sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Terceiro Turno: o Mito do Brasil "Dividido" e o Congresso como Crise

A vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, embora apertada, foi rapidamente reconhecida por Aécio Neves. Mas isso não marcou o fim da polarização vista no pleito. Talvez porque isso seja menos uma polarização entre PT e PSDB, ou entre Dilma e Aécio, e mais, muito mais, entre blocos sociais e econômicos antagônicos que neles se representam, ainda que alguns tucanos de relevante hierarquia tenham mantido a ofensiva. Nesse momento, a tensão secessionista e a crise do Congresso tomam a agenda nacional nublam a semana posterior à reeleição.

BRASIL DIVIDIDO?

A primeira onda, situada nas redes sociais, foi uma massiva, violenta e absolutamente irracional campanha anti-nordeste. De repente, os nordestinos, que votaram em massa, se tornaram os "culpados" pela derrota. Seriam eles escravos do "voto de cabresto" por conta do "Bolsa Família". 

Para além de toda carga preconceituosa, não havia qualquer relação lógica entre a derrota de Aécio e o Nordeste. Primeiro, Aécio perdeu justo em Minas Gerais, o grande destaque de seu currículo, onde governou por oito anos consecutivos, por onde é senador e ainda fez sucessor entre 2010 e 2014. 

Depois que a alegação de que o eleitorado nordestino voto por cabresto, é ridícula. O Bolsa Família emancipa o cidadão na medida em que lhe tira da fome. Cabresto havia, é claro, quando existia fome massiva no Nordeste e a ausência de políticas públicas permitiam que o voto fosse comprado com comida. O Bolsa Família é uma política pública que impõe obrigações -- como matrícula dos filhos na escola e sua vacinação dentre outros itens --, não assistencialismo. 

O próprio Aécio prometeu manter o Bolsa Família, o que torna um contrassenso as declarações de sua base social. Se ia ser mantido mesmo, e assim foi declarado, o eleitorado nordestino teria votado em Dilma por quê? E se as pessoas não gostavam do Bolsa Família no Sudeste e no Sul -- onde ele também é aplicado como política de Assistência Social nos termos da Constituição da República -- por que votaram num candidato como Aécio que prometeu mantê-lo?

Mas as falácias não param por aí. Colocar a questão nordestina nos termos da fome/dependência, sem reconhecer os enormes avanços conseguidos nos últimos anos não é pouca coisa. E isso, seguramente, se deve mais a desobstrução do potencial da região no governo Lula: até ali, o Nordeste esteve sob o jugo da elite mais retrógrada possível em virtude dos arranjos nacionais, inclusive no governo FHC.

De 1822 até hoje, nenhuma outra região se prejudicou tanto pela unidade territorial brasileira quanto o nordeste. A monarquia brasileira se fez a partir, inclusive, da supressão das elites republicano-liberais da região. A República Velha alçou os coronéis às alturas. Vargas avançou apenas um pouco, embora tenha permitido que as forças modernistas avançassem nos anos 50. 

A ditadura militar, capítulo à parte nessa história, foi uma re-união entre os capitães da indústria paulista e os coronéis nordestinos: política de exportação interna de gente para servir de mão-de-obra barata no sudeste e, assim, reduzir a pressão demográfica que levaria a uma reforma agrária no nordeste.

Evidentemente, se esses arranjos obstruíram o caminho natural do Nordeste, por outro lado, eles promoveram um desenvolvimento hipotético do Sudeste: criaram bolhas de riqueza nas capitais e verdadeiros cinturões de miséria em torno delas (inclusive em Brasília). A questão nordestina, não resolvida às portas do século 21, na verdade, é a própria questão brasileira.

O resgate disso eliminou diretamente o coronelismo na Bahia e, indiretamente, no Maranhão como se viu nessa eleição. Isso abriu espaço para governos sociais ou modernistas-liberais -- como o de Eduardo Campos -- que mudaram a cara da região. Dentre as consequências disso, se encontra o fim da pressão migratória nordeste-sudeste, o que atenua a crise urbana de São Paulo e do Rio de Janeiro.

SECESSIONISMO E PERVERSÃO (DIRIGIDA) DA MASSA

O Brasil, é verdade, sempre esteve dividido. Mas essa divisão, em termos de secessão, da qual eu estou falando, é absolutamente artificial e perigosa. No Brasil, as eleições se decidem por todos os brasileiros em igualdade, não por estados pelo seu peso relativo. 

Dilma ganhou por pouco entre os brasileiros, não porque isso seja um Nordeste versus São Paulo. E isso, infelizmente, está sendo alimentado por membros inconformados do PSDB como um Coronel Telhada, que está sendo investigado pela Assembleia Legislativa paulista por secessionismo por essa razão, mas também por um Goldman, o que insufla setores extremistas da nossa sociedade. 

E quando falo em setores extremistas, faço referência às ameaças de impeachment que vemos nas redes sociais -- sejam acompanhados pela ideia de secessionismo ou por teorias da conspiração --, o que nos faz sair do enquadramento da democracia. O PSDB ao surfar nessa onda, ou ter membros de relevo ratificando isso, sai do prumo de um conservadorismo acidental no qual ele, um partido social-democrata, se envolveu para se tornar uma força de desestabilização. 

Atitudes louváveis como o dos diretórios paulistano e paulista do partido contra as declarações de Telhada precisam se tornar regra. Como bem sabe o próprio governador paulista, Geraldo Alckmin, São Paulo mais do que nunca precisa do Brasil diante da grave crise da água causada, infelizmente, menos pela natureza e pelo acaso do que por sua política privatista para a água.

CONGRESSO COMO CRISE

Na outra ponta dessa conjuntura infernal, temos a crise no Congresso. Dilma Rousseff foi acusada com razão de conduzir um governo com baixo diálogo. O decreto que regulamentava os conselhos populares -- instituídos pela Constituição de 1988 que prevê uma democracia representativa E participativa -- era uma resposta correta para essa justa reivindicação.

O fato é que a Câmara Federal, em uma rebelião pós-eleitoral, tratou de derruba-lo. Em resposta, o PSOL tratou de reapresentar o tema na forma de um projeto de lei apresentado em caráter de urgência. Isso tudo na atual composição parlamentar, mais amena do que a eleita em Outubro e que tomará posse a partir do ano que vem.

Isso não é um problema pontual. Envolve questões cruciais para o ano que vem. Dentre elas, a reforma política, que ou sai por uma nova constituinte ou por uma emenda que depende do próprio Congresso que é, por sinal, expressão do sistema político falido.

Dilma terá de recriar, ou criar pela primeira vez no seu governo, uma articulação política real capaz de negociar com o Congresso, mas também precisará, fora de qualquer âmbito formal, se agenciar com a sociedade. Se não conseguir, ela vai enfrentar as próprias forças que a elegeram, talvez até num turbilhão distópico.

De Collor até aqui, as piores crises nasceram a partir do Congresso Nacional. Justamente porque o sistema político está longe demais da multidão, restrito aos salões institucionais de Estado. A tentativa de sair da pretensa -- e inconstitucional -- monopolização da política pelos parlamentares também não é fácil. E é esse embate que está jogo neste momento.

...

Seja como for, o clima de terceiro turno em nada colabora. O Brasil enfrentará problemas sérios nos próximos anos, imerso que está na crise econômica e ambiental de todo o globo. A escolha paradoxal das pessoas comuns em manter a atual presidenta no poder para, em aparente contradição, comandar uma mudança não é pouca coisa. É o reconhecimento de um lastro histórico de melhorias do país, embora acompanhado pela exigência incontornável de avanços. Por outro lado, a tendência de massa de cunho classista, racista e xenófobo -- o qual não representa o voto em Aécio como um todo, mas está bem presente nele -- é um problema grave, que pode se agravar com a piora de outro problemas, o que torna sua neutralização dentro das regras democráticas uma tarefa igualmente central. Tudo é muito óbvio e evidente.




2 comentários:

  1. Um cara que não vejo há anos me disse que era universitário em 1989, na quase vitória de Lula. Ele disse que achou uma pena, mas que por outro lado, as forças estavam muito polarizadas e que talvez o resultado tenha sido bom para evitar uma guerra civil. São daqueles relatos que dava vontade de ter estado na época para vivenciar. Mas esse nosso presente dissipou esses sentimentos de "e se eu estivesse lá", o nosso agora é desafiador. Se a polarização eleitoral lembrou 1989, agora o resultado foi outro, só isso já faz me quase engolir em seco que não é possível fugirmos da história. Aqueles que porventura já pensaram "se eu tivesse nascido naquela época sentiria a história", já não precisam pensar assim pois o momento tá assim.

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    1. Para o bem e para mal, 2014 dissipou o "e se eu estivesse lá" tanto da Copa de 50 quanto das eleições de 89 :p

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