Não escrevi ainda sobre o tema porque, como vocês bem sabem, estive tremendamente ocupado nos últimos dias. Acabei acompanhando o noticiário de forma terrivelmente precária nas últimas duas semanas. Quando finalmente pude analisar o caso Uniban com mais cuidado e tomei contato com os textos na blogosfera sobre o acontecido - em especial do Maurício Caleiro e do Tsavkko -, fiquei estarrecido com a questão. Evidentemente, não podemos ter ilusões sobre o que aconteceu: Por mais terrível que ele possa ter sido, trata-se de um evento meramente sintomático; estamos, na verdade, tratando de uma consequência desse processo de desfiguração acadêmica assistido no Brasil dos anos 90 para cá.
A Academia nasce no Brasil da década de 1820 sob o já à época ultrapassado mote coimbrão, portanto, ela só vai ganhar uma importância decisiva em nossa sociedade com a introdução do pensamento positivista no país; a ideia da perfeição tecnocrática e da Academia como meio para formar uma elite dirigente nacional é uma realidade bastante clara a partir dos anos 1880 - e dura por volta de 100 anos, com idas e vindas, nas quais o fenômeno uspiano nos anos 1930 e a introjeção gradual do pensamento marxista são meros tópicos dentro de um mesmo contexto. O momento histórico que vivemos está conectado no desmonte do Estado Varguista promovido pelo Governo Collor e acentuado nos anos FHC; mesmo que a Constituição de 1988 implementasse uma perspectiva social-democrata de Universidade, na prática os dois primeiros presidentes eleitos trabalharam dentro de uma lógica thatcheriana de mercantilização dos mais variados setores da vida social como resolução dos seus problemas.
Com FHC vimos as regras para se montar uma Universidade - ou Centro Universitário - simplesmente serem afrouxadas e, com isso, inúmeros grupos econômicos que de algum modo já atuavam na área de educação entraram nesse "novo mercado" ou simplesmente "expandiram suas operações": É aí que surgem as chamadas uniesquinas - como a Uniban do caso -, instituições academóides que oferecem cursos a preços baixissímos ao mesmo tempo que colocam a figura do diploma como uma mera porta para um futuro profissional tranquilo. Tudo isso sob as barbas do MEC e do sucateamento das universidades estatais - em especial das federais.
O fato é que nos primórdios do Governo Lula, essas instituições já davam sinais de crise financeira decorrente de uma expansão incontrolável; a mesmas anomalias que provocaram suas origens foram aquelas que não conseguiram sustentar sua existência; por mais louváveis que foram as medidas lulistas em reverter o processo de sucateamento das federais - aumento salários de professores, verbas e vagas de um modo sustentável -, as políticas de afrouxar mais ainda as regras para o ensino superior - diminuindo a exigência de mestres e doutores por instituição de ensino superior - e incluindo no Prouni - programa destinado a conceder bolsas universitárias para estudantes pobres - instituições desse tipo, acabaram por não apenas dar uma sobrevida para essa anomalia como também reverteu o aniquilamento econômico dela.
Nesse sentido, hoje existem dois tipos de universidades no Brasil: (i) as estatais, controladas pela mão de ferro do Estado - com reitores escolhidos politica quando não partidariamente -, cujo fim é a formação da elite dirigente e/ou dominante do país - e entram como exceção a essa regra algumas poucas universidades privadas de ponta, geralmente católicas (ii) as privadas em sentido lato, controladas por grupos empresariais nesse esquema de cursos baratos e da venda de diplomas como se fossem indulgências e seu fim é a mera formação meramente técnica (quando muito) de quadros de terceiro ou quarto escalão.
Sobre o tipo (i) já tratei bastante por aqui - e é o tipo (ii) que nos interessa aqui. Em um primeiro momento, a ideia de uma Academia meramente profissionalizante é contrária à própria ideia de Academia; quando se retira o potencial de reflexão filosófica e de debate político dela não há Academia, mas sim essa massa academóide a qual eu me refiro. Ademais, a ideia do profissionalismo, a idolatria ao diploma e o culto à técnica fazem parte de uma face possível da ideologia hegemônica e se manifesta em alguns setores da nossa sociedade como a própria religião - e o fenômeno da Teologia da Prosperidade: Esse tripé nasce das distorções do desmonte mal-feito do Varguismo e da incapacidade petista de elaborar uma narrativa suficientemente coesa que afaste definitivamente do abismo civilizatório que nós vislumbramos de muito perto nos anos 90; cada um dos pés desse construto instável tem origens diferentes: Seja no face burocrática da social-democracia, no cartorialismo lusitano que não superamos ou na tecnocracia em estado puro legada pelo positivismo fundante da República.
O impacto psicológico desses fatores sobre as mentes de jovens de classe média-baixa recém-saídos da adolescência é brutal; isso produz psicopatologias graves que ameaçam a própria integridade do tecido social; não estamos formando cidadãos, mas sim reificando pessoas de uma maneira absoluta. A deformação psicológica que essa tentativa de programação opera sobre a psiquê desses jovens, a via de regra, constrói cidadãos alheios da sua realidade social e histórica, cheios de ilusões de grandeza e dotados de comportamentos anti-sociais devido a uma educação individualesca - no entanto, em dados momentos, isso pode produzir manifestações agudas e histéricas de comportamentos anti-sociais como no caso em questão.
Eis aí que chegamos no caso da Uniban, onde uma aluna de turismo foi ameaçada de estupro por uma massa insanamente enfurecida porque trajava um vestido "muito pequeno" e teria uma "conduta inadequada" (?!). Pior, foi expulsa da Universidade como se ela tivesse sido a culpada pelo que aconteceu - numa decisão que eles tiveram de voltar atrás por conta da pressão popular. As cenas da turba incontrolável são assustadoras, mas são tratadas superficialmente pelo noticiário: Tudo se torna um mero espetáculo, sem causas ou relações com nada.
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