Historia - Gyzis |
O recente debate que opôs o Governo Dilma - com sua nova equipe de articulação política - aos senadores petistas, a respeito do projeto de Lei que defende o sigilo eterno dos arquivos da Ditadura não pode passar desapercebido. É profundamente preocupante que o Palácio do Planalto tome uma posição pró-sigilo eterno e a louvável negativa dos senadores petistas ao projeto, por sua vez, apenas reforça que o clima de animosidade entre governo e partido hegemônico permanece em pauta, sobretudo pela falta de habilidade na articulação política e truculências gerenciais de um governo que apesar de extremamente competente na área macroeconômica, esbarra solenemente em pautas como essa. Recapitulemos então a história recente da relação da democracia brasileira e o fantasma de sua ditadura, que insiste em nos rondar:
A Lei de Anistia de 1979 foi um dos marcos do processo de distensão e abertura, se dando quando a tecnocracia militar que se apossou do Estado brasileiro com o Golpe de 64 - sob os auspícios da burguesia local e dos interesses das potências capitalistas - preparava uma retirada segura à luz da crise do regime: era um movimento que visava o desmonte do autoritarismo fardado para, quem sabe, nos conduzir a uma democracia alegórica como a que viviam México e Venezuela no mesmo período. A pressão da sociedade civil em processo de organização - com os adventos do renascimento do sindicalismo no ABC paulista e das comunidades eclesiais de base - ia em sentido contrário, visando conquistas mais relevantes: clamava-se com força por uma anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos, uma nova constituinte que concebesse não apenas a redemocratização do país por meio de eleições diretas como a construção de um Estado social.
Como sabemos - ou como se pode depreender de uma rápida leitura do texto da referida lei -, a Anistia conquistada não foi ampla, geral ou irrestrita, muito pelo contrário: o Estado não perdoou aqueles que levantaram armas contra o regime, mas apenas os condenados por "crimes políticos" - ou seja, os políticos incômodos afastados dos cargos que ocupavam pelos atos institucionais e congêneres:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. [grifo nosso]
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.
Mais do que isso, o Estado brasileiro não perdoou jamais os seus agentes que mataram e torturaram, pois ele jamais reconheceu que houve políticas de eliminação física de adversários e tortura como politica de Estado nas suas prisões. As decisões judiciais que aplicaram a Lei de Anistia para proteger torturadores não poderiam ter perdoado quem a Lei não beneficiou e, nem por analogia, essas decisões poderiam ter sido tomadas, pois os guerrilheiros não foram perdoados - isso, supondo que pudéssemos aceitar uma simetria entre algozes e vítimas. Essas decisões, aliás, foram tomadas pelos tribunais da democracia brasileira, o que só prova o ponto que temos batido nos últimos dias: "exceção" e "regra" não se opõem, elas bailam juntas.
No recente e fatídico julgamento no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) - sempre ele - entendeu ser válido esse, digamos, cordial entendimento da Lei de Anistia, tivemos um caso absurdo de auto-perdão, o que consiste na própria implosão do edifício contratualista sob o qual o nosso Estado se assenta: Se o Estado Constitucional é aquele baseado em um acordo amplo, no qual a sociedade acorda de forma multilateral os termos nos quais se dará o exercício da soberania e do governo, o auto-perdão promovido pelo STF expõe tanto o calcanhar-de-aquiles do Estado de Direito como, ao mesmo tempo, nos remete ao absolutismo. Isso nos valeu, inclusive, uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Esse permanente calcanhar-de-aquiles do Estado de Direito, no entanto, não significa que um governo constitucional e democrático possa ser nivelado a uma tosca tirania - como o marxismo vulgar nos faz crer -, mas sim apenas aponta para sua insuficiência como meio para resolução de contradições reais, mas ele, evidentemente, não deixa de diferir para melhor (em muito) do Estado absolutista ou das formas contemporâneas de totalitarismo, as quais tem por premissa central do sistema a possibilidade de um homem decidir, de acordo com sua vontade, por meio de atos unilaterais e irresponsáveis. A decisão em tela, portanto, teve um custo altíssimo, pois ela validou em nosso atual sistema constitucional uma interpretação que protege a tirania em sua forma mais óbvia.
Novo corte. A luta pela punição dos torturadores ainda vivos - em relação à qual nos mantemos céticos quanto à efetividade de seus aspectos penais, embora discordemos totalmente da seletividade com a qual seus críticos à direita empregam aqui o argumento anti-punitivista e, sobretudo, com a doutrina de exceção que valida esse (auto)-perdão -, uma outra luta, talvez mais importante, se desenrola: aquela que diz respeito à abertura dos arquivos do regime, cuja obscuridade não é outra coisa senão o maior crime da democracia brasileira: a saber, sua cumplicidade com aqueles que entendem não apenas ser correto apagar a memória histórica daquele período como, ainda por cima, enxergam a destruição da memória histórica como horizonte politicamente aceitável e possível.
A proposta de um sigilo eterno é absolutamente preocupante. Muito mais efetivo do que nos preocuparmos em condenar qualquer velho torturador com uma sanção penal, tendo em vista os crimes contra a humanidade que ele cometeu, é trazer à luz o que aconteceu: e o fato da verdade absoluta ter sido destruída pela filosofia crítica contemporânea, não depõe contra a existência da Verdade, mas apenas a coloca no plano da relatividade; a verdade histórica, portanto, é a expressão pública da vida da nossa coletividade, relativa às narrativas documentadas da existência dela - ou de um dado período seu. Portanto, é inadmissível o corte, a narrativa negativa das omissões, isso é vida que se captura, o que conta esse silêncio ensurdecedor é o hino dos opressores que poderão, assim, passarem mais tempo se utilizando da cândida máscara do bom-mocismo. É preciso, pois, tirar tais arquivos do quarto fechado para purgar de vez a ferida aberta desse período histórico.
Essa medida contradiz posturas anteriores do governo, como a defendida pela própria Dilma - favorável ao projeto que limita para 50 anos o tempo de sigilo de documentos ultra-secretos quando na Casa Civil - e o próprio atual Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que defendeu publicamente na 48ª caravana da Anistia a realização da comissão da verdade - de acordo com um clamor de mais trinta anos que justifica ainda precisar existirem caravanas da anistia. Aliás, essa nova posição do governo já enfrenta uma justa oposição do próprio Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel: ontem, durante lançamento de projeto de digitalização e disponibilização pública dos arquivos da Ditadura em São Paulo - que já conta com a chegada de inúmeros arquivos sobre a nossa ditadura, vindos dos Estados Unidos, maior apoiador do golpe -, ele que declarou que tomará providências contra isso - o que é razoável, afinal, a eternidade do sigilo viola claramente o princípio constitucional da publicidade, basilar em nosso sistema. Entendemos, no entanto, que o próprio Projeto de Lei que tramita hoje no Senado é problemático, pois o prazo máximo de 50 anos para a liberação dos arquivos já é demasiadamente longo e pouco razoável.
Portanto, nem anistia, nem anestesia: nada mudará o fato que durante vinte anos do séculos vivemos sob um indisfarçada tirania, agora o assunto é outro, precisamos combater o fascismo que há entre nós, aqui e agora.
Pensando bem, será que algum arquivo escabroso foi aberto alguma vez? Nem os arquivos da Guerra do Paraguai foram abertos não é? Será que os da escravidão foram ou só sabemos dos castigos pelos relatos orais (ou talvez porque as torturas ocorriam em propriedade privada...)?
ResponderExcluirPerfeito, Celião, essa sua ponderação é extremamente válida, ainda assim eu foquei no caso da Ditadura Militar porque ele (I) está posto em questão, neste exato momento, no debate público; (II) é o caso mais escancarado de política de esquecimento posto em prática. Sobre os dados da escravidão, claro, muito se esconde sobre as políticas públicas do Brasil, já enquanto Estado soberano, para obter e manter uma enorme população de escravos, mas sabemos (enquanto sociedade) bem o que é uma casa grande, uma senzala ou um tronco - mas sabemos mal o que é o Dops. Para além desses casos, convém retomar a lição de Michel Foucault sobre a História: é mais importante o que deixam de contar, do que aquilo que contam.
ResponderExcluirabração
É realmente preocupante esse sigilo eterno, é jogar fora nossa memória política e social!!!
ResponderExcluirSem dúvida, Jéssica. Houve um recuo importante do Planalto depois da pressão inicial e, creio, a proposta do prazo limite de 50 anos para o sigilo, sem previsão de renovação, deve passar como se esperava inicialmente. Não é possível que isso passasse dessa maneira.
ResponderExcluirbeijos