Édipo e a Esfinge - Moreau |
Enquanto a política brasileira se rearranja no pós-Lula - e o país segue com a respiração suspensa a espera do choque da nova onda da crise econômica mundial -, é interessante ver como as forças políticas estão se realinhando e atuando. Dilma iniciou seu governo da mesma forma como fez campanha no Primeiro Turno das eleições presidenciais: em busca de uma distensão política, caminhando na inércia da figura pessoal de Lula enquanto buscava afirmar, no plano da administração, os projetos de reforma do Estado que assegurassem seus planos social-desenvolvimentistas. Enquanto isso, o PSDB se perdia em uma briga intestinal e, vejam só, FHC reapareceu da aposentadoria para dar algum norte ao partido.
O Brasil de hoje é um país social e politicamente muito mais complexo do que há dez anos atrás. E os partidos, incluso aí o PT, estão patinando na análise disso. Tanto que Dilma, mesmo depois do mau resultado do Primeiro Turno do ano passado, insistiu no erro, embora tenha parecido acordar nos últimos meses: uma vez que já se iniciou o bombardeio da mídia e se reiniciou o wishful thinking perverso da oposição frente aos efeitos da Crise Mundial sobre o nosso país, ela resolveu correr os riscos inerentes à política e apostar, enfim, no movimento político em vez da inércia. E Dilma é capaz de fazer as coisas acontecerem. Não nos esqueçamos que ela foi uma das artífices da superação das duas piores crises que o país passou nos últimos anos: o Apagão e a primeira rodada da Crise Econômica.
A recente entrevista de Dilma à última edição de CartaCapital mostra um pouco dessa guinada: clareza nos motivos que levaram à escolha de Amorim para a Defesa, precisão nas preocupações que lhe fizeram comprar um briga arriscada nos Transportes para salvar o PAC, assertividade na análise da Crise Mundial do ponto de vista geopolítico (embora não tanto do ponto de vista econômico, ou melhor, ela vai bem até onde o keynesianismo consegue ser bom). Em termos gerais, a Presidenta demonstrou uma precisão que lhe sobra como administradora, mas, não raro, lhe falta como política - mas que aqui, a exemplo do antológico debate do Segundo Turno na Bandeirantes, não lhe faltou, o que aponta um caminho claro de interlocução.
Apesar da queda em sua popularidade, Dilma ainda segue em alta e, é bom frisar, essas pequenas oscilações no meio do primeiro ano de mandato presidencial são comuns - como comprova a tabela de avaliação dos presidentes de Itamar para cá; Dilma inicia mais bem avaliada do que Lula e FHC (sobretudo em relação ao segundo mandato do último). É claro que ela tem a vantagem que nenhum outro presidente teve: ser eleita como continuidade de um mandato bem-sucedido em relação ao qual ainda é possível colher frutos diretos. Essa herança bendita certamente está ajudando a amortecer alguns erros graves de início, mas as últimas movimentações ministeriais apontam para uma recuperação disso no médio e longo prazo.
A crise que se põe imediatamente, e não é desprezível, é do relacionamento do Planalto com o Congresso. Isso também não chega a ser novidade, uma vez que esse deve ser o grande problema do sistema político brasileiro, um semi-presidencialismo sem premiê e com um sistema eleitoral para o Parlamento que é um convite ao fisiologismo. Mas é fato, também, que existe pouco tato na articulação política - que precisaria ter sido aprimorada, ainda mais dentro de uma proposta de tornar a máquina mais eficiente, o que, por si só, já causaria certos abalos junto à gigantesca (e heterogênea) base governista. O custo político desse mau relacionamento pode atrapalhar a recuperação do governo; isso não é das tarefas mais fáceis: conseguir um ponto de equilíbrio entre um bom relacionamento com a base sem arruinar projetos inteiros.
Enquanto se passa tudo isso, a oposição, eleitoralmente reduzida pelo último pleito, segue andando em círculos. Primeiro, o PSDB gastou boa parte do início de ano em brigas internas bastante pesadas, depois, a atuação de Aécio no Senado passou longe de ser o que se esperava de um líder oposicionista - como não poderia ser diferente pela falta de um projeto; a Convenção do partido, que serviria para pôr um fim nisso, apenas arrefeceu um pouco os ânimos. Mesmo meios de comunicação simpáticos ao partido não conseguiram fugir de palavras como "impasse" na cobertura do evento. Serra, de fato, é o grande entrave para a renovação do partido, mas, ao mesmo tempo, não pode ser posto para escanteio, haja vista a gravíssima falta de quadros do partido - ainda mais na capital paulista na qual o PT se mostra com belas chances de levar ano que vem, ainda mais se o PSDB não apresentar um nome de peso histórico.
Do ponto de vista programático, o PSDB não consegue escapar ao udenismo - que eleitoralmente funciona medianamente, mas está longe de ser suficiente para governar o país - e se afasta politicamente de onde deveria se aproximar: a saber, de sua própria origem social-democrata. Sim, como diz o novo programa do partido aprovado em 2007, a social-democracia venceu no Brasil - só faltou concluir que talvez por isso o partido perdeu, àquela altura, duas eleições presidenciais consecutivas para depois perder mais uma.
Além disso, chegamos ao ponto que realmente interessa, isto é, a questão central do Brasil contemporâneo: o que fazer diante do novo Brasil que está em construção? É o problema iminente para o qual nem petistas, tampouco tucanos têm uma resposta clara e unificada. Quem colocou isso no debate público foi FHC, em sua volta à cena, numa manobra formalmente boa porque tirava a atenção da mídia de cima do impasse do partido. O resultado, como já debatemos por aqui, não foi bom. O artigo de FHC, O Papel da Oposição, é um documento longo e pedante demais, no qual o ex-presidente confunde seu papel de político com o de sociólogo e o resultado é, novamente, mero wishful thinking: o PT perderá sua base porque ela está enriquecendo.
Lula, no alto do seu genialidade, pegou um flanco discursivo de FHC e tascou-lhe uma resposta na lata: enquanto o FHC dizia que o PSDB não deveria mais se importar com o povão, Lula respondeu que o povão é a razão de ser do Brasil. Uma resposta politicamente perfeita, FHC cometeu um deslize elitista - um ato falho que, a bem da verdade, nasce da confusão do discurso político com discurso sociológico e revela, ao mesmo tempo, sua identidade de classe - e viu o ponto gravitacional do debate ser alterado pelo seu adversário.
O ponto é que a saída retórica de Lula, sustentada por um raciocínio sociológico intuitivo muito mais sofisticado do que o de FHC, não é amplamente majoritário nas próprias fileiras dirigentes do PT. Não faltam correntes, com a do atual presidente do partido, Rui Falcão, que a partir dali morderam a isca e começaram a defender que o PT se torne, mais e mais, um partido de classe média. A própria Dilma, em sua (boa) fala de Primeiro de Maio, faz referência a um raciocínio parecido - e "transformar o Brasil em um país de classe média" é uma expressão que aparece por várias vezes na entrevista à CartaCapital.
O erro aqui é metodológico: a sociologia americana nos legou categorias de análise social que são, por sua vez, meramente ideológicas, tomando categorias de renda (as chamadas classes A, B, C, D e E) por classes sociais (que, dentro de qualquer raciocínio decente, tem a ver com a posição que o sujeito ocupa na cadeia produtiva). Essa estrutura pseudo-analítica tem a ver com a necessidade burguesa de subtrair da análise sociológica a identificação do fenômeno da forma como se estrutura o processo produtivo - ela nos ordena, portanto, que analisemos, as relações sociais que se iniciam a partir daí, isto é, do que já foi produzido (e não da produção), o que exclui a questão social (o velho clássico Capital x Trabalho) do mapa sociológico e, principalmente, leva a erros sérios se você estiver usando essa ferramenta como se ela fosse científica e não ideológica.
Sim, os trabalhadores brasileiros estão melhorando de vida enquanto trabalhadores, portanto, não há que se falar em nova classe social. É evidente que isso produz mudanças, mas não há realinhamento social (ainda), mas apenas financeiro (o que pode ser causa de realinhamento social, mas ainda não o é). Usando um exemplo concreto, um comerciante da periferia de São Paulo pode ter atingido, com sua padaria de médio porte, a renda do advogado que mora em um bairro de elite, e atua num ONG de direitos humanos, mas isso não quer dizer, em momento algum, que eles pensem de forma parecida - ou que votem no mesmo (e caso votem, certamente não será por motivos sequer parecidos).
Nesse sentido, ainda que seja tenha um quê de absurda, a propaganda televisiva veiculada ontem pelo DEM, estrelada por um militante negro e favelado seu, é mais sensato do que a leitura de FHC - com a qual, aliás, ela polemiza -, pois nela, o DEM tenta se mostrar palatável para o "povão" e não esquecê-lo. É claro que em se tratando do DEM, muito longe de ser um partido liberal razoável, a peça destina-se ao ridículo: a questão não é provar que existem eleitores e militantes negros e favelados seus, mas sim mostrar onde estão seus dirigentes negros e favelados. Como a intenção da inserção não é, claro, mudar o viés ideológico do partido, mas sim fazê-lo ser eleitoralmente viável dentro de sua proposta ideológica, isso faz sentido. Só que não será uma linha de propaganda funcional, por si só, que vai reverter a espiral de queda que vive o partido: o DEM, historicamente bem votado no nordeste e entre um eleitorado pobre e miserável, perdeu eleitores diretamente para o PT na medida em que o Governo Lula atuou diretamente no reconstrução social de suas bases eleitorais.
Há, portanto, um plano eleitoral - sujeito ao discurso da propaganda e à ideologia - e outro plano propriamente político - que está sujeito sinais, a bem da verdade, inconscientes frente à realidade política, social e econômica - algo que só é possível frente a erosão, e a atomização, da estrutura do grupo que o Capitalismo produz. É fundamental ter consciência da cisão entre esses dois planos e, ainda, saber que mais importante do que saber operar neles - e entre eles -, é dar sentido prático à ideologia como forma de leva-la ao próprio exaurimento. O PT, por ora, ainda não foi devorado pela esfinge que erigiu, mas o dia da verdade quanto a isso está próximo de chegar.
P.S.: Eis aqui a íntegra da entrevista de Dilma à CartaCapital.
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