Todas as vezes que eu leio O Caderno de Saramago, eu tenho uma sensação estranha. É mais ou menos como se você estivesse navegando pela blogosfera e topasse com o blog de um Dostoievsky ou de um Machado de Assis. Isso gera um estranhamento duplo: Em uma época tão distosa quanto a nossa, é surpreendente saber que ainda existem gênios como Saramago entre nós ao mesmo tempo em que é assustador para nós, blogonautas, que ele ainda escreva um blog. Pois bem, estava eu a ler esse estandarte da língua portuguesa quando me deparo com um post sobre Álvaro Cunhal. Escreveu Saramago:
"Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem. Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinónimo de uma certa esperança. Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas."
Álvaro Cunhal, para quem não o conhece, foi um histórico militante comunista português. Participou da resistência ao Salazarismo além de ter sido homem de confiança de Moscou - não só em Portugal como na Europa Ocidental - nos anos 60 e 70. Foi romancista e pintor; assinava suas obras sob o pseudonimo de Manuel Tiago, o que foi revelado apenas em 1995, dez anos antes de sua morte. Viveu longa e intensamente, sendo um dos atores políticos mais importantes daquele país no século 20º. Muito do que Portugal é hoje, para o bem e para o mal, ou foi em virtude ou contra ele.
Falamos de um país com o qual temos inequívocos laços culturais e que viveu décadas sob a égide de um regime fascista, o Estado Novo, também conhecido como o Salazarismo. Ele nasce do caos em que se encontrava o decadente Portugal do início do século 20º e dá a cola administrativa que a burguesia local precisava para prolongar a vida do imperialismo do país. Também serviu para manter Portugal atrasado e isolado da Europa.
Frente a isso, os comunistas portugueses fizeram dura oposição e foram perseguidas. Cunhal chegou a estar preso várias vezes, chegando a protagonizar espisódio celébre denominado como a Fuga de Peniche. Nunca se desgrudou de Moscou, muito pelo contrário. Diante do agravamento da crise portuguesa nos anos 60, quando a Guerra Colonial ceifava vidas e criava cisões irreconciliáveis nas Forças Armadas, o Estado Novo se via às portas da queda e o PCP de Cunhal era uma possibilidade concreta de vir a tomar o poder.
Ironia das ironias, é na esquerda que vai surgir a oposição ao PCP: É nos arrededores de Bonn, capital da antiga Alemanha Ocidental, em 19 de Abril de 73, que inúmeros intelectuais social-democratas, trabalhistas e trotskystas em exílio são reunidos sob as bençãos - e o financiamento - do SPD para fazer frente ao PCP numa realidade pós-salazarista.
A Revolução dos Cravos acontece em 25 de abril de 74 e a direita portuguesa é varrida; o sistema político partidário é reconstruído e nenhum partido se identifica como sendo coisa mais do que centro - mesmo o direitista CDS/PP se posicionava enquanto "centro". Estão organizados o PS, firmado no contexto já explicado, o PCP de Cunhal e no mês seguinte o curioso AD, doravante PSD - a social-democracia portuguesa que nasce dos corredores das Faculdade de Direito de Coimbra e Lisboa inspirada na Social-Democracia Alemã que estava no seu auge, olvidando-se de combinar com os alemães do SPD que criaram o PS e sempre o enxergaram como seu congênere em Lusitânia.
O PCP tem sua importância denunciando e combatendo tentativas contra-revolucionário ao mesmo tempo em que tenta trazer Portugal para a esfera do Socialismo Soviético - ao qual Cunhal, reitero, manteve fidelidade canina, mesmo na Primavera de Praga. No xadrez da Guerra Fria, claro, seria impossível imaginar um país socialista no extremo-oeste da Europa e a saída se dá pelo meio com o PS de Mário Soares.
Cunhal e o seu PCP foram neutralizados. Portugal promulga a Constituição de 76, de inspiração Social-Democrata, e se torna República Parlamentarista. A debilidade decorrente do verdadeiro balaio de gatos em que se materializara o PS de Soares levam o partido a perder as eleições no início dos anos 80, dando oportunidade para o improvável PSD, que dentre os partidos assumidamente social-democratas no mundo, só encontra rival do mesmo nível no que toca o quesito esquizofrenia ideológica na figura do glorioso Partido da Social-Democracia Brasileira.
Os socialistas ainda voltam ao poder, mas fracassam e o PSD vence novamente se assumindo como defensor daquilo que é chamado como "Liberalismo Social". Dessa vitória decorre o mais longo Governo da história da III República Portuguesa, na figura do social-democrata Cavaco Silva, o que na prática coloca o PSD na centro-direita. Cavaco Silva dá a cola administrativa que o Governo nunca encontrou ao mesmo tempo em que se beneficiou duramente da entrada de Portugal na UE, alimentando-se politicamente do desenvolvimento social inercial que decorreu desse processo.
De lá pra cá, os portugueses assitem a uma alternância entre PS e PSD e atualmente se deparam com o Governo de José Socrates, entusiasta das fileiras trabalhistas do PS, já no poder há cinco anos fazendo o estilo "terceira via" à la Blair, um centrismo onde a boa arrumação do topete conta mais do que qualquer outra coisa. Os socialistas dominam a cena política local, detendo 121 cadeiras das 230 da Assembleia Nacional. Enquanto isso, seus rivais encontram-se isolados na direita (com as 87 cadeiras do CDS/PP e do PSD) e na esquerda (as 22 cadeiras dos comunistas, dos verdes e do bloco de esquerda, que para variar não se entendem entre si) - isso na prática, em tese ninguém é direitista.O PCP - que tem como filiado mais ilustre o mesmo Saramago que deu início a essa divagação - concorreu em coligação com os verdes e teve 7,56% dos votos, fazendo 12 cadeiras.
O país vive num beco sem saída que se materializa numa economia travada, um modelo europeu esgotado, uma direita que apesar de pequena é barulhenta e agressiva. Na esquerda, de um lado, o socialismo à la URSS, que alimentou os sonhos do PCP durante anos, se foi (felizmente, como diria um certo Chomsky); do outro, a nova divisão internacional do trabalho pós-URSS matou muitas das ilusões social-democratas. Entre esses dois modelos, um fracassado e o outro às portas do fracasso, ronda o espectro do Fascismo, a noite das noites, o abismo gélido e escuro que encara toda a Europa nesse exato momento.
Dificilmente a resolução para esses problemas estará em Portugal, mas o país é, pelo menos, um exemplo emblemático do enigma que nós somos obrigados a resolver - sob pena de assistirmos a vida nesse mundo pequeno e azul ser devorada junto conosco.
Oi Hugo,
ResponderExcluirPor que o fato do Saramago escrever num blog seria 'assustador' pra você?
Hugo, amigo,
ResponderExcluirdescullpe o meu sem tempo. Estou só passando para dizer que estão a sair notícias quentinhas da Confecom no Liberdade, e que desencanem de entrar no algodão que vêm sendo derrubado por algum dispositivo automático, e estamos sem tempo de recolocá-lo no ar.
Mas vale a pena ver as últimas notícias das etapas municipais no Liberdade. Um favor seria repassar, para que mais pessoas entrem e acompanhem ou se interessem em participar do processo, que do lado da sociedade civil não-empresarial continua aberto a quem queira.
beijos
(ah, amo esse homi, o Saramago... pena estar nesta correria...)
Luis,
ResponderExcluirÉ assustador pelos motivos que eu elenquei, a grandiosidade de sua obra e, goste-se ou não, pela relevância de sua postura política. Estou acostumado a conhecer pessoas na blogosfera e não a topar com pessoas conhecidas - que, quando muito, são celebridades ou pessoas já ligadas à mídia, mas não grandes artistas, ainda mais de um nível tão raro nos dias de hoje. Daí meu estranhamento.
Flavia,
Tá certo.
abraços coletivos
Hugo,
ResponderExcluirExcelente o post!
Você traduziu muito bem o que eu sinto quando me deparo com o blog de Saramago: há um regojizo do tipo que sentimos quando nos defrontamos com a alta literatura, e um estranhamento, quase um sentimento de vergonha em saber que ouso praticar a mesma atividade cibernética que aquele ancião genial.
Quanto à analogia PSD - PSDB é perfeita, e trágica. Aliás, dividimos isso com Portugal, que nos deu a língua e influenciou decisivamente na formção de nossa cultura, na acepção ampla do termo: o sentido do trágico, notadamente em política (penso no velório de Tancredo, por exemplo, ou na eleição de Collor, ou na decepção que foi FHC... enfim, os exemplos se multiplicam).
E, para completar, esse fenômeno que, como já lhe disse em outras ocasiões, não consigo comprender de todo, que é a guinada à moda da Terceira Via que partidos ditos de esquerda dão em toda parte, notadamente na Europa - e mesmo após a crise econômica mundial causada pela desregulamentação neoliberal.
É uma lástima, e o retorno do trágico, uma vez mais...
Um abraço,
Maurício.
Obrigado, Maurício e sim, herdamos mais coisas do que pensamos em relação aos portugueses. O fato é que eles tiveram mais sorte do que nós no processo no fim de um período ditatorial - certamente pelo fato de estarem na Europa e pelos ventos que sopravam no momento.
ResponderExcluirSe nós não conseguimos varrer o entulho autoritário ditatorial, eles conseguiram. O problema é que eles não conseguiram formular um projeto verdadeiramente consistente de país; decidiram entre o modelo soviético, em relação ao PCP mantinha fidelidade canina, e a social-democracia à germânica cuja defesa ficou a cargo do PS e do PSD - que, respectivamente, representavam as matizes mais e menos à esquerda dessa ideologia.
Os atores políticos pós-74 continuaram naquele dilema pré-aristotélico do reformismo x extremismo centralista e não os ocorreu que ambos os projetos poderiam estar errados ao mesmo tempo - isso numa época em que Cavaco Silva ainda não tinha feito com o PSD aquilo que poderíamos chamar de tucaneamento no Brasil de hoje.
Já essa coisa da Terceira Via que o Giddens vendeu a rodo pela Europa é uma coisa repugnante, própria da era do espetáculo em que vivemos - mas no caso de um PS não chega a ser uma novidade; o balaio de gatos que compôs aquilo lá de início já trazia germe do trabalhismo consigo.
Não sou exatamente fã de Elster, mas concordo com ele que a esquerda deve "voltar para o Museu Britânico" - em referência ao que Marx fez ao passar anos a fio estudando na biblioteca do Museu Britânico para escrever O Capital. É hora de novas ideias e mais importante: De pôr fim à dogmática.
No entanto, muitos partidos de esquerda na Europa refletem o momento político atual: Nunca tiveram quadros tão frágeis intelectualmente. Portanto, creio que as coisas na Europa, se tiverem solução, passam por fora do sistema partidário nesse momento, é mais coisa da Academia conjugada com a Sociedade Civil mesmo.
abração
Junto ao post sobre Álvaro Cunhal tinha outro sobre Garcia Marquez. Um gigante falando de outro.
ResponderExcluirAs observações de Saramago sobre Cunhal trouxeram à memória aqueles nomes que protagonizaram o fim do salazarismo. Lembranças tênues (era muito novo na época), mas que foram tomando corpo à medida que o tempo passava e as informações iam chegando e sendo assimiladas.
Antonio Spínola, Otelo Saraiva de Carvalho, Álvaro Cunhal, Mário Soares, José Afonso (autor da canção-senha "Grândola Vila Morena") e a inevitável luta para saber quem comandaria o processo.
Marcelo Caetano, que virou professor em universidade carioca, deposto quase sem resistência. Em plena brabeza da ditadura brasileira, os militares viam cair o Estado Novo português talvez principalmente pela divisão nas Forças Armadas (Alto Comando, inclusive). Assustados, tomam de presto uma medida: proíbem a música "Tanto Mar", de Chico Buarque.
O Pasquim tinha um articulista português, Armindo Blanco, crítico de teatro, disciplinado stalinista que dedicava boa parte dos seus escritos ao líder do Partido Comunista Português.
Foram tempos interessantes aqueles.
***
Em "Jangada de Pedra", Saramago atribui maiores identidades com a América Latina para Portugal (e Espanha), o que demanda até o deslocamento físico da Península Ibérica. Só que, politicamente, aqui também é época de economizar ambições, reformar projetos reformistas e, perigo maior, passar da perplexidade à resignação.
Mas, ainda sobre Álvaro Cunhal, concordemos ou não, ele foi um dos indispensáveis de Brecht. Foi daqueles que lutaram a vida toda.
Anrafel,
ResponderExcluirSobre Cunhal, não tenho dúvida que foi um lutador, que acreditava no que lutava assim como o fazia por algo cujo fim último era bom; mas a experiência histórica provou - como já tinha provado naqueles tempos - que era a coisa certa feita do jeito errado. Acabou perdendo a briga da história para um Mário Soares que nunca me desceu pela garganta.
Já sobre a Revolução dos Cravos, sem dúvida, foi algo praticamente digno do Realismo Fantástico Latino-Americano; de repente, o mais ocidental dos países europeus, que se via às voltas com um regime fascista e colonialista em plenos anos 70, viu o despertar do seu povo e da Democracia de forma, ainda por cima pacífica.
Um bom vento que soprou no mundo depois do inferno em Santiago do Chile, onde, sete meses antes, assistimos ao golpe que levou o generalíssimo Augusto Pinochet ao trono de tirano pondo abaixo as instituições mais sólidas do continente latino-americano.
Ainda assim, eram tempos em que as coisas aconteciam e a vida - e não esse simulacro de vida em que vivemos - transcorria. Eu não os vivi, mas sinto saudades deles. O nosso tempo é, no fim das contas, o atoleiro da História, onde, paralisados, assistimos a marcha incessante para a distopia. Haveria como pára-la?
abraços