terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Polícia Militar, o Motim e a Bahia

Exército já está nas ruas de Salvador (Lunae Parracho - Reuters)

A dita greve da Polícia Militar baiana tem ocupado uma posição de destaque na mídia tradicional. Como não poderia ser diferente, seja pela posição político-partidária dos jornalões ou mesmo pelo peso, no imaginário coletivo, da superstição do policialismo como garantia universal da segurança pública - e não nos interessa especular porque isso acontece, talvez apontar dados e desmontar esse argumento como fizemos há pouco, mas entender o porquê das pessoas desejarem que a polícia seja esse elemento essa cura para todos os males.

Sobre o caso baiano e suas implicações, Lucas Jerzy Portela, em seu o Último Baile dos Guermantes, foi bastante feliz em suas considerações - tanto sobre o caráter da dita greve, quanto no que toca à mistificação toda em torno da polícia e da segurança pública:

"Mais aquém, isso nos revela outras questões. Primeiro que se o efeito da ausência de policiamento é imaginário (mesmo havendo polícia, se crê que não há), o efeito do policiamento também o é: só não há saques e arrastões no dia a dia porque as pessoas acreditam que não podem haver, acreditam estarem protegidas. É uma mistificação, como a existência de um Deus transcendente (os imanentes me interessam). Segundo é o absurdo de haver uma polícia com poder militar sobre população civil durante democracia – um estado de exceção como miasma dentro do estado de direito. Alguém vai levantar o complexo de vira-lata: 'polícia única com baixo armamento dá certo na Inglaterra, que é país rico e equânime' – por um acaso México, Índia, África do Sul, se tornaram também países mais ricos e mais equânimes que o nosso? Desde quando ter mais violência traz menos violência, e mais discrepância de força internamente a relação sociedade-Estado gera mais distribuição de renda e riqueza?"
Se no caso dos bombeiros cariocas - que estão juridicamente equiparados a [policiais] militares, embora não o sejam realmente - havia, na prática, uma greve - bem justa, diga-se -, no caso dos policiais militares - que são realmente militares, embora não devesse haver polícia militar com poder sobre civis numa democracia - há, de fato, um motim. Uma chantagem, com pouca adesão da categoria, mas que se volta contra o governo e contra a sociedade juntos, causando efeitos reais em decorrência do poder imaginário que possuem (de poder estar em todos os lugares ao mesmo tempo, impedindo crimes).

Sim, Lucas tem razão ao colocar que aqui a polícia se põe contra a sociedade do mesmo modo que se põe contra ela, com o apoio do governo, em outras situações recentes - o que suscita algo terrível, que é a autonomia ideológica e prática da polícia (ou de parte dela) no plano político e sua disposição a agir dessa e daquela maneira, independentemente do plano de governo (podendo estar contra ou a favor daquele, independentemente do lado que ele se ponha em relação à sociedade). 

Porque no caso baiano nos deparamos com um fato: os policiais receberam reajustes nos últimos anos que os fazem ganhar relativamente bem, o que talvez explique a baixa adesão a essa greve em relação, por exemplo, ao levante massivo contra ACM - na figura de seu protegido, o ex-governador, César Borges -, apesar da relação histórica e ideologicamente próxima do ex-líder baiano com aquela corporação.

O que se esconde atrás dessa cortina de fumaça mistificadora, o desejo de que a polícia seja realmente uma entidade transcendente, presente em todos os lugares, sabedora de tudo e capaz de tudo, é o medo, a paixão triste à qual somos todos submetidos - em virtude disso, sentimos como em todos os lugares e momentos, a pior possibilidade necessariamente (ou tendencialmente) fosse acontecer em termos de violência direta contra nós mesmo. O quanto a polícia realmente evita crimes de forma direta? Tanto ou menos quanto ela mesma, abusando do seu poder, os comete.

Não que a abolição imediata e direta da polícia, sem criar nada no lugar das relações que sustentam sua existência, seja um caminho - no máximo, algo novo (e pior) faria sua função. É claro que os determinantes reais da violência não guardam relação com a simples existência da polícia, entretanto, no curto e médio prazo, o impacto psicológico de uma crise na polícia (ou de abolição) produziria uma crise social (e econômica) talvez insustentável. 

Mas é possível sim desconstruir as relações que estruturam essa indústria, desconectando parte dos seus dispositivos, quem sabe fazendo uma ampla reforma das polícias e tornando-as únicas, civis e cidadãs, enquanto implementam-se, no campo da produção biopolítica, medidas que desconstruam a política do medo (a tirania, ela mesma). Uma boa polícia, assim como um bom exército, é aquele que tem em vista trabalhar para ser desnecessário tão logo - ou quem sabe essa seja a diferença entre o guerreiro e o mercenário.

Em outras palavras, a polícia é um instrumento do Estado, em seu significado, embora não de um governo - sobretudo daqueles que de alguma forma busquem autonomizar a sociedade, em algum grau, em sua relação (haja vista o Golpe de 64).  Nesse sentido, a atuação do PSOL - e em especial do deputado Jean Wyllys, cuja atuação em defesa dos direitos civis é excelente, diga-se - toma um caráter temerário, pois ela alimenta uma ebulição contra a Ordem que não visa afronta-la, mas, no fim das contas, reforma-la no sentido de endurecê-la - tudo isso dentro de um caráter mistificador de qualquer movimento rebelde.

O policialismo - seja na USP, na Cracolândia, no Pinheirinho, no último show de Rita Lee ou nesse motim baiano - constitui-se em um verdadeiro perigo, pois é instrumento poderoso para o "reenquadramento" que os conservadores têm em mente quando se deparam com um Brasil ebulição, onde o desejo dos pobres foi autorizado - por políticas social-desenvolvimentistas -, mas, ao mesmo tempo, não se sabe o que fazer com ele - como é próprio do desenvolvimentismo e suas variadas formas. No caso baiano, Jaques Wagner tem razão e o apoio do governo federal é tão fundamental lá - por meio do envio de tropas federais - quanto é grave sua ausência no uso inadvertido da polícia em São Paulo. 



18 comentários:

  1. Segurança Pública em Crise

    A onda de greves desencadeada em sequencia em vários estados da federação pelas policias militares,não só serviu para sombrear os últimos episódios ocorridos no estado de São Paulo,entre eles a invasão da Usp,a limpeza da Cracolândia,e a controvertida desocupação do Pinheirinho,que obteve uma grande repercussão no âmbito nacional e internacional,muito embora a grande imprensa com raríssimas exceções se absteve de entrar com profundidade na discussão dos fatos nas implicações sociais e nos trágicos resultados.... http://pregopontocom.blogspot.com/2012/02/seguranca-publica-em-crise.html

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    1. Eu diria que a segurança pública é a [própria] crise, meu caro.

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  2. Se os amotinados da PM apostarem muito na importância de sua ausência, vão inverter e resvalar na sua ausência de importância.

    Carnaval com esse aquartelamento por um lado não significa sem policiais, já que 70% da PM está atuando normalmente; por outro lado, haverá menos gente pagando abadás e camarotes, e menos pessoas mesmo na pipoca.

    O que quer dizer que o Carnaval pode ficar mais seguro sob a "greve".

    E pior: economicamente mais sustentável, uma vez que sabemos com as pesquisas SEI-SECULT (SEI é o IPEA estadual) que 80% da grana circula no miudo e fora da corda, e não nos abadás e camarotes (que além de tudo oneram o estado uma vez que causam violência).

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    1. Sim, Lucas, todo ente que produz efeitos reais pela sua representação imaginária vê seu poder se esvair quando toma, inadvertidamente, sua realidade de imagem como uma imaginação real. As pessoas podem acabar mesmo se dando conta ao tocarem a miragem e verem que não há oásis algum, só aridez e sede...

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  3. apesar da inegável crise da segurança pública com o contraste dos problemas da polícia da Bahia e de São Paulo, convêm não subestimar o efeito gravíssimo que isso tem nas vidas das pessoas.

    Primeiro porque somente num futuro muito distante pode abstrair-se da atual forma de polícia militar existente no Brasil. A forma de contenção da criminalidade que ela faz se dá em grande parte na capacidade que ela tem de estar além da lei, e de negociar com os criminosos. No fundo, a corrupção da polícia é responsável pelo controle do crime, por isso o Rio de Janeiro viveu tanto tempo com uma polícia sabidamente corrupta, cuja solução foi a criação das milícias que só reforçam o mesmo sistema.

    O caos causado pelos grevistas não se deve à sua ausência, mas ao seu poder de influência sobre o crime organizado. No fundo, a polícia consegue negociar com o crime organizado, mas não com o governo.

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    1. tecnocaos, eu discordo de sua premissa. No duro, como exposto no post anterior, não existe uma relação profunda entre nível de violência e atuação da polícia no Brasil: os níveis de violência homicida, p.ex., crescem como efeito do aumento da exploração do Trabalho (desemprego, queda da renda salarial) e algumas variáveis implícitas nesse processo (confinamento de uma massa trabalhadora empobrecida em pequenos espaços urbanos) e se reduzem quando esses números se invertem positivamente. O crescimento da violência no nosso país cresce junto com a decadência econômica dos anos 80-90 e se estabiliza nos anos 00, com particular recuo nos anos Lula.

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    2. esta é uma leitura enviesada, não? não tô com os dados, mas a violência na bahia, p.ex., cresceu vertiginosamente nos últimos 15 anos. a questão me parece mais complicada (e os processos mais longos do que simplesmente a evolução econômica imediata).

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    3. Não é. No post Mapa da Violência Brasileira e a Doutrina da Segurança Pública, eu comparei dois dados básicos: a evolução da distribuição funcional da renda com o gráfico da taxa de homicídio. Ambos apresentam uma relação bem grande e não há como pensar a violência, no Brasil, em termos puramente locais, uma vez que isso que chamamos de "História Brasileira" é a própria narrativa dos encontros entre os diversos brasileiros e brasis - não só o constante fluxo migratório, mas também o intercâmbio permanente. Não existe como pensar na violência baiana unicamente. As variáveis socioeconômicas - não imediatas, mas seu desenvolvimento ao longo dos anos - nos dizem mais do que análises locais de polícia.

      abraços

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    4. Veja bem, Hugo. Claro que não estou negando a importância do fator "crescimento/distribuição da renda" na questão da violência, só acho de que você põe uma ênfase neste ponto que desconsidera fatores tão importantes quanto. P.ex., na questão do Nordeste, citada em seu post- qual a razão de a violência ter caído o Recife e ter explodido (não é simplesmente aumentado, é explodido mesmo) em Salvador (o exemplo que dei no outro post foi meramente por eu ser baiano e ter mais conhecimento dos dados daqui, de cor)? O mesmo vale para outras cidades (S. Luís, p.ex.) Não é uma mera análise policial perceber que a dinâmica do tráfico de drogas foi modificada tanto no Sudeste quanto no Nordeste (há quem diga que o corredor de exportação brasileiro foi deslocado de uma região a outra). Além do mais, podemos contar outros fatores, como a migração dentro do próprio Estado (a RMS, mesmo não crescendo tanto, ainda representa mais de um terço da riqueza baiana). E sobre na questão da migração interestadual(citada em seu outro post, você tem dados que correlacionem redução da migração e o crescimento populacional no Sudeste (e o mesmo valeria para outras regiões). Sem isso, acho que fica uma circunstância muito vaga.

      Mas a discussão é boa, dá pano para manga. Apesar de discordar completamente de suas premissas (estou à sua direita, e não é direita policialesca), é sempre bom um campo para debater certas questões.

      Sds,

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    5. Em tempo: Há uns erros de preposição e um ponto de interrogação esquecida aí, mas dá para entender, espero. Problemas de quem posta sem revisar.

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    6. Hugo, não entrarei nas questões estatísticas, porque eu concordo com seu argumento: desde a relação violência e condições sociais, até a falência do modelo de polícia militar (que tem raízes, acredito, no federalismo da República Velha, pois ao menos no Rio Grande do Sul, a Brigada Militar foi criada pra ser um exército e sufocar revoltas locais).

      O que eu sustendo é que não se pode abstrair o que ocorreu na Bahia: existe uma economia da violência vinculada a este modelo militar, e a mudança tem que ser gradual porque isto lida com a vida das pessoas. Quando a polícia quebra as regras do jogo, seja oprimindo demais a atividade criminosa (como no Rio) ou relaxando na opressão e convidando o crime (como na Bahia) o sistema entra em colapso e pessoas inocentes morrem (mais do que o habitual estatístico). Então não podemos ignorar a nossa polícia e a nossa criminalidade real enquanto construímos uma polícia e uma criminalidade melhor. No fundo, concordo com você, apenas não acho que se deve minimizar o caos que ocorreu só porque o modelo militar é falido e vicioso, o Estado deve se responsabilizar, e não fingir que nada ocorreu. Vc não afirmou isso, mas digamos que faltou pouco: não acho que Jacques Vagner está errado, mas digamos que ele falhou como negociador, e como administrador responsável pela polícia.

      A própria demanda salarial me parece justíssima, indiferentemente da média-salarial da Bahia (em termos salariais, ninguém se compara com quem tá embaixo, mas só com quem tá em cima, e a realidade é desigualdade ainda muito grande). Isto, claro, não anula os possíveis meios criminosos que foram usados para fazer greve e causar terror.

      A era Lula cresceu o bolo, mas agora começa outro problema: como dividir. As greves (e revoluções) ocorrem em períodos de crescimento econômico, porque é quando a desigualdade torce o rabo.

      Ah, e parabéns pelo Blog, é ótimo.

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    7. Rafael B e Tecnocaos,

      Mas é aí que está: as estatísticas apontam que o fator principal é socioeconômico ou melhor, diz respeito à forma como as pessoas percebem as variações socioeconômicas. A transgressão é efeito e não causa - no qual a existência da polícia e sua importância simbólica são um fator secundário; se a polícia é assim ou assado, isso não fará diferença no aumento ou diminuição da violência, mas se ela for abruptamente abolida - ou se amotinar - é provável que a violência cresça - porque há um espaço de tempo entre a PM tentando demonstrar a importância de sua ausência e ela tendo a ausência de sua importância revelada - como diria o Lucas aí em cima. Um indicativo de que minha hipótese pode ser verdadeira é enorme coincidência dos gráficos, uma vez cruzados.

      A minha crítica, inclusive, não diz respeito a suposta ilegitimidade da greve porque ela se nortearia por motivos meramente salariais, mas sim por sua natureza corporativista e seus métodos empregados - perfeitamente condizentes com quem se acha no direito de espancar professores, estudantes e trabalhadores - sem falar no oportunismo político-eleitoral. Greves, aliás, surgem em momento de empoderamento da renda dos trabalhadores - e a desigualdade social caiu sim no período -, quando das amarras das regras do capital se afrouxam, mas é preciso diferenciar o que é um trabalhador e o que é um militar, senão a análise fica comprometida e sem rigor - por isso eu falo em motim.

      abraços e apareçam sempre por aqui

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  4. Olá,

    Tenho acompanhado o seu blog e lido algumas de suas análises, sempre bem firmadas criticamente e busca sair do lugar comum. Minha identificação se deve também ao fato de participar de um site uma proposta de análise e crítica similar ao Descurvo, Outras Palavras, e outro mais, qual seja: Carta Potiguar.

    Escrevi um artigo de opinião no qual analiso como a partir dos últimos eventos nacionais de destaque envolvendo a PM - caso USP, Cracolândia, Pinheirinho e Greve da PM na Bahia - permite-nos identificar alguns traços de um padrão de resposta do Estado e do comportamento policial diante de problemas sociais e conflitos políticos. Enfim, deixo aqui o link do meu texto:

    http://bit.ly/wk6PiN

    E o convite a você, e aos leitores do blog, evidentemente, pra conhecer a Carta Potiguar (http://www.cartapotiguar.com.br/carta_novo/) e, quem sabe, trocarmos ideias e parcerias entre os dois projetos. Abraços,

    Alyson Freire
    Colunista e Editor da Carta Potiguar

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    1. Bacana a iniciativa, Alyson, vou dar uma passada por lá!

      abraços

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  5. Olá, Hugo

    Motivado por amigos e pela excelente qualidade da blogosfera, decidi criar um blog. Depois dê uma passada: http://aameialuz.blogspot.com/

    Abraços,
    Enzo.

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  6. Grande Hugo. Mais conteúdo pra alimentar a inquietante questão da legitimidade do Estado.

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