terça-feira, 20 de março de 2012

Sobre o Direito ao Corpo

Blond Girl On a Bed (1987) -- Lucien Freud
No presente momento, uma série de debates fundamentais - como aquele sobre a descriminalização do uso das drogas, sobre a permissão do aborto ou sobre a eutanásia  - gira em torno do que se convém chamar de direito ao corpo. A grande questão, que se desdobra em tantas e se espraia na praça pública é o seguinte: sob o ponto de vista jurídico, até que ponto é possível gozar de autonomia sobre o próprio corpo e até que ponto se pode intervir no corpo de outrem pelo bem comum? Antes de mais nada, façamos um breve digressão.

Os positivistas e demais ideólogos da modernidade, por evidentes razões estratégicas, dirão que um direito existe quando ele é reconhecido no ordenamento jurídico, grafado na forma de norma constitucional ou legal. A eles interessa dizer isso porque o discurso jurídico precisa parecer monopólio do Estado,  isto é, não pode haver espaço para polifonia alguma - e, por tabela, toda mudança legal que ceda anéis para os desvalidos e minorias precisa parecer uma outorga, um ato de bondade e superioridade do Poder Soberano.

Com efeito, diremos aqui que um direito existe quando ele é reivindicado, é válido quando o dever - correlato, simultâneo e imediato - que disso decorre consegue identificar um objeto para imputar-lhe uma obrigação  e, por fim, é efetivo quando produz uma prática relacional contínua de coexistência. Não há, nunca houve e, possivelmente, jamais haverá outorga: o soberano não é piedoso, ele é apenas e tão somente prudente. Os direitos são forjados na luta e é isso que a História, e a análise de como se constrói um discurso jurídico, nos ensinam.

O discurso jurídico cinde a realidade que enuncia em duas, criando relações que pouco tem a ver com liberação, pois cada direito conquistado remete a um dever para algo ou alguém, isto é, a uma relação de dívida na qual - temporariamente ou não, infinitamente ou não, flexivelmente ou não - haverá sujeição. Não à toa, o cristianismo e o marxismo - os dois projetos mais profundos de renovação do Homem já concebidos - se viram diante do dilema de como abolir o Direito, embora eles mesmos tenham terminado se quedando à linguagem jurídica.

Mas é usando a linguagem jurídica que clamam as multidões desde muito tempo, como nos prova a tragédia de Antígona, inadvertidamente usada para provar um direito natural - como se pudesse haver  um direito antinatural -, os gritos da plebe romana ou os prantos dos desalojados do Pinheirinho. De lá para cá, pouco mudou, revoluções vieram e se foram, a política continuou não conseguindo se realizar por si própria: e talvez essa disfuncionalidade explique como o Direito resistiu e se desenvolveu até hoje.

Voltemos ao direito ao corpo: o presente debate decorre de uma concepção de que o Estado possui prerrogativas assentadas em uma pretenso domínio de uma dita realidade objetiva para, assim, regular como os sujeitos dispõem sobre seus próprios corpos. Mas ao afirmar esse direito, imputa-se um dever difuso: não apenas em relação ao próprio Estado, mas também para a dita sociedade. Como todo direito, aquele de dispor sobre o próprio corpo não deixa, ironicamente, de implicar  na disposição sobre outros corpos - para que esses não disponham de si de modo a, por meio disso,  não disporem de outrem.

Uma aplicação unilateral desse direito reivindicado repete o que havia no Velho Regime: o senhor  é intocável, mas pode tocar em outrem que, por tabela, assume a posição eterna de escravo. Supor uma via dupla de tanto - de forma constitucional e social, portanto - termina sempre próximo ao centro de gravidade da cidadania hegeliana: o cidadão como senhor dos seus direitos e escravo de seus deveres, logo, como dono de seu corpo e, contraditoriamente, sujeito a ter nele inscrito as ordens do sistema, o que remete a uma mediação por uma ordem superior que lhe transcende e, ao mesmo tempo, na  qual ele se realiza, o Estado.

No nosso sistema legal não deixa de existir direito à dispor sobre o próprio corpo, porém, como isso é exercido se dá dentro de uma escala de mediação jurídico-estatal que determina o modo como se dará essa disposição - dentro dessa via de mão dupla constitucional. A presente reivindicação ateste certa insatisfação quanto a isso, suscitando, por meio de discurso jurídico que volta-se à transformação da lei, que os termos nos quais se dá esse exercício precisam ser reajustados.

Mas ainda que a luta por mudanças legais na direção de uma coexistência para melhor seja perfeitamente válida, a questão é que dentro da perspectiva do Estado não há liberdade porque aquilo que é inerente ao Direito, sobretudo quando traduzido em um sistema legal e pretensamente monista, hierarquizante e centralizador, implica sempre em uma teia de servidões interdependentes. 

Por mais que seja importante e, até mesmo, premente lutar por mudanças legais nesses termos, ao fazê-lo dentro de uma perspectiva na qual o Estado é premissa do raciocínio é atestar a constatação de é permitido fazer apenas aquilo que o poder soberano não objeta - pois o mandamento de inspiração iluminista de que é permitido fazer tudo que não é vedado tem pés de barro, já que a matriz do Estado é precisamente sua capacidade de dividir, segregar, deixar de fora. 

Positivistas mais sofisticados como Bobbio chegaram a admitir isso na medida em que, dentro de sua teoria da supremacia constitucional, afirmava que se é próprio da lei civil permitir  fazer tudo que ela  não proíba, por outro lado, a norma da Constituição [do Estado] contém normas cujo cumprimento é estritamente obrigatório  - isto é, tudo que está nelas é dever e nada que esteja nela há de se cumprido, aprioristicamente o que serve como explicação lógica da hierarquia piramidal delas sobre as primeiras: a matriz do sistema é a sua capacidade axiomática, o que determina o que fica de fora ou simplesmente é incluído como excluído.

Ainda que se possa argumentar que é possível, e talvez necessário para escapar à captura estatal, construir uma jurisprudência - no sentido romano - fundada no pluralismo jurídico e alheia ao Estado - o que é sim possível pela natureza da linguagem jurídica -, ainda assim, a capacidade de realizar a potência do próprio corpo ainda estará condicionada à dívida - e ao desejo de transgressão bem como os recalques causados pela escala de vedações e obrigações mútuas, isto é, na negação da integridade do corpo.

Como dispor do próprio corpo se ele está alienado de si, partido e duplicado pelas relações jurídicas? E por que pretender falar em disposição do próprio corpo traduzido na forma de linguagem jurídica? O fato é que a linguagem jurídica particiona o corpo a começar pelo deslocamento do desejo, em outras palavras, trazer o debate da livre disposição ao próprio corpo - isto é, da autonomia mais elementar que pode existir - para o campo do direito é quimérico: o direito de livre disposição do próprio corpo esbarra no fato de que onde há linguagem jurídica - pior ainda, um Estado que produz um intrincado sistema legal -. a indisponibilidade dos corpos é condição necessária. 


O constitucionalismo moderno - ou pós - esbarrará sempre no fato de que a ordem que ele instaurou no passado - e que sustenta hoje em dia - é e sempre será uma forma de diluição da polaridade senhor-escravo em uma universalização da segunda condição com a passagem do mando para um sistema sem nome - e o capitalismo contemporâneo não poderia ser outra coisa senão a forma concreta mais semelhante ao deus sem nome dos antigos hebreus.

Uma autonomia dos corpos demanda irmos para além do Estado e, também, de qualquer forma de organização que faça uso da forma jurídica como linguagem: é preciso caminhar para o campo da afirmação pura - algo que Paulo sintetizou de um modo particularmente feliz no "amai a todos como a si próprio", pois subverte a linguagem da lei eliminando seu pólo prescritivo -, as relações ancilares inerentes ao Direito serão sempre inimigas da realização plena da potência dos homens.










Um comentário:

  1. fora que sabemos com Sade que direito é direito ao gozo - isto é: o direito de sofrer suplícios. E fora que "nem tudo que posso me convem", mesmo que "nem tudo que me convem eu possa".

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