Mantega e Dilma: o esforço por juros menores (reuters) |
A política de crédito, sua capilarização e expansão, são pontos centrais no debate econômico contemporâneo. Não à toa, um dos grandes embates do governo Dilma é, precisamente, a quebra de braço entre o governo federal e os bancos privados para que aqueles se esforcem na tarefa de emprestar dinheiro para os reles mortais consumirem - não que isso se constitua em uma atividade pouca rentável, mas ela é, por certo, mais arriscada do que viver dos juros dos títulos da dívida pública, logo, sem nenhuma intervenção política, isso não acontece.
Aumentar o crédito para os consumidores é injetar dinheiro na economia, isso ocorre pelo acréscimo de renda salarial para eles e se torna renda real, ajudando a realizar o valor econômico - didaticamente, um proprietário de um bem de produção, no capitalismo, deseja pagar o menor salário possível para seus empregados ao passo que precisa que os demais façam o contrário para que ele tenha mercado para vender seus produtos; como os salários são menores do que o valor produzido (desconsiderando aqui a questão da taxa de investimento e manutenção do capital), resta um hiato por se realizar.
É justamente essa disfunção inerente ao sistema e esse hiato que são objeto da querela eterna do capitalismo. No pós-guerra, os Estados entraram com vigor para reconstruir as economias capitalistas, aliaram-se aos sindicatos e reverteu-se a histórica curva do medo que tomava os trabalhadores de todo o mundo: de repente, o desespero de não ter um bem de produção e precisar vender a mão-de-obra, deu lugar ao conforto progressivo causado pelas redes de bem-estar construídas pelo Estado e pelas redes de solidariedade estruturadas em torno dos sindicatos, partidos social-democratas e movimentos sociais.
O crescimento da massa salarial dentro de um cenário de propriedade privada dos meios de produção ascendeu outra questão: os proprietários reagiram ao empoderamento operário e, trinta anos de bonança depois, passaram a repassar, na forma de inflação, os custos dos ganhos trabalhistas para, assim, anula-los.
A ascensão política do dito neoliberalismo, primeiro com Pinochet e depois com Thatcher e Reagan, não é uma jogada simplesmente burra de diminuir salários, pensões e aposentadorias - porque aí só seria possível equilibrar a economia se tornando uma potência exportadora descomunal - e mais uma esperteza danada ao fazer tudo isso junto com a popularização do crédito, tornando a realização do valor cada vez mais dependente das dívidas contraídas pelos trabalhadores .
Dali por diante, os trabalhadores passariam a trabalhar duro para pagar seus débitos - valor produzido por eles mesmos e depois expropriado pelo capital até parar nos bancos - e, assim, não só realizarem o valor sem pressionarem salarialmente seus patrões como, também, dando origem a um novo mercado - o de empréstimos para o consumo - no sistema financeiro e, ainda por cima, passando a trabalhar de acordo com a coordenação da dívida. A angústia de perder o status social e de não poder arcar com as próprias dívidas torna-se a forja do novo homem.
A dívida deixa de ter um caráter meramente suplementar à renda laboral - e de ser garantida por sua existência - para ganhar uma nova função: ela passa a complementar uma renda salarial insuficiente ou mesmo a obrigar o não-proletarizado a passar a sê-lo - ao conceder crédito mesmo para quem não trabalha, o sistema faz esses setores entrarem na formalidade, para pagar as dívidas contraídas. O medo volta na forma do fantasma de estar fora do consumir ou, antes de mais nada, de não poder mais pagar as dívidas. Acabaram-se as garantias.
O calcanhar-de-aquiles do sistema reside no fato de que o crescimento da taxa de endividamento é maior do que o crescimento do PIB, pior do que isso, a dinâmica dessa racionalidade leva a uma espiral de inadimplência - ou a mera expectativa de - que põe em xeque a capacidade do sistema coagir os devedores a pagar. A economia da dívida entra em processo entrópico.
No caso brasileiro, o governo Lula é marcado por um esforço welfarista de ampliação dos salários e melhoria da qualidade (e da quantidade) do trabalho empregado - além de uma abertura do crédito como instrumento de acesso ao consumo -, mas as pressões inflacionárias, diante de um cenário de pleno emprego, tem levado a medidas combinadas de financismo - crédito em vez de salários - como forma, no entanto, de manter a trajetória - e o crédito para as camadas não proletarizadas não deixa de ser um meio de trazer mais gente para o mercado de trabalho e, assim, arrefecer quantitativamente as pressões que plena-empregabilidade causa.
O que o dilmismo faz está fora de um contexto thatcheriano por conta de sua inegável vocação estatal e social, mas não deixa de estar exposto à mesma bolha, com o endividamento asfixiando as famílias, o que pode, no médio prazo de tempos que se passam tão rápido, levar ao processo de entropia financeira - até agora, a fronteira ainda não ultrapassada pelo capital. Hoje, uma política multitudinária implica em substituir a financeirização da economia por investimentos nas redes de bem-estar, poupando gastos em serviços privados que poderiam se destinar a outros ramos e na ampliação de salários - mas é preciso potencializar os trabalhadores mais do que no sentido econômico, mas também, e sobretudo, político, para que possam produzir um outro discurso do valor.
É um bom artigo. Só não vejo de jeito nenhum o dilmismo como "inegável vocação estatal e social". A minha maior crítica ao governo Dilma é justamente baseada no sintoma econômico da sua própria formação. O artigo foi muito bem, mas deslizou nesse "inegável". É uma consideração muito forte que não corresponde com a situação de todas as greves que estão aí. Com a crise na saúde e na educação principalmente.
ResponderExcluirComo falamos por Facebook, Gabriel, o social em jogo tem a ver com a própria conotação modernista do atual governo - e a sociedade é a própria ilusão da modernidade. Estatalista ele é por excelência.
Excluirabraços