Domingo passado, a República completou 120 anos. Do incidente patético que assanhou as lombrigas dos jovens positivistas dos anos 1880 - para logo cair no colo dos fazendeiros paulistas e mineiros - até o Governo do Partido dos Trabalhadores - decorrêcia lógica da ordem pluripartidária e social-democrata instituída nos anos 1980 -, passando pelo Varguismo dos 1930, muito acontenceu; o país cresceu, ganhou importância no cenário internacional, ainda assim resta uma sensação de que algo não deu certo, de que não conseguimos firmar uma doutrina política que equiparasse o funcionamento do nosso Estado ao mesmo patamar dos mais desenvolvidos do mundo.
A tese que aponta para as contradições incidentes sobre os países da periferia do sistema capitalista como catalisador disso faz sentido - pelo menos ao meu ver. O fato é que de uma perspectiva mais estrita, entre as camadas médias para cima, existe uma frustração em relação à República. Nosso trauma se reflete em um esquecimento coletivo. Eu mesmo só lembrei porque o Luis Henrique citou isso na caixa de comentários do post imediatamente abaixo. Eu penso que a História existe em decorrência de um processo dialético que nasce da antítese ao esquecimento, melhor: Do medo do esquecimento. Quando ele simplesmente triunfa, há algo errado., alguma coisa não deu certo, qualquer coisa atravancou. Veja, quando você se depara com uma coisa dessas, ainda hoje:
Carta de D. Anita Leocádia Prestes em favor de Cesare Battisti
Exmo. Sr. Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva.Na qualidade de filha de Olga Benário Prestes, extraditada pelo Governo Vargas para a Alemanha nazista, para ser sacrificada numa câmara de gás, sinto-me no dever de subscrever a carta escrita pelo Sr. Carlos Lungarzo da Anistia Internacional (em anexo), na certeza de que seu compromisso com a defesa dos direitos humanos não permitirá que seja cometido pelo Brasil o crime de entregar Cesare Battisti a um destino semelhante ao vivido por minha mãe e minha família.
Atenciosamente,
Anita Leocádia Prestes
Pois é, de tempos em tempos nos vemos vitimados por algo que exprime a irracionalidade da organização econômica e se reflete superestruturalmente; ora são os fazendeiros, os militares e, agora, a própria o Estado vê suas visceras se comerem: Temos um Executivo que administra e legisla (muito mal, diga-se), um Judiciário que julga, legisla e agora administra também (tão mal quanto) e um Legislativo suprimido. O caso Battisti é paradigmático: Se Lula, enquanto chefe de Estado capitular diante desse quadro, concordando com uma decisão absurda do STF, muita coisa irá junto - que ao Partido dos Trabalhadores, agremiação política que está acima do nível de boa parte de seus pares, falta uma visão de Estado mais profunda e ampla, eu não tenho dúvida, só espero que ela não seja mais estreita do que eu considero: Um erro aqui será fatal e atrasará a luta pela emancipação humana em anos por esses brasil de meu Deus.
Hugo,
ResponderExcluirSerá que estamos falando das armadilhas da democracia? Dias atrás, criticamos Serra por não acatar a decisão do colegiado da USP. Hoje, queremos que Lula passe por cima da bizarra decisão do STF. "E agora José?"
De que democracia estamos falando afinal?
Camila,
ResponderExcluirEm tempo, são duas situações completamente distintas:
1. No que concerne à USP, encontramos um sisteme eleitoral anacrônico que definitivamente não se coaduna com os princípios mais elementares da Constituição de 88: Lista tríplice pertence aos idos tempos do Império e ninguém me convence do contrário. Ademais, ainda pesa o fato de que o número de pessoas aptas a votar nas eleições uspianas, por si só, não é representativo, o que torna o modo de escolha, mesmo que não houvesse a lista, aristocrático, o que é completamente estranho ao princípio democrático. O papel do bom governante seria modificar essa distorção normativa, fazendo o sistema eleitoral da referida universidade congruir com um princípio fundante do nosso ordenamento jurídico; por sua vez, manter as coisas como estão e eleger o primeiro colocado é medíocre, mas pelo menos ninguém está promovendo um retrocesso político no processo; agora, colocar o segundo colocado, pelos motivos que Serra colocou, aí, me desculpe: Não estamos falando de uma "armadilha da democracia", mas sim de um evento que encontra precedente na Ditadura Militar.
2. De acordo com a Constituição Federal e o próprio entendimento do STF - por pouco não rasgada novamente no segundo julgamento sobre o caso - temos que a decisão da Corte é autorizativa e não determinativa, portanto cabe ao Presidente da República decidir sobre a Extradição ou não. O que o STF fez, na verdade, foi estabelecer que o pedido da República Italiana foi legítimo, afinal de contas, o Presidente da República só poderia julgar um pedido legítimo. Como qualquer pessoa que entenda minimamente de Direito pode ponderar, o reconhecimento de legitimidade do pedido se deu por meio de julgamento no qual o próprio preceito constitucional da separação dos poderes foi ignorado além de que os próprio ministros só vieram a reconhecer qual o peso da decisão deles - se era determinativa ou autorizativa - posteriormente, o que os tornou juízes de Fato e de Direito, algo verdadeiramente assustador, levando em conta algo chamado Iluminismo - e um certo Canotilho há de concordar comigo, com uma enfase menor, mas há. Bem ou mal, a situação agora é de que o Presidente da República é a autoridade competente para decidir sobre a Extradição, portanto, judicamente qualquer decisão que ele venha a tomar é válida - assim, não se pode falar de "passar por cima" (ou por baixo) de nada.
abraços e espero ter esclarecido a minha linha de raciocínio.
Hugo,
ResponderExcluirEntendi que o STF estava votando se Cesare Battisti deveria ou não ser extraditado e que esta era sua função. Se como você disse, trata-se apenas de julgar a legitimidade do pedido, então me equivoquei!
Abraços e agradeço muito pelos esclarecimentos!
Camila,
ResponderExcluirNão precisa se desculpar, isso não esteve claro para ninguém - nem mesmo para os ministros, que primeiro analisaram o mérito da questão Battisti para depois decidir qual a natureza (autorizativa ou determinativa) que a decisão teria, o que ao meu ver foi surreal.
Ademais, uma leitura mais atenta da Lei e a própria jurisprudência do STF apontava que natureza da decisão seria mesmo autorizativa, mas como o interesse em punir Battisti era tão grande, passou-se por cima disso também. Em suma, o estrago poderia ter sido maior.
Ironia das ironias, Battisti novamente foi vítima de um processo político, agora, por parte da suprema corte brasileira. Depois do julgamento factual, resta a decisão do Presidente da República. Esperemos para ver se Lula irá defender a Regra em meio a essa crise ou se ele irá convalidar a Exceção.
abraços
Oi Hugo,
ResponderExcluirFiquei com uma impressão um tanto amarga, um tanto comédica, da memória desse feriado: 'pombas, só eu lembrei?!' É triste. Mais triste porque caiu num domingo. Fosse numa segunda, talvez mais pessoas lembrariam... ou não?
Luis,
ResponderExcluirAs pessoas se lembrariam que tinha um dia vago, mas acho que a ampla maioria não lembraria o motivo daquilo - e pouquíssimos dentre aqueles que se lembraram, teriam algo mais do que um lembrança automática a respeito do que se tratava. A amnésia coletiva em relação à República enquanto evento histórico é sintomática e também pungente.
abraços