a despeito da narrativa ela mesma. É o que dá forma à imagem vazia da "pós-modernidade" e o "pós-modernismo".
Não é que o neoliberalismo atual "apague da história" -- ou relativize o protagonismo histórico de certas pessoas e coisas --, mas sim que no reino das essências e da a-historicidade, de um mundo a ser descoberto por interpretação, a tradição dos oprimidos evanesce. Como na política brasileira atual, quando jovens bem-intencionados elegem heróis e vilões em um momento mágico desvinculado de qualquer contexto histórico -- e logo mais, se decepcionam ou se surpreendem.
O poder tal e qual se faz dele hoje, na larga ou pequena escala, não se ampara em qualquer tradição, em qualquer forma de narrar a História, mas na supressão desta pelas essências necessárias -- e, por que não, pela necessidade essencial como esse mesmo poder é apresentado. O presidente [da república e os das empresas], o rei e tutti quanti sempre foram e sempre serão quanto tais, a respeito da sua investidura no carga, muito embora pessoalmente estejam investidos naquela persona jurídico-política: o rei, em si, não é eterno, mas o ofício de rei é eterno, é uma essência. O poder, mais do que tudo, depende desse congelamento e dessa suspensão.
O "desvirtuamento" da filosofia não está em qualquer esquecimento do ser, ou em qualquer equivalente ao pecado original, mas na retomada da filosofia enquanto culto à morte -- o mesmo devidamente banido por ataques variados, em Marx e Nietzsche, mas talvez antes já por Hegel. Não é questão que somos permanentemente sujeitos à angústia, mas que a vida é plena. E, assim, a morte trazida como sombra permanente da vida, causa de uma angústia ou ansiedade incomensurável, é uma falácia pronta ao domínio: eis a clássica sacada de Deleuze, a partir de sua leitura de Spinoza, que o laço íntimo entre o déspota e o sacerdote é o fato que ambos precisam inspirar paixões tristes.
Se vivêssemos, ainda, a era da tristeza, talvez estivéssemos tuberculosamente poéticos: não estamos, somos deprimidos, depressivos cercados de comprimidos. Marx percebeu uma tendência assombrosa de destruição criadora no capitalismo já no seu tempo. O nazismo levou isso à esfera do planejamento científico. Heidegger queria até mais. Queria fazer disso uma perfeição -- e o fez, com a destruição como norma padrão da nossa economia política, neoliberal.
A própria revolução não aparece como aquilo que ela é -- o eterno retorno, a eterna revolta do potente, do diferente do transformador: ela se torna um depressivo, e irrealizável, marco zero, no qual tudo precisa ser destruído, desconstruído ou destituído para poder recomeçar. O Nada passa a ocupar a ribalta. Marx perde a barba e, ironicamente, ganha as feições de quem o teria jogado num campo de concentração, caso ele fosse algumas décadas mais velho. É a mesma lógica que nos frustra "à direita", vendida como solução universal.
De repente, a solução dos nossos problemas está na ruptura constante de laços, de amizades, de modos de vida. A experiência em comum, e o co-pertencimento, perdem importância diante de uma capciosa forma da destruição. Buscar uma alternativa ao mundo-que-aí-está não pode ser tomado como preciosismo intelectual, ou filosófico, mas sim por meio de uma aliança fundamental como a vida: isso exige (re)conhecer o que nos mata em vida. Sim, o mundo vai mal e talvez esteja para acabar, mas não sem luta -- nem alegria.
De repente, a solução dos nossos problemas está na ruptura constante de laços, de amizades, de modos de vida. A experiência em comum, e o co-pertencimento, perdem importância diante de uma capciosa forma da destruição. Buscar uma alternativa ao mundo-que-aí-está não pode ser tomado como preciosismo intelectual, ou filosófico, mas sim por meio de uma aliança fundamental como a vida: isso exige (re)conhecer o que nos mata em vida. Sim, o mundo vai mal e talvez esteja para acabar, mas não sem luta -- nem alegria.
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