No início, havia bárbaros decididamente livres, mas se os gregos colonizaram seus dominadores romanos- o que fez tudo aquilo mais parecer um ardil para enfim realizar, por meio de Roma, o projeto inacabado de Alexandre Magno -, os germânicos se dedicaram, dali em diante, em aprender a declinar como nem mesmo todos os romanos faziam - dada a liberdade sem fim dos seus muitos vulgares, dialetos vira-lata do latim que se tornaram nosso jardim de latinidades -; precisava haver O alemão e era necessário que ele fosse tão rigoroso quanto qualquer língua clássica. Os alemães cometeram o erro de se pretenderem mais realistas do que o rei e, dali em diante, uma série de equívocos foram cometidos.
A Alemanha contemporânea nasce da cultura burocrática, militarista e universalizante da velha Prússia - que, afinal de contas, subsumiu quase todos os Estados germânicos em seu entorno. Pois então, a história da ideologia alemã, e de seu desdita como Estado-nação, é mais do triplo H do que de Kant: Hegel, Heidegger e Habermas - do culto ao Estado como realização do Homem à transcendência comunicativa, que mascara o conflito social escondendo as assimetrias diversas, passando pelo odioso projeto de refundar a filosofia ocidental reterritorializando-a na pretensão de pureza nacional.
Não que a Alemanha não tenha nos dado dois dos maiores pensadores de todos tempos, dois iconoclastas tão opostos que chegam a se aliar no limiar de sua radicalidade, Marx e Nietzsche, cada um apontando para determinados aspectos das rachaduras do casco do navio que, quisessem ou não, estavam a bordo - embora um tenha sido para sempre um judeu errante e o outro um inconfessavelmente eslavo. O que me interessa na Alemanha, portanto, é o que há de mais apaixonadamente maldito, resistente e alternativo na sua cultura, não alguma coisa de sua tradição (enquanto ramo principal de seu pensamento e ação) - não que a tradição me apaixone, ao contrário, mas eu já não diria o mesmo nem mesmo dos EUA ou da Rússia, muito menos do Reino Unido ou da França.
A Alemanha de hoje é o verdadeiro Estado em crise da Europa; depois de fraturada em duas na esteira da catástrofe da Segunda Guerra, ela se reunificou para ser o motor da Europa universalizada e universalizante na figura da União Europeia: mas sua vida não é fácil, seu capital vive da moeda comum que lhe abre os mercados do continente e está pouco disposto a fugir ao parasitismo disso, sequer assumindo os riscos de financiar seus consumidores em tempos de crise. Quem está em crise, isto é, quem depende de um artificialidade, uma moeda igual para estados desiguais, é a Alemanha, não Portugal, Grécia ou Espanha.
É a forma mansa, solidária e comunicativa do democratismo-cristão erigido nos escombros do pós-guerra - a exemplo de um bem comportada social-democracia - resolver seus problemas. Mesmo tendo a herança de sua antiga banda oriental, que passou quase meio século presa nos dilemas do socialismo real, entre a perversão burocrática e o desejo de democratizar o socialismo, restando-se falida para viabilizar sua absorção pela banda ocidental, em um movimento que teve mais haver com a ponte área Bonn-Moscou do que se supõe - e o leste pobre, apesar de preso ao jogo parlamentar, é a zona ainda mais esquerdista e rebelde do país.
A democracia-cristã governou longamente o país no pós-guerra, até o influxo dos anos 60 que resultou, de 1969 a 1983, no gabinete misto de social-democratas e liberais-democratas, voltou ao poder na reação dos anos 80 até ser substituída pela (torpe) terceira via - verde e social-democrata - durante o governo Schroeder para depois ascender com Merkel em um clima de progressivo desinteresse pela política, esgarçamento social e crescimento de movimentos de extrema-direita - para governar burocrática e cruelmente. Se na Itália havia um velho bordão de que a (falecida) democracia-cristã local invertia o anátema de que se deveria agir "segundo o que o Padre diz, não como ele mesmo age" - ao agir como ele age e não como ele diz -, podemos dizer algo parecido de Merkel e os seus.
O que quer Merkel, acossando os países periféricos da Europa por meio da política de austeridade? Até que ponto ela não imagina que isso não vá resvalar na sua Alemanha, seja por meio de um efeito bumerangue econômico ou político? As recentes derrotas políticas que ela sofreu podem ser menos terríveis, para si mesma, do que ela pensa, pior se fossem efeitos econômicos propriamente ditos, o que não está, ao meu pensar, fora de um horizonte de curto ou médio prazo se o arrocho não destruir algum país, por menor e mais pobre do que ele seja. Uma vitória social-democrata em nível nacional seria importante neste momento, apesar de suas torpezas mil, mas a crise alemã é certamente mais profunda e complexa para ser resolvida por uma mera mudança parlamentar.
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