Resenha minha publicada no portal Outras Palavras e em seu blog na edição virtual da revista Carta Capital sobre um livro imprescindível:
Rancière, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, 128 páginas
Recém-lançado
no Brasil, O
Ódio à Democracia, do
filósofo francês Jacques Rancière, é um ensaio potente, pronto a
ser lido de um fôlego só. Embora tenha sido publicado na França há
quase dez anos, o livro nos é incrivelmente atual. Mais ainda: ele
parece ter um tom quase profético quando olhamos para o Brasil de
hoje.
Afinal
de contas, estamos atolados em um pântano feito de manifestações
fascistas que alentam a ideia de um novo golpe militar, de relatos
incessantes de agressões físicas e intimidações nas redes sociais
sobre quem não se alinha com essas pulsões (sobretudo
eleitoralmente), de casos crescentes de crimes de ódio contra
homossexuais, índios e outras minorias, da ideia cada vez mais
consensual de que a política é ruim, temos mais é de nos contentar
com o gerencialismo e assim por diante.
Rancière
problematiza o que seria essa democracia sobre a qual tanto falamos,
não raro perdida em meio a tantas confusões. Mas ele também fala
sobre seus adversários: e eles não são apenas as manifestações
de intolerância pontuais ou os projetos neo-autoritários, mas de um
ponto quase sempre ignorado pelo pensamento político, que é o que
há de autoritário no nosso próprio sistema político “normal”.
O fascismo cotidiano e mascarado de cada dia. Na França, a máscara
do poder na normalidade atende pelo nome de republicanismo.
E
a obra acerta em cheio ao notar que a novidade da democracia, tal
como ela nasceu em Atenas, não residia na instituição do voto ou
do sufrágio, mas no fato dela ter tornado comum entre os cidadãos
a participação política por meio de dois vetores essenciais: (1)
a distribuição dos eventuais cargos fixos por meio de
sorteio; (2) a vinculação dos cidadãos pelos demos, divisões
geográficas de Atenas, e não por vinculações hierárquicas.
O
significado profundo do sorteio, que nos parece absurdamente
chocante, é que se o eventual representante poderia ser escolhido
assim, aleatoriamente, a democracia seria, pois, o governo do
qualquer um. Se todas as outras formas efetivas de governo se
fundavam em uma hierarquia determinada — de idade, de saber, de
renda etc –, o advento democrático propunha que para “governar”
não seria preciso ser o mais velho, o mais rico ou o (dito) mais
sábio, mas sim fazer parte do corpo cidadão, na imanência de sua
multiplicidade — isto é, em meio às suas diferenças,
estranhamentos e até contradições.
A
vinculação aos demos — e democracia, não custa lembrar, não
signica “poder do povo”, mas sim o poder ou governo dos demos –,
por outro lado, vinculou à territorialidade (de cada um na pólis) o
índice organizacional da política, consistindo em uma suprema
astúcia: a distribuição territorial, em si, não consistia em um
índice hierarquizador: ao contrário, ele era perfeitamente
horizontal naquele contexto.
Em
contraponto à democracia, estaria, pois, a república. E segundo o
autor, o republicanismo é, desde Platão, o inverso da democracia, o
regime pelo qual a política volta a estar hierarquizada em um regime
de competências. Isso perduraria até hoje na França.
Ainda que
tenha se oposto à monarquia e ao tradicionalismo da nobreza e da
religião na França, ele foi uma forma de reintrodução do poder,
só que de forma impessoal, anônima e sistemática.
É
evidente que Rancière faria melhor caso se referisse a “positivismo”
no lugar de republicanismo, ou reconhecesse que esse republicanismo
“diferente do de Jules Ferry” — e sua ousadia emancipadora na
pedagogia — é menos cria de Platão e mais de Auguste Comte — e
que “República” em Platão é mais fruto de uma indecorosa
tradução latina da famosa Politheia, a qual deu um caráter
indevidamente conservador ao que foi tão potente e emancipador entre
os romanos e mesmo para Maquiavel (embora Rancière comente
ligeiramente isso).
De
todo modo, a escolha do republicanismo como antagonista de democracia
não se perde de um todo, pois (1) em seu uso nos círculos
conservadores franceses é esse o texto da máscara do poder e do
poder mascarado; (2) o positivismo, evidentemente, está situado no
campo da filosofia tradicional e, entre ele e o platonismo, existe
uma coincidência na ideia de que os comuns não devem governar, mas
sim os aptos para mandar segundo um critério transcendental — e
obviamente criado pelo próprio poder em sua auto-ordenação.
Enfatizar
o caráter [estruturalmente] positivista do republicanismo francês,
aliás, não é mero preciosismo: na verdade, isso ajuda a entender
na proximidade entre o que o livro diz e a nossa realidade
verde-amarela; a república brasileira nasce, por inspiração
positivista, sem povo, calcada na ideia de um sistema impessoal,
laico e destinado a ter uma igualdade abstrata como régua mestra.
Que
problema teria tal ideia que nos “ilumina” desde 1889? No
nosso caso — no mesmo sentido do francês, só que de um jeito mais
agressivo — essa igualdade de fundo sempre serviu para mascarar e
manter as desigualdades de fato, pois ao exigir a plena igualdade
jurídica [numa sociedade marcada pela concorrência e não pela
colaboração] entre desiguais de fato, isso só poderia terminar na
própria manutenção da desigualdade histórica, isto é, a
diferença para pior.
No
Brasil, pois, políticas sociais como as cotas causam escândalo
público, pois invertem a matriz republicana-positivista na medida em
que diferenciam a forma dos ingressos para gerar igualdade material.
A igualdade quando deixa de ser ponto de partida para se tornar ponto
de chegada implode o “republicanismo” e, por conseguinte, afirma
a democracia. Isso é inadmissível por um costume conservador bem
nosso.
Por
tal razão, é comum em nosso meio que essas tentativas de
democratização sejam desqualificadas, pois sempre expressam as
intervenções políticas do qualquer um, ou em prol do qualquer um,
no campo comum: por esse viés, não caberia a um metalúrgico querer
ser presidente da república, um gari desejar feliz ano novo em rede
nacional de televisão ou um casal homossexual se casar. É o juízo
binário do é [a priori] igual\não-igual.
Isso
pesa sobretudo em matéria de política, na qual trabalhadores,
índios e pobres deveriam se deixar comandar pelos varões da
república: eles não seriam competentes formalmente. É claro,
as condições históricas brasileiras, seu passado colonial e
escravagista, tornam esse republicanismo pior, mas em termos
conceituais não estamos falando de uma substância diferente da
realidade na qual está o autor.
Dessa
forma, para Rancière, tanto no Brasil quanto na França — bem como
nisso que chamamos de “mundo livre” –, não temos um regime
democrático. Porque a democracia estaria sempre além do Estado. Há
um regime misto entre oligarquia e democracia, o qual é, contudo,
fruto das próprias lutas que impedem o monopólio do mando pelo
oligarcas — o que não é de um todo ruim: o que é mau, na
verdade, seria se conformar com isso. Ainda assim, estamos diante do
avanço do economicismo de mercado que, baseado no ilimitado poder da
riqueza, o que abala hoje até mesmo essa construção precária da
oligarquia matizada.
Assim,
Rancière não faz concessão alguma para uma filosofia neo-niilista:
no fim das contas, com razão, não é preciso discutir qualquer
vazio que possa haver na dicotomia entre cidadania e os direitos
humanos, pois um serve onde o outro não alcança; é o interesse
prático, na luta, que determina a importância de qualquer um dos
dois. Valorizemos a cidadania para os humanos excluídos dela e a
humanidade dos cidadãos desumanizados!
E
ainda que Rancière retome a democracia antiga quase como um ideal,
ele não erra em última análise: mesmo que a democracia antiga seja
menos avançada do que ele advoga, ao concebê-la como movimento,
como tendência de ir além na busca de uma coexistência para
melhor, encontramos, quem sabe, uma chave para entender melhor as
sucessivas ressignificações do termo ao longo do tempo,
incorporando mulheres, humanos, meio-ambiente etc etc.
Tudo
isso faz de O Ódio à
Democracia um pequeno
grande livro. Enfim, um manifesto de amor incondicional à
democracia, pois o autor a coloca como o que de melhor os humanos já
produziram em matéria de política. E talvez Rancière esteja mesmo
certo a respeito disso.
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