Ontem, algo em torno de duas mil e quinhentas almas foram à Avenida Paulista pedir o impeachment de Dilma Rousseff e/ou uma intervenção militar. O evento em questão, por seu turno, foi fruto de uma convocatória por Facebook que chegou em torno de 100 mil confirmados; ainda que a adesão presencial não tenha sido nem de 5% do total, a gravidade das pautas fala por si.
Fato a se lamentar, sobretudo se pesarmos todo o legado de violência de Estado, crise social e econômica que os militares, em 21 anos de ditadura, deixaram para o nosso país. Pior ainda, é a sensação de que na hora em que a parte derrota resolve pedir a bola e encerrar o jogo, algo vai mal.
A crise em questão, pois, é de legitimidade. O que está esgarçado não é esta ou aquela força política propriamente, mas a própria substância do sistema. O perigo disso é que a crise apresenta um forte conteúdo suicidário: a erosão se faz em direção ao Nada, diante do vazio que se daria dessa explosão sagrada, basicamente teria contornos fascistas.
O mito da salvação tem um pé no teatro clássico e o outro no messianismo. Entre os helênicos e os romanos, um deus brota do nada na cena e resolve uma impasse -- o theos ek mekhanes helênico ou o dei ex machina romano --, enquanto para a tradição messiânica, um enviado do divino nos salvaria do nosso próprio destino -- com um dualismo importante sobre o custo de sua morte.
A ideia, tanto de golpe quanto de revolução, bebe nesse fantástico sincretismo. A ruptura pode apontar para um vida nova ou para o abismo. O caso brasileiro, no qual as tensões sociais se acumulam e não encontram uma resolução razoável nas instituições, é, pois, grave. E é grave justamente porque a solução, ou minoração de parte dos problemas, encontra uma forte reação social.
O último processo eleitoral, marcado por uma forte disputa resolvida por uma vantagem mínima a favor de Dilma, coroou essa conjuntura de trevas. A insistência de líderes tucanos de manter a ofensiva e se negar ao diálogo, mesmo passada a votação, colaborou para o quadro visto ontem. E isso veio da boca de um FHC, ecoado por um Alberto Goldman -- que ontem, entretanto, teve de recuar diante dos fatos de ontem.
Hoje, a rivalidade entre petistas e tucanos, que poderia ser altamente qualificada, infelizmente, faz mal para ambos e para o país. Mas se é possível fazer uma crítica do discurso e da prática petista por vários aspectos, é certo, no entanto, que quem tem flertado com setores extremistas é, infelizmente, o PSDB.
E isso cobra a conta de um partido como o PSDB que, bem ou mal, se forjou na luta contra a ditadura e por uma redemocratização mais qualificada. Se arriscar a abrir uma caixa de pandora dessas, por resultados eleitorais momentâneos, é o mesmo que lançar a democracia brasileira em uma espiral incontrolável.
Se o aspecto representativo da democracia brasileira está em xeque, por outro lado, a ação do Congresso em barrar o desenvolvimento dos mecanismos de democracia participativa é igualmente sintomático.
As instituições de 1988 estão em crise, ironicamente no cinquentenário do golpe militar -- naquela ocasião, a adesão de uma direita liberal ao golpismo foi decisivo: e aquilo tudo, afinal de contas, levou a uma espiral de eventos que engoliu muitos dos conspiradores de primeira hora, resultando em um fascismo louco que tomou a vez do que deveria ser uma democracia "limpinha", a qual estaria assentada num bipartidarismo "purgado" de elementos populares e de esquerda (ou da "corrupção").
O que se viu no Brasil dos anos 60 e 70 foram as entranhas das forças armadas e do Brasil profundo emergirem para a cena pública. Se alguns liberais o fizeram de forma desavisada, agora as consequências são conhecidas. E nem é, ou não deveria ser, preciso refrescar a memória de um FHC, de um Goldman, de um Serra, de um José Aníbal ou de um Aloysio Nunes etc. O mais irônico é que o PSDB não precisa de nada disso para voltar a vencer, talvez precise de muito menos, mas certamente não é elevando o tom das notas erradas que encontrará o caminho das pedras.
E as esquerdas, que novamente se vêem diante dos impasses e os dramas de um governo trabalhista, precisam proteger o terreno comum que as unem, do contrário, se unirão, como sempre, no cárcere. Dilma, por seu lado, terá de reconhecer a gravidade da situação e, assim, em vez de montar um corpo ministerial apenas "conciliador" -- como lhe parece tentador --, precisa compor um quadro mais pró-ativo -- no qual terá o papel de maestrina, não de solista. A presidenta terá também de lembrar, para seu próprio bem, com quais setores pode efetivamente contar nos piores dessa eleição.
A cacofonia, essa imensa barulheira da política brasileira de hoje, serve apenas aos perversos e aos oportunistas. Um canoa furada que, ainda por cima, soa mal. Fujamos disso.
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