O Brasil é um país cuja cultura é em grande parte negra, mas ele lida mal com isso. Assim como em boa parte das coletividades humanas nascidas da expansão do homem europeu pelo mundo, já sob o paradigma da "civilização", aqui também existe uma herança nativa, ou escrava, pré-civilizacional, que se mantém viva e oculta em pleno atrito mudo com a "normalidade do modelo": não é diferente nos países hispânicos e nos Estados Unidos também em relação aos seus índios e negros, na Rússia em relação aos povos orientais, na China em relação aos povos mongólicos.
O negro, vejam só, é ontologicamente minoria, pois ele só o é devido ao mau encontro com o colonizador europeu em África: negro é negro em comparação a um padrão de maioria chamado "branco". Em África, antes do imperialismo, os negros simplesmente eram a multiplicidade de etnias na qual se constituíam, a despeito de qualquer binarismo branco-negro. Há dois pontos aí: antes do homem europeu, os negros não eram negros (e nem precisavam ser); quem precisa que eles sejam negros eram os europeus (com o intuito de se afirmarem brancos) e, ao mesmo tempo, sob o rótulo de negro existe uma multiplicidade de etnias e culturas diferentes -- ninguém pergunta a um brasileiro branco se ele é descendente de brancos, mas sim se ele é descendente de portugueses, italianos, alemães, árabes, espanhóis, holandeses, poloneses etc; com o negro não: ele é descendente de escravos, de um negro, pouco importa de qual e de onde em África.
O mesmo ocorre com os loucos: só há louco pela razão de que há alguém que afirma publicamente seu modo de demência -- em busca de autorização --, se dizendo "normal" e afirmando que todas as outras demências são loucura -- o louco é alguém que ousa se comportar de forma diferente. Só há um pobre porque existe um "rico" a lhe oprimir: ser pobre é estar, necessariamente, oprimido de um modo que sua própria vida é roubada cotidianamente, mas ainda assim, se resiste -- o pobre é um resistente por natureza. Só há índio porque houve um colonizador a vir até aqui, reduzir uma miríade de etnias a "índio" (= homem colonizável), devir-índio é encontrar-se resistente a um processo de colonização (a começar pelo próprio corpo). Nem o negro precisa do branco, nem o louco do normal, tampouco o pobre carece do rico ou o índio faz questão do cara-pálida para Ser. Mas a recíproca não é verdadeira, justamente por isso as minorias são parasitadas pelas maiorias.
A luta não se constitui por essas identidades, mas a partir da potência que essas subjetividades, forjadas na resistência possuem. Daí, se depreende que há uma miríade de áfricas no negro, uma miríade de jeitos no louco, uma miríade de gentes comuns viventes no pobre, uma miríade de brasis (ou até mesmo uma multiplicidade que há antes e a despeito do Brasil) no índio. Assume-se o binarismo, a máscara discriminada, e de sua potência causa-se uma explosão: não é que falemos em potência do desejo, mas que o desejo é potência, é energia e ele mesmo é o único modo de mudar o que quer que seja.
O racismo, por sua vez, não é real, pois não existe realmente raça entre os humanos, mas isso não impede que como ficção (em tom de farsa) ele produza o real da opressão e, por isso, não se possa utilizar medidas legais (igualmente ficcionais) para combater a discriminação racial. Também pouco importa mais e mais informações da Genética ou da História sobre a insanidade da discriminação, ninguém é racista por falta de informação, muito pelo contrário, mas por gozo perverso: mais do que informação, precisamos de comunicação, e a comunicação está para além da própria Linguagem, habitando na relação afetiva e na potência de afetar; é preciso afetar, de qualquer modo, interferindo no desejo do racista.
O problema também não mora em ver Joaquim Barbosa como negro, ou Dilma como mulher, mas em não ver Gilmar Mendes como branco, uma vez ocupe a Presidência do STF, ou FHC como homem, uma vez Presidente da República. No entanto, tanto o presidente do Supremo quanto o da República foram, ambos, forjados e sustentados no imaginário sob o paradigma branco, normal, rico e quatrocentão (ou imigrante bem-sucedido): não é a ascensão das minorias ao cargo, por si só, que muda algo, mas a chegada da minoria enquanto minoria. A sociedade não mudará se for permitido aos negros enriquecerem ou ascenderem à chefia do Estado, mas se eles chegarem lá enquanto negros e subverterem a ordem -- hierárquica, opressora, mutuamente escravizante.
Não somos todos negros, mas podemos devir negros. É, no entanto, o devir-negro do negro que pode fazer a diferença diante do incomum do racismo: não existem, realmente, negros e brancos, há, na verdade, brancos sobre negros; é preciso devir-negro para além da própria negritude, mas a partir dela.
Aceitar as "subjetividades" apenas como forma de resistência no jogo de forças. um dos melhores posts que vi por aqui(olhe q isso tá longe de ser pouca coisa). flw!
ResponderExcluirInteressante destacar a subjetividade no debate sobre o devir, embora seja uma abordagem que arrisca cair no nonsense. Acho fundamental a contraposição à lógica vigente, no entanto o confronto com a dominação instalada requer mais do que o desejo individual. Eu prefiro a insolência da Alice através do espelho à compostura da Alice no país das maravilhas.
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