Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que há algo que não se encaixa nas versões da morte de Osama Bin Laden. De todo modo, o que importa é o ar farsesco do discurso do presidente americano Barack Obama sobre um episódio cujas cenas podem até ser incertas e duvidosas, mas o mesmo não se pode dizer sobre os excessos narrativos, uma clara hollywoodianização dos fatos com fins eleitorais. Dias antes, o assassinato do filho e de três netos do ditador líbio Muamar Kadafi, em mais um bombardeio da Otan sobre aquele país, não ganhou a devida cobertura.
Ambas as ações - perfeitamente conectadas quando se observa o desenvolver do jogo geopolítico no Mundo Árabe - são atos nos quais a superpotência americana, em sua decadência, agoniza desrespeitando as conquistas mais elementares do Iluminismo. Sim, mesmo os nazistas foram levados a julgamento ao final de Segunda Guerra Mundial e o assassinato de Bin Laden, em território estrangeiro e a mando do líder americano sem qualquer julgamento, foi um crime inequívoco, tanto quanto os que ele cometeu - muitos dos quais, aliás, graças ao treinamento e ao financiamento americano nos tempos da Guerra Fria quando eles eram aliados.
No caso líbio, antes mesmo do assassinato brutal do filho e dos netos (todos crianças) de Kadafi, é bom lembrar que aquela própria guerra é, como nos lembra o sempre atento Tsavkko, uma ofensa à ordem internacional, na medida em que a resolução n. 1973 da ONU voltava-se para a criação de uma zona de exclusão aérea sobre o território líbio e a proibição de entrada de armas no país - ela jamais foi uma autorização para bombardeios massivos sobre a população civil tampouco disse respeito ao armamento dos revoltosos.
Estamos diante de um retorno a Schmitt na medida em que, malandramente, o contrato foi suspenso e o soberano achou a desculpa que precisava para voltar a mandar e desmandar. A tentativa de construção de uma ordem internacional pacífica e cada vez mais integrada, mesmo com todos os seus percalços e falhas evidentes, neutralizou uma marcha rumo ao abismo que se desenhava claramente no século 20º. Uma vez implodido o poderoso Estado soviético e agonizante a tentativa de pax americana, os EUA se lançaram numa jornada tirânica que desequilibrou a geopolítica e a economia mundial.
O colapso das ditaduras da Tunísia e do Egito e o processo revolucionário em ambos os países neste ano esvaziaram, bruscamente, a relação de retroalimentação entre o imperialismo ocidental - e suas pequenas tiranias satélites - e os grupos terroristas que serviam de álibi para aquela forma de dominação - e vice-versa, pois esses próprios grupos também sempre se alimentaram das circunstâncias causadas por aquela forma de dominação -; de repente, surgiu uma multidão que já não mais se sujeitava ao discurso do déspota e os EUA viu-se sem chão - e o mesmo se pode dizer da própria e sempre superestimada Al-Qaeda.
Produzir uma guerra na Líbia foi a saída malandramente encontrada para que tudo mude sem nada mudar; derrubar uma ditadura agora amiga, mas pouco confiável serviu para construir um posto avançado para manter tropas capazes de suprimir desdobramentos mais libertários que os processos tunisianos e egípcios possam ter. O assassinato de Bin Laden, nas condições ainda pouco claras e cercada pela nuvem pirotécnica obamista, trata-se tanto mais de um golpe de marketing eleitoral contra um adversário praticamente irrelevante para as pretensões americanas - mas não para as pretensões eleitorais democratas.
Obama que poderia representar o reestabelecimento de uma ordem contratual na comunidade internacional - que é tirânica também à sua maneira, mas não se iguala ao que vemos hoje -, simplesmente jogou pela janela as oportunidades que teve, uma consequência clara da chegada ao poder de um político jovem, sem o devido controle da sua máquina partidária e que, por sua vez, parecer desconhecer a verdadeira natureza dos problemas que deve responder. Sua reeleição, hoje, está praticamente garantida, uma vez que a retórica barulhenta e oca de Sarah Palin e do Tea Party foi abafada pelo acaso - o atentado contra a congressista democrata Gabrielle Giffords, alvo do mapa de Palin e vítima de um franco-atirador lunático, contagiado pela radicalização política local - e pelos efeitos da encenação da morte do vilão-mór - o que surtiu efeito junto ao eleitorado que ele precisa disputar.
No entanto, a governabilidade do país está cada vez mais ameaçada, seja pela maneira como a estratégia imperial americana tropeça nas próprias pernas ou pela forma como as causas da crise econômica não são enfrentadas - e ambos os problemas, curiosamente, se entrelaçam, a indústria parasitária da guerra está junto dos problemas econômicos do país, embora ambos aludam para um modelo de produção e consumo insustentáveis. A questão é que os EUA podem mesmo implodir levando o mundo junto ou não.
É importante ressaltar que as provas de que bin Laden esteja mesmo morto dissolvem-se no ar. Não apenas o corpo jogado ao mar, a moradia em que supostamente se encondia bin Laden será expropriada pelo exército e futuramente demolida - ou seja, estamos diante de uma verdadeira 'queima-de-arquivo'. Os historiadores terão um baita trabalho para registrar esse episódio.
ResponderExcluirAs idéias são uma feliz analogia da luz, pois assim como esta podem desde iluminar, também serem filtradas e distorcidas. Para iluminar é preciso manter o foco e a variedade de espectro. A luz é a idéia, não a ideologia.
ResponderExcluirCaro,
ResponderExcluirComplementaria sua boa análise com dois comentários.
Primeiro, uma reflexão provocativa. Os assassinatos do Bin Laden e dos filhos de Kadafi foram mostrados cinematograficamente como mortes de vilões da pátria. Não muito tempo atrás, a estória foi outra. Na década de 90, para legitimar a intervenção militar no Golfo, o governo norteamericano contratou uma empresa que colocou em ação a Campanha de Hill&Knowlton. Nela, Saddam Hussein foi demonizado, imagens foram manipuladas de forma a mostrar atrocidades cometidas pelos iraquianos, histórias de tortura foram inventadas e arquitetou-se a história do assassinato de bebês prematuros. Digno de enredo hollywoodiano.
Sobre Schmitt, você está errado em apenas um sentido: quando fala que ele "retornou". Na verdade, desde Bush, ele nunca saiu de cena ehhe.
Agora, falando sério, o colapso das ditaduras no Oriente Médio tendia ao esvaziamento do discurso político do "inimigo" (terrorista). Mas, coincidentemente (ou não), eis que no momento em que a "retroalimentação imperial" se enfraquece surge (desaperecendo) a figura do "inimigo" norteamericano número 1: Osama bin Laden.
Resultado: a bipolarização amigo-inimigo e o manqiqueísmo cinematográfico perdurarão por mais um tempo na Casa Branca - e no cenário internacional.
Ah sim... sobre o contexto político norteamericano.
ResponderExcluirObama saiu como grande vitorioso após a morte de Bin Laden. Primeiro porque fez o que Bush não conseguiu em oito anos; segundo porque estava certo em defender a necessidade de os EUA concentrarem-se no Afeganistão e no Paquistão, ao invés do Iraque.
Quanto às eleições, o que me diz de uma possível candidatura do magnata Donald Trump? Os norteamericanos, como nós, adoram celebridades no poder. Ele pode ter alguma chance, apesar de ter sido massacrado publicamente no discurso do Obama na Casa Branca...
Enzo, não resta dúvida que Obama deu um passo ENORME rumo à reeleição - embora continue andando em círculos em termos de governabilidade e nada indica que isso vá mudar, muito pelo contrário. Sobre Trump, creio que ele tinha pouquíssimas chances mesmo antes do assassinato de Bin Laden, agora, muito menos.
ResponderExcluirabraços
Bem, o fato é que Bin Laden está morto. Poupados outros aspectos, não há garantia alguma de que Obama será reeleito por causa disso. então, não procedem as análises de que a "morte" teria sido divulgada agora para fins eleitorais. Bin Laden promovido a cabo eleitoral? Onde estava seu corpo antes, então? Quem o teria eliminado, então? A oposição americana é tão idiota a ponto de não detectar tal tramóia? Bin Laden está vivo? Onde estaria então? Olha, nada a ver.
ResponderExcluirAnônimo,
ResponderExcluirSim, Bin Laden promovido a cabo eleitoral. Todo esse espetáculo cá não me parece outra coisa senão palanquismo - e digo mais: surtiu efeito, agora a aprovação dele já passa dos 50%. No demais, não sou eu quem tem de explicar, mas sim o Governo Americano, acho que fui suficientemente claro que foi tudo nebuloso demais.
abraços
Prezado Hugo,
ResponderExcluirTambém duvido das possibilidades de Trump, mas acho que ele tem chances. Numa recente pesquisa feita entre os Republicanos, Trump recebeu 20% das intenções de voto - quantia comparável a de Huckabee. É mais provável que ele não ganhe as eleições, se concorrer, mas ele sai ganhando bastante ao se envolver na política norteamericana.
Recomendo a leitura: http://www.economist.com/node/18586584
Abraços,
Enzo
Nesse sentido sim, Enzo, eu me referia a pouquíssimas chances de levar o pleito, não de ser bem votado - o que eu acho que ele pode sim.
ResponderExcluirabraços e obrigado pela dica
Parabéns a todos que estão deixando essa discussão bem interessante. E agora mesmo estou lendo que o TPI (Tribunal Penal Internacional) está no encalço do ditador da Líbia (o que cheguei a defender no comentário dum outro post, mas que graças a reflexões de vocês vejo isso com mais criticidade agora)
ResponderExcluirMas o que será da Líbia no futuro? Não tenho dúvidas que o próximo alvo é a Nigeria
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