quarta-feira, 3 de outubro de 2012

5 Teses sobre a Exceção à luz do Massacre do Carandiru


Ontem, o massacre do Carandiru -- no qual a Polícia Militar de São Paulo, sob as ordens do governo Fleury, ceifou as vidas de 111 detentos desarmados -- completou 20 anos. Em outra ocasião já anotamos alguns pontos sobre o que se passou ali, mas é necessário levar em consideração alguns pontos para a reflexão:

1. O Estado, seja ele autoritário ou "de direito", é plenamente capaz de tomar decisões de exceção, isto é, suspender direitos e garantias e, usando-se da capacidade de proferir a palavra final, dizer não à vida. Não é que ele "deva" fazer isso, mas isso não é uma questão abstrata, ela é bastante real: ele pode, embora seja terrível saber disso. Uma vez posto em xeque, o Estado revela sua face oculta e faz uso de qualquer meio para se manter. A decisão de matar os presos do Carandiru em plena vigência da democracia e de sua constituição garantista é uma prova desse assombro.

2. O dispositivo de eliminação total é pressuposto à forma de organização estatal. Um Estado requer súditos, escravos no sentido nietzscheano, não mortos, no entanto, ele não hesitará em matar -- e, eventualmente, se autodestruir no processo -- caso sua matriz de exercício do poder e da autoridade seja comprometida de forma crítica. A eliminação de militantes de esquerda na ditadura, o massacre de Canudos pela República nascente, a caça às bruxas de Vargas são provas disso -- bem como Eldorado dos Carajás ou o Carandiru.

3. A decisão de exceção, bem como suas consequências, não é mero ato ilícito penal. Se fosse, os crimes da ditadura militar poderiam ser equiparados a um homicídio qualquer cometido entre particulares. Exceção não gera direitos nem punição, ele escapa à esfera de cognição. Não adianta procurar na Lei o que se passou ali, aplicar as regras e os procedimentos de direito penal conhecidos, dizer que prescreveu ou que não há enquadramento possível: o poder soberano quando age, naturalmente, o faz sobre a Lei que ele próprio engendra na indeterminação dos conceitos jurídicos e nas brechas possíveis.
4. Não é o caso de celebrarmos o Tribunal de Nuremberg, mas tampouco é questão de dizer que ele é o mesmo que os tribunais de exceção do Nazismo -- ou do Stalinismo que, no entanto, passou incólume à Segunda Guerra. Ele foi uma resposta vazia ao vazio do Estado moderno, uma vez que o Poder Soberano pode cometer violências plenamente efetivas e até "legais" embora não legítimas e não capturáveis, pois é ele mesmo que garante a Lei e tem meios para passar por cima dela: o erro está em responder nos mesmos termos judiciais e punitivistas, não em condenar algo que realmente aconteceu, embora a ficcionalidade jurídica não o alcance -- pela própria condição de existência de tais decisões. Dizer que não podemos avaliar é o mesmo que transformar tudo numa cruel ficção pueril: dei o golpe e me perdoei, direta ou indiretamente.
5. Não há contrapeso ou balanceamento de poder suficiente para frear isso. Por dentro da ordem criada não há como deter a ordem criadora que lhe é anterior -- logicamente -- e que resolve agir a despeito do que criou. A disputa teológica sobre um deus que ajusta a criação sem intervir e um outro que o faz o tempo todo é inócua, pois ele pode intervir e é isso que nos interessa, a bem de nossas gargantas. Se o Estado vive de medo, a tristeza por questões futuras, ao tornar a  sua permanente ameaça de violência em violência real, ele desfaz o medo por não haver mais futuro que justifique o medo ou a esperança, de tal forma não é espantoso que o PCC tenha surgido na esteira desse horror, tornando as coisas mais complexas ainda.  Só a rebeldia, no modo de insurreição deslegitimadora do que não tem legitimidade mas assume tal forma, pode frear esse mecanismo infernal. A efetividade real da força da multidão livre oposta à efetividade imaginária do Estado.







2 comentários:

  1. Devir-leviatã da multidão ;) A impressão eh que ainda se reage apenas a lógicas punitivistas, mesmo nos círculos "pensantes". talvez seja o caso de ver como falta internacionalismo! Tb interessante lembrar o reconhecimento das deficiências do Estado no fórum internacional; Amorim na Onu, especificando Carndiru, Vigário Geral e Candelária. Abraço.

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  2. Entendo e concordo com essas teses mas tem uma coisa que não me sai da cabeça. Em 1831 Tocqueville fez a seguinte reflexão depois de descrever a terrível cena da travessia do Rio Mississippi pelos indígenas expulsos do estado do Mississippi na infame "trail of tears":

    "Os espanhóis, com atrocidades que os marcaram com vergonha indelével, não conseguiram exterminar a raça indígena nem puderam fazer com que os índios não compartilhassem seus direitos. Os Estados Unidos conseguiu ambos resultados com incrível facilidade, calmamente, legalmente e filantropicamente, sem derramar sangue e sem violar sequer um dos grandes princípios da moralidade ante os olhos do mundo. Impossível destruir seres humanos com mais respeito pelas leis da humanidade.”

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