quinta-feira, 19 de julho de 2012

Fausto de Sokurov: Maniqueísmo e a Grandeza da Nova Rússia

Exuberante e misterioso. Se fosse o caso de definir em duas palavras o Fausto de Alexandr Sokurov, depois de assisti-lo, seriam essas duas: exuberante e misterioso. Planos belíssimos, uma composição digna do melhor da pintura alemã do início do século XVII (ou das paisagens de Turner), uma trama delicada e cheia de armadilhas sutis, filmada no idioma de Goethe. É assim que o cineasta russo conclui sua tetralogia sobre o Poder, que inclui Moloch (sobre Hitler), Taurus (sobre Lenin) e o Sol (sobre Hiroíto). É claro, se a exuberância - da filmagem e das atuações - é autoevidente, o que nos resta, para variar, é o mistério. 

Fausto, para os incautos, é uma fábula germânica do século XV sobre o médico e astrólogo homônimo que vendeu sua alma para o diabo em troca de todo o conhecimento do mundo e do amor de sua adorada Margarida. A história terminou imortalizada na Literatura por nomes como Goethe e Mann (e, de certa forma, também por Mikhail Bulgakov), devindo comum pelo mundo. 

Pois bem, nas muitas versões da história, ela vai de uma fábula moral cristã moralista - e recalcada - até uma crítica do racionalismo e sua postura infantiloide frente ao desejo. O que há de concreto ali é a relação problemática do homem com sua, vamos dizer, vontade de potência, dentro de uma montagem permeada de simbolismos. Então, digamos que em termos gerais Sokurov fez uma escolha feliz ao optar por Fausto como a conclusão de sua tetralogia, independentemente de como a tenha conduzido.


Há quem reclame, no entanto, que o problema da história toda é o fato de Sokurov ter escolhido como fecho da sua tetralogia uma fábula, depois de ter tratado de personagens reais até aqui. Ledo engano. Certamente não é essa a questão. Ter pensado a história como a história dos grandes nomes e homens talvez, ter feito uma crítica do poder pelo viés da moral (a "reprodutibilidade do mal") certamente. É aí que sua apropriação de Fausto, de pronto, já se afigura temerária.
 
Sokurov, por sua vez, reconstrói a fábula de um modo bastante particular. Ele a reposiciona no século 19º e seu diabo é uma figura completamente grotesca, muito longe de possuir qualquer charme. Um diabo que não seduz, muito pelo contrário, repele e enoja a todos, mas que nem por isso deixa de ser invocado por atormentados de toda natureza como intermediador de sua relação problemática com o desejo: é como contrato, e por meio de uma dívida, que ele estabelece esse vínculo e o articula a partir dali. Mas o desejo, notem, resta sublimado pela validação de uma gramática moral.

E Fausto é uma figura inconstante. O perfeito homem racional em seus dilemas e tormentas internas, movido por forças interiores grandes demais para si. Ele não pode podendo, portanto, deseja poder desejar. E é um diabo grotesco quem pode lhe facilitar isso, a um alto custo, naturalmente: conhecer, ter a doce Margarida etc. Mas Sokurov gosta menos de tratar do desejo e prefere colocar a questão no preto e branco - ao contrário das tintas sofisticadas com as quais ele retrata sua película: é de um mal transcendental,  de sua reprodutibilidade e possibilidade de sua neutralização que ele prefere tratar aqui. O que não é diferente dos três outros filmes.


O mistério que permeia Fausto, e está em todas as outras partes da tetralogia, é justamente  uma questão sobre a natureza do mal e sua relação com a ação, e antes disso com a potência, humana. A maneira como ele é demonstrado se escondendo, dentro de um plano estético praticamente perfeito, é fascinante, mas isso cai logo ali adiante, quando olhamos para além da casca. Como o homem pode fazer coisas tão horríveis podendo fazer o bem? Porque ele deseja, e quando concebemos verdadeiramente o desejo - que perpassa a película inteira, sendo seu invisível evidente -, fatalmente somos remetido para além do bem e do mal. 


A questão da dívida, do diabo como agenciador da servidão, é afirmada ao modo medieval. O diabo é um usurário e sempre que a dívida é trata pelo prisma da usura temos menos uma arqueologia e uma crítica sua - e, por tabela, da culpa - e mais um ataque ao seu roubo pelos meros mortais: o homem medieval, cristão e bom, ao acusar os proto-banqueiros de usurários, atacava menos a ideia de dívida, e e a relação de sujeição que ela produz, e mais o fato da capacidade de endividar ter sido roubada pelos meros mortais, tirada do monopólio de deus. Os proto-banqueiros, grande parte deles judeus, eram odiados não pela dívida, mas por serem como um povo-Prometeu, claramente roubando e usando o fogo dos deuses - ou do Deus. Aqui é assim: se livrar do diabo não é superar a mediação para desejar, mas acabar com o mal que faz uma transgressão.


É claro que essa fábula filmográfica toda representa, também, uma alegoria política muito pouco ingênua, por mais que isso pareça esotérico. Quando o produtor Andrey Sigle disse que Fausto é "um grande projeto cultural russo e é muito importante para Putin" e que "ele o vê como um filme que pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração entra ambas as culturas", existe algo bem maior do que mera política de boa vizinhança com o atual dono da Rússia que, afinal de contas, financiou o filme e possibilitou sua realização.


Por que Putin diria e faria isso por um filme sobre uma lenda alemã, que embora russo é inteiramente falado na língua de Goethe, cujas referência visuais vêm da pintura oitocentista tedesca? Ainda mais levando em conta que se trata de uma tetralogia sobre o poder, coisa que poderia não ser do seu agrado. Pois bem, é bem verdade que Putin é germanófilo, mas ajuda saber que Sokurov é seu sincero apoiador. E Fausto não é uma obra europeia ou europeizante, ao contrário, ela é como Pedro, o Grande - que não só fundou a Rússia como também é objeto de culto por parte de Putin -, quando vivia escamoteado pela Europa, aprendendo de tudo um pouco sem que ninguém suspeitasse que se tratava de um russo, tampouco um czar.


Se Pedro era o mais russos entre os russos, Fausto é uma obra russa, mais do que qualquer uma outra. Uma obra russa que se faz europeia no modo devir-cavalo de Tróia do seu fundador. Mas como uma fábula sobre o Poder, visto pelo prisma do Mal, poderia servir a Putin? Sendo honesto, é preciso pontuar que não é possível comparar Putin com um Hitler ou um Hiroíto, mas tampouco é possível comparar nenhum dos três citados com Lenin, sopesados seus defeitos, e a incandescente ausência de Mussolini, por exemplo. Mas se a crítica é sobre o Poder, venhamos e convenhamos, que não seria o caso de ter Putin junto nem que fosse estrategicamente.


Ainda assim, tudo faz um enorme sentido. O projeto cultural para a Rússia que Putin, a duras penas, tenta pôr em prática, e que Sokurov remetendo vagamente a Tarkovsky - embora longe de sua virtù - ajuda a construir pelo cinema, não é incoerente ao criticar ao mesmo tempo Hitler, Hiroíto e Lenin, porque ele não é, em verdade, nem nazista, "asiático", (digamos, num sentido marxista) ou revolucionário. Mas se o faz os criticando justamente grandes figuras é porque esse projeto se ancora numa perspectiva histórica de grandes nomes e homens que fazem às vezes das multidões, na fé na estabilidade trazida pelo conservadorismo político e na moral.


Se Tarkovsky era inimigo do regime soviético, e reterritorializava sua arte na desterritorialização renascentista - tão livre frente às formas rígidas da Rússia -, Sokurov é aliado dos czares (esclarecidos) do seu tempo, trata-se de um homem oitocentista ou, com algum esforço, dezenovista. Fausto é uma obra enormíssima e magnânima, um arroubo estético que ilustra a grandiosidade de um projeto cultural muito maior, cujos impactos reais sobre a civilização russa ainda não sabemos dizer, mas certamente conseguimos supôr pela maneira como ele (não sabe como) agencia(r) o desejo.





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