Battisti deixa a prisão |
"A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no séculos XX "ainda" sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história da qual emana semelhante assombro é insustentável."
(Walter Benjamin, Tese VIII sobre o Conceito de História)
A decisão de ontem do STF que libertou o ativista italiano Cesare Battisti começou com mais uma cena surreal para se acrescentar ao caso: uma discussão preliminar que tratava da "reclamação constitucional" da República Italiana contra a decisão do Presidente Lula que negou a extradição de Battisti, o que foi rejeitado pela Corte devido a obviedade de que um Estado estrangeiro não pode questionar atos soberanos da Presidência da República. Passado isso, o gigantesco (e pedante) voto do relator, Gilmar Mendes, foi lido integralmente, conseguindo a proeza de não tratar da questão à qual se referia aquele julgamento: não mais estava em questão se a extradição iria ocorrer ou não, mas se seria expedido ou não o alvará de soltura do ex-extraditando; mas Mendes trouxe novamente à baila a questão da extradição, esquecendo-se convenientemente que aquela mesma corte já havia decidido que sua decisão sobre a extradição era meramente autorizativa e que cabia ao Presidente da República a palavra final (que foi negativa, aliás).
Finalmente lido o voto do relator, com referências insistentes ao risco que corria o Estado de Direito - quando o Presidente não apenas tinha cumprido o que o nosso direito determina como o que o próprio STF, em um julgamento posterior e capcioso, o autorizou a fazer -, sua tese foi destroçada pelos colegas, sobretudo por Luiz Fux: uma vez não extraditado e não tendo motivos para estar preso no Brasil, o paciente só poderia ser solto. Mesmo que os votos do Presidente da Corte, Cezar Peluso, e também a ministra Ellen Gracie, tenham ido na mesma direção do relator, a agonia de quatro anos no cárcere para Battisti finalmente terminou com um placar de 6x3 por sua libertação. Para além da problemática do funcionamento atual daquela corte - sobretudo as perfomances histriônicas de Mendes, com todos os seus conhecidos contorcionismos lógicos - e da reação desequilibrada da República Italiana desde o começo do caso - que, imersa em profunda crise política, busca no caso Battisti uma conveniente cortina de fumaça -, a questão de fundo, e o que que realmente interessa, é o seguinte: o caso em questão, muito mais do que o julgamento de uma mera extradição, foi uma verdadeira crise institucional, na qual o STF, ao ver a oportunidade de tomar prerrogativas que não são suas, lançou uma verdadeira ofensiva pelo poder na tentativa de neutralizar a própria política por meio da judicialização da democracia.
Os mecanismos de controle de constitucionalidade assim como de controle de atos administrativos, por eles mesmos, são muito mais do que instrumentos de autodefesa do Estado de Direito - como creem os crédulos na religião constitucionalista e como postulam os ideólogos da judicialização da política: tratam-se, na verdade, da exposição da fissura fundamental do sistema, a partir dos quais o STF exerce a máxima jurisdição, podendo facilmente tomar medidas de exceção - e a possibilidade de supressão de direitos por meio da interpretação e aplicação das leis pelo judiciário é a prova máxima de como o Estado de Exceção é uma realidade latente ao Estado de Direito e não sua antítese, oposta em termos binários. A briga terminada ontem se deu porque o caso Battisti nos levou a uma disputa numa zona ainda não explorada de decisão final, na qual ideólogos como Gilmar viram a oportunidade única de entrar na seara dos atos políticos e soberanos - que cabem ao Presidente da República que, não à toa, é democraticamente eleito. Fosse triunfante a tese de Mendes, estaria legitimado um avanço estratégico do Supremo, afigurado a partir daí como uma Casa de Melhores pairando sobre a Democracia.
E aqui não vai uma defesa de qualquer decisionismo Presidencial - o que sequer deveria estar em discussão, pois Lula exerceu atribuições já instituídas pelo texto constitucional, portanto, se há algum problema, certamente não seria culpa dele -, mas sim um olhar para a problemática da decisão final no Direito, ora exposta, o que de pronto expõe uma fissura irremediável sua, ferindo de morte a segurança fundada na possibilidade de existência de um sistema jurídico perfeito, unitário e capaz de se autocorrigir: ele sempre dependerá, em última instância, do desejo e da capacidade de criação de um reles mortal como qualquer um de nós. É essa função, trajado com a roupa que só os inteligentes veem, que Mendes pretendeu usurpar para si. E aqui cabe atentar também para o fato de que há um distinção fundamental, quando falamos em aplicação do Direito, entre e dever e poder: não me interessa, de maneira alguma, partir de uma premissa idealista na qual falamos do que tribunais deveriam fazer, mas sim avaliar o que eles podem fazer; o risco permanente exposto pela possibilidade da exceção basta por si só, embora, no mundo das ideias, o direito lhe vedasse a possibilidade de existir.
Quando o STF lançou suas garras sobre a decisão do então Ministro da Justiça Tarso Genro, o fez adentrando o terreno do mérito de sua decisão de concessão de asilo para Battisti - sendo que ele deveria apenas se ater às questões formais do ato administrativo. Quando a mesma corte julgou se sua decisão pró-extradição era autorizativa ou vinculativa, ele realizou um julgamento absurdo no qual decidiu qual o caráter de uma decisão (já tomada) e se ele teria poder de decidir, à revelia da autoridade do Presidente, uma medida de política externa ( sendo que, em tese, quem representa o nosso país no plano exterior é, vejam só, nosso chefe de Estado e não nossa suprema corte...). Ontem, o eminente relator, em um julgamento sobre expedição de alvará de soltura para ex-extraditando, decidiu que seria possível reverter tudo que já foi decidido - quando deveria, em posição conservadora, no máximo determinar a manutenção da prisão dele no nosso país. Não há nada de "anormal" porque, na prática, não existe "normalidade", o que existe é essa fissura expressa pelo poder daquela Corte que, como todas as doenças, tem seu diagnóstico tornado claro no momento de crise.
Se os anos de chumbo italianos, em relação aos quais Battisti foi uma das muitas vítimas, trouxe a questão do Estado de Exceção à luz de uma forma comparável apenas ao modo como Hitler usou-se da Constituição do Weimar para instalar uma ditadura sanguinolenta, novamente eles acabam, mesmo que com certo atraso, trazendo essa problemática novamente à luz no Brasil dos anos 10. É essa questão que atormenta um pensador do porte do italiano Giorgio Agamben, testemunha ocular dos anos de chumbo e, não à toa, grande teórico da questão do Estado de Exceção na comtemporaneidade. Agora que o caso deve ir à Corte de Haia, viveremos um momento interessante, no qual a Itália, na tentativa de jogar o Brasil contra a parede, terá de enfrentar publicamente e no plano internacional seus demônios interiores - e o Brasil estará diante da doutrina do terrorismo internacional, o álibi maior da humanidade desde o fim da "ameaça comunista", mas com certos ministros da nossa Corte, certamente não precisamos de (mais) inimigos.
belo texto!
ResponderExcluirCom a descrição do julgamento, não consegui deixar de lembrar de assuntos da casa (puquiana): vi algumas sessões do Consun e fiquei decepcionadíssimo com o seu funcionamento, cheio de manobras. Por exemplo no caso da Viviane (estudante penalizada por causa da ocupação da reitoria em 2007), em que os membros do Consun na 4° sessão rediscutiram o mérito do caso, ou seja é como discussem tanto que até esquecem o que estavam discutindo! É de pasmar, que assim a sentença foi de manter a penalidade já aplicada à Viviane pois (após 4 sessões!!) não entrariam no mérito da questão de rever a penalidade!
E a justificativa? É que não entrariam no mérito de rever a penalidade pois viram que "não há fato novo". Detalhe que para ver que não havia fato novo no processo, chegaram a mandar para os conselheiros mais de 1000 páginas do processo inteiro (decisão que saiu no final da 3° sessão, que era sessão extraordinária!).
E atualmente a discussão é quanto aos contratos dos docentes, que pelo jeito, também vai se estender tanto que já estão chamando sessão extraordinária pois não conseguem fazer a discussão andar!
Conclusão: a Puc-sp está dando péssimos exemplos para as próximas gerações que ocuparão as cadeiras superiores da Justiça.
Célio: No caso da demissão do Professor Garrido, debatido na última reunião do Conselho da Faculdade realizada esta semana, ocorreu algo parecido com uma alegação de incompetência do Conselho para não entrar no mérito do reconhecimento da demissão indireta por parte da empregadora, a Puc, em virtude da redução pela metade de seu salário; surge sempre o argumento formalista, de que não é possível entrar no mérito (ou, no caso dos demais conselhos, que eles não são competentes para tratar do assunto, justamente quando são os mais polêmicos). Isso, como eu coloquei, não é uma anormalidade, mas algo perfeitamente possível no que toca ao fenômeno jurídico.
ResponderExcluirabraços
Hugo, texto sensacional.
ResponderExcluirAgamben, na esteira de Schmitt, nunca deixou de ser atormentado pelo problema da decisão. Logo, do fechamento sistêmico, do que está além do fundamento, isto é, do que põe a própria questão dos fundamentos. Penso que ele esboce resolver por meio de uma soberania jacente e onipresente e inafastável, um rasgo que está além da legalidade e da legitimidade, um diferendo, um valor dos valores, que anima e põe esse arranjo gigantesco de regras, princípios, valores, critérios e aparelhos jurídico-políticos. Tem muito aí da distinção entre ôntico e ontológico, entre o Ser e os entes (que Derrida repete como plano da justiça e plano da justiça como direito). A exceção, que é esse motor interno, reaparece o tempo todo, e a cada decisão se trata de reinstituir o sistema como um todo, para capturar a vida nos mecanismos anônimos e dispersos de assujeitamento da vida (cujo paradigma é o campo de concentração), para ser triturada numa máquina de separação e desqualificação (cujo limite diferencial é a vida integralmente desqualificada, a vida nua).
Só ressalvaria que o discurso antiterrorista não se tornou hegemônico por causa do fim do comunismo; o discurso do terrorismo é contemporâneo aos primeiros movimentos de contestação do capitalismo na Europa, e se tornou global assim que o socialismo real também ganhou dimensão global, depois de 1917. Tanto terrorismo quanto totalitarismo foram duas armas argumentativas que, em regra e como rendimento principal, não foram engendradas e brandidas contra regimes fascistas, mas para desqualificar movimentos anti-capitalistas.
Abração.
Perfeita exposição, Brunão - e você com certeza faz isso com muito mais propriedade do que eu. Aliás, é bastante presente a sombra do bom e velho Heidegger sobre o pensamento de Agamben - para o bem e para o mal.
ResponderExcluirE sobre a questão do "terrorismo", creio que ele era um álibi forte já antes da Revolução de 1917 - e surge na própria Rússia, basta ver o episódio da morte do Tzar Alexandre II e como os grupos de reivindicação social eram tratados na Rússia do século 19º (o que serviu para desqualificar a esquerda anarquista radical já naquele período).
Passado algum tempo, a "ameaça comunista" vem à tona e aí, acho que toma sim o espaço do "terrorismo" no noticiário internacional, até que uma vez caída a velha União Soviética, não há mais o que se falar a esse respeito - o que faz a questão do terrorismo voltar progressivamente à tona, sobretudo, após o 11 de Setembro.
O fantasma do terrorismo e o mui conveniente stalinismo foram, ambos ao seu modo, belas saídas para o avanço do fascismo e a justificação de políticas declaradamente de exceção - como os Estados Unidos atuais que, sob a fachada de um governo supostamente civilizado e pró-diversidade, se regulam basicamente pelo patriotic act (ou mesmo a China, potência adjacente, que usa, em sua Lei Maior, a proteção da revolução socialista como senha para autorizar o Estado a fazer o que for necessário para manter a ordem).
abração
Gilmar tá solando agora que não poder ter decidido sobre Battisti dimunui a importância do STF, por esse raciocínio (assunto da casa de novo!) a faculdade de Direito está se diminuindo por não analisar a demissão de professores (poxa, é colega deles!)
ResponderExcluirAs coisas seriam diferentes na minha antiga faculdade (pois a Faculdade de Serviço Social não existe mais, foi engolida pela de Ciências Sociais). Na verdade quando minha faculdade relcamava dessas coisas, uma vez o padre até ironicamente perguntou se a gente tava querendo ser uma faculdade paralela à Puc!
Bem, pensando nessas coisas, tomara que para os futuros profissionais de Direito, pelo menos essas coisas da casa sirvam não como bons exemplos, mas exemplos de coisas a serem enfrentadas mundo afora.
Mas isso daí é pura retórica, Célião: o argumento da competência ou incompetência para julgar é uma saída frequente aos juristas - que são a versão romana do que eram os sofistas na antiga Grécia: o que está me jogo é quase sempre o mérito, mas muitas vezes para não adentrar na zona de risco, alega-se que tal órgão pode julgar aquilo ou não. No caso do Conselho da Faculdade, a alegação de incompetência foi uma forma de se esquivar de comprar briga com o Consad, no caso do STF, Gilmar quis ampliar essa competência para que ele pudesse julgar o mérito de algo que não poderia (e o próprio reconhecimento da incompetência foi uma boa saída para os ministros do STF não terem de adentrar o espinhoso mérito do caso Battisti). Ainda que pareçam antagônicos, tratam-se do mesmo argumento e, digo mais, a serviço do mesmo projeto ideológico.
ResponderExcluirabraços
que dramalhão dos italianos: chamaram de volta o embaixador!
ResponderExcluirMas mais engraçado é o que vi no Twitter:
"harpiaharpyia André Lima
by giandanton
O ministro Calderoli pede que a Itália boicote a copa de 14. Será que dá para a Dilma negar a extradição de um francês e um holandês também?"
Pois é, Celião, mas grande parte do fato da Itália estar levando isso adiante é por saber que existem quintas-coluna aqui no Brasil - na mídia, no Judiciário e no Parlamento; eis que esse dramalhão ridículo acaba evoluindo e se tornando algo perigoso. O fato é que hoje a Itália depende muito mais do Brasil do que o contrário e, mais até do que isso, a ascensão brasileira nos últimos anos acontece num momento onde os Estados ocidentais convergem no sentido de reconhecer que a Itália tornou-se um Estado problema: ainda que os Estados Unidos tenham sido importantes para a recente aproximação de Berlusconi e Kadafi (antes do ditador líbio voltar a ser do mal), é fato que o relacionamento entre os dois líderes acabou excedendo a mera conveniência do maquiavelismo geopolítico e, mais até do que isso, Wikileaks revelou a crescente preocupação de Washington com a aproximação de Berlusconi e os oligarcas russos. Esse episódio depõe mais sobre a decadência italiana do que qualquer outra coisa, mas não será dessa maneira que ele vai terminar catalisado pela nossa mídia.
ResponderExcluirabraços
Onde está esta citação - que obra - de Benjamin?
ResponderExcluirEssa é uma das famosas teses sobre o conceito de História de Walter Benjamin, Vera: eu as tenho na minha edição de Magia e Técnica, Arte e Política, uma coletânea de obras do maior dos frankfurtianos.
ResponderExcluir