sábado, 24 de março de 2012

Crise Mundial: Culpa e a Fé na Terra do Capital

Cristo Carregando a Cruz -- Bosch
Frequentemente, usamos um vocabulário tão obviamente teológico que não nos damos conta disso, seja na política ou, sobretudo, no Direito e na construção da Economia - a última quase que ela mesma um puro teologismo. Ao observarmos outras línguas, próximas ou nem tanto, nos damos conta desse processo com mais facilidade.


É só pensar na coincidência absoluta entre culpa e dívida na língua germânica - convergidas no vocábulo schuld - ou mesmo que, em grego, como nos relata Giorgio Agamben em recente artigo para o La Repubblica, até hoje, pistis é tanto fé quanto crédito, em um sentido financeiro usual mesmo - como em "banco de crédito".


Em ambos os casos, não é preciso ir muito longe para ver as relações: não é complexo, embora seja trabalhoso, relacionar os conceitos de culpa e de dívida. Crédito e fé, por sua vez, possuem uma relação um tanto mais clara, uma vez que o étimo que forma o primeiro vocábulo é o mesmo de crença ou credo -mas não deixa de ser curioso notar a coincidência absoluta na língua helênica que faz "banco de crédito" ser, também, "banco de fé".


Se somos uma sociedade concretamente guiada por uma dívida (culpa) infinita, pelas trocas assimétricas das quais o próprio Capitalismo se sustenta - de uma forma mais clara do que o Estado também faz por meio das leis -, é fácil considerar a importância de uma esquizoanálise, na medida em que se a culpa passa a ser um processo que se insere na área de coextensividade entre os ditos campos psicológico e social, não na dobra, mas quem sabe como elemento dobrante, duplicante.


O mesmo podemos dizer dos banqueiros, que no fim das contas, como bem aponta Agamben, são os sacerdotes modernos, pois são eles que controlam a fé (o fluxos, refluxos e influxos de crédito), o que torna o Capitalismo uma religião como dizia Benjamin - ou melhor, que ele também se organiza teologicamente. 


Erra Agamben, no entanto, ao dizer que "a feroz religião do dinheiro devora o futuro" ou que pela governança do crédito se governa o futuro dos homens: o futuro, por favor, é ele próprio governança, o poder financeiro - enquanto tentáculo do capital - não "sequestra por completo, a fé e o futuro, o tempo e a esperança", mas sim faz uso de todos eles para realizar sua operação como a religião o propriamente dita o fez.


Ainda que intua isso, o menor dos problemas é o fato dos banqueiros exercerem esse sacerdócio, mas sim o dele existir. Pouco importa se quem o ocupará são os padres, yuppies ou  dirigentes comunistas, tampouco adianta dizer "fora banqueiros!", sendo que para longe de Keynes, os banqueiros não são parasitas, mas sim uma engrenagem do sistema - sua atividade, muito pouco nobre, decorre da organização e das reorganizações da dita "economia real" [risos]. 


Spinoza, que Agamben leu e entendeu de uma forma um tanto confusa, já nos trazia uma boa explicação para isso no seu Pensamentos Metafísicos, ao estabelecer um critério de distinção entre o concreto e o imaginário: aquilo que é adquirido pela dívida é concreto, mas a própria dívida é ela mesma imaginária, ficcional - eis aí a chave para entender a dominação no ocidente, a tentativa de fazer passar o imaginário por concreto e eliminar toda imaginação (para que não se reconheça ela mesma).


Se a insolvência é concreta e se dá por inércia, o pagamento da dívida é imaginário e exige uma modulação de comportamento, uma intervenção no desejo alheio normalmente operada pela norma legal. Não é, por certo, a mera força que garante o adimplemento das dívidas existentes pela face da terra, mas sim a sujeição voluntária: e como poderia haver sujeição voluntária sem culpa? Sem autopunição e autopenitência?

O bom pagador - ou o bom cumpridor de leis, o cidadão de bem - é, antes de mais nada, um adorador de flagelos e suplícios, que se sujeita a todas as agruras da vida para arcar com a dívida infinita: como o anzol com carne mais longo do que a corrente que ata cães a um trenó, habilmente manuseado pelo cocheiro, sua existência é apenas um ardil para produzir movimento como o mestre deseja. 


O problema é, ao contrário do que grande parte do movimento socialista sempre denunciou, tanto menos o opressor e do que o paranoico masoquista, que na busca pelo seu prazer perverso a todos arrasta para um mar de sofrimentos - como um grande abraço de afogado. Criar uma práxis que subverta isso é, antes de mais nada, constituir uma educação para o prazer, para a satisfação e para a vida.





  

3 comentários:

  1. posso ser chato?...
    ninguém me impediu então serei.
    muito legal seu insight das formas como a economia se alimenta etimologicamente, e talvez, extrai alguns sentidos do cristianismo. se não me engano o próprio Benjamin - que vc citou - uma vez disse que o capitalismo parasitva o cristianismo; ou algo assim. Louis Dumont tem um livro em que ele mostra com a disciplina Econômia se diferênciou dum amontoado de conhecimnetos antes tidos como uma mesma coisa, o livro é HOMO AEQUALIS. Porém, o que me incomodou mais profundamente foi sua tomada da idéia de culpa, assim, solitária, como um sentimento/emoção que faz sentido por si; o que a meu vê, não faz. eu poria na equação o sentimento de absolvição. esse par Culpa-Absolvição, ambos bastante concretos - ao menos para quem os vive -, me parecem ser um motor mais eficiente, não pela adoração do flagelo em si, mas pela redenção que se alcançaria atravéz dele. Não é masoquismo, é a promessa de uma vida de prazeres após o sofrimento. daí que uma educação para o prazer não bastaria, pois essa, a cristã, ela é também baseada no prazer (futuro).
    de novo, desculpa pela chatice.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Anônimo, não é de "alimentação etimológica" que eu falo, mas de como o uso de uma linguagem comum entre a teologia e o exercício do poder suscita, por assinatura [em um sentido foucaultiano], a persistência de sua presença como motor.

      E a economia está longe dessa diferenciação, embora alguns de seus teóricos gostem de afirmar isso - como os teóricos do direito, p.ex. -, basta ler um belo trabalho do próprio Agamben, O Reino e a Glória - possivelmente seu melhor livro - no qual ele disserta sobre o conceito de economia desde seus primórdios, em um tratado (pseudo?)aristotélico, até a Idade Média.

      A culpa entra como causa de uma cultura de autopunição, mas é uma construção muito mais complexa do que isso, que expõe, antes de mais nada, pela fratura exposta na qual se constitui na relação entre a esfera dita psicológica e o campo social.

      A culpa é uma dobra inserida no inconsciente que leva a uma perversão do desejo cujo efeito é, de forma sistemática, a busca por um perdão e por uma salvação permanente em relação a todos e a todas as coisas - um "sentimento de absolvição" é a própria expressão de que houve uma condenação ou acusação apriorística, de cunho transcendental, em relação à qual devemos correr atrás.

      É puro masoquismo na medida em que o prazer só é produzido no aqui-agora, pois o amanhã nunca chega: o culpado sente um gozo perverso com essa dor causada por um processo incessante, que adia o prazer - ou melhor, é processo fundado na fuga dos prazeres a todo momento - para um momento de êxtase completamente místico que é reconfigurado idealisticamente a todo momento.

      Nesse sentido, é quimérico dizer que "ela é também baseada no prazer (futuro).", uma vez que se esse prazer é colocado no futuro, logo, ele não é prazer, uma vez que não se sente numa hipótese, mas apenas no concreto - tanto que o catolicismo, até hoje, se funda na busca por um asceticismo inclemente, basta ver como ele busca, de uma forma politicamente insustentável, suprimir o desejo.

      Excluir
  2. Hugo, excelentes ideias! Meu comentário crítico deve ser tomado como um elogio de quem leu e se interessou pelo texto.

    Concordo com você que a relação entre culpa e dívida é mais do que etimológica. Só acho que não se deve simplificar o processo a ponto de soar simples a emancipação do ser humano, como se dependesse apenas da vontade individual para libertar-se da culpa ou da dívida; existem contextos históricos que engendram esta situação. A satisfação dos prazeres e da vida por si só não é a cura da culpa, assim como gastar não é a única solução para o endividado.

    O que quero dizer com isso? A ideia do catolicismo medieval como um sem fim de culpa e repressão dos desejos é um pouco exagerada. Na verdade, oscilava-se muito em opostos de culpa, orgulho, penitência, prazer, bebedeira, violência, sexo, ódio, piedade, obediência, rebeldia etc. A religião e a culpa agiam como uma forma de administrar todos estes sentimentos. O protestantismo representou um recrusdescimento no controle da vida interior do indivíduo, de onde também decorreu uma maior relação entre culpa e dívida e de um maior controle do futuro e do dinheiro, se pensarmos sob a ótica da obra clássica de Max Weber.

    Até aí concordo com você, minha crítica é que "uma educação para o prazer e satisfação da vida" por si só não é uma saída para esta situação. Acredito que o capitalismo hoje seja menos protestante e mais medieval: gasta-se muito na boa maré, e quando a crise acontece acaba estourando uma bolha de culpa, desespero e incapacidade da sociedade em reagir e partilhar a culpa (dívida). Não me parece que a sociedade brasileira ou estadunidense tenha seu problema na sua incapacidade de gastar e aproveitar a vida, mas sim no desequilibrio na administração do presente e do futuro através da relação crédito/dívida.

    Acredito, então, que as pessoas gastam muito bem seu dinheiro. O problema é que não existe uma educação para gerir o tempo e as lutas políticas em torno dele. O indício que aponto disso é que na nossa educação básica é inexistente a Economia e o Direito. Como exigir que os cidadãos saibam administrar seu crédito/débito (isto é, administrar seu tempo de trabalho e de prazer)? Como exigir que os cidadãos conheçam seus direitos sociais, políticos e jurídicos? É como se os bancos e sacerdotes vivessem de explorar a incapacidade das pessoas de administrar seu tempo e seus sentimentos. A luta pela emancipação humana é, deste ponto de vista, constante e interminável.

    As filosofias antigas (peripatética, epicurista, hedonista, estoicista) tinham na felicidade o seu principal objetivo. E todas elas concordavam que o prazer e a felicidade só existiam na moderação, pois o prazer incontrolável é vício. Acredito que a mesma analogia pode ser tomada para o controle da dívida (culpa), é necessário ensinar a retomar o controle do passado e do futuro, pois o excesso de um ou de outro é sempre nocivo.

    Abraço, e parabéns pelo texto.

    ResponderExcluir