-- Um espectro ronda a Europa, mas desta vez não é a Revolução, mas sim algo, digamos, um tanto menos vivo --
Além da crise da União Europeia, questão recorrente no noticiário nos últimos anos -- com o poder europeu misturado ao sistema financeiro, Alemanha à frente e acima, no esmagamento dos países periféricos --, agora temos a intervenção francesa no Mali -- um tanto mais direta e presencial do que a, digamos, nada pequena participação franco-britânica na Líbia. Uma palavra nova entra no nosso léxico: Françafrique -- o neologismo definitivo para definir a doutrina neocolonial francesa sobre suas ex-colônias africanas; trata-se de uma ironia precisa (e polêmica) de François-Xavier Verschave, em livro homônimo dos anos 90, para a relação nebulosa entre a França e suas ex-colônias.
Esqueça o fascismo ou o velho imperialismo: vivemos em uma época outra, onde qualquer conservador faz objeção de princípios a líderes opressores e grandes assassinos, mesmo os de extrema-direita. O fato é que o sistema não precisa mais matar, ele deixa morrer com estilo e sem cerimônia; os velhos genocidas fascistas são, portanto, instrumentos ultrapassados destinados ao descarte no ferro velho da esquina. O máximo de intervenção e combate que podemos testemunhar é o dos poderosos exércitos da civilização, enquanto força de polícia cosmopolita, pondo ordem na Casa. O sistema não mata, ele deixa morrer em nome de uma responsabilidade pessoal transcendente -- ou mata sob a prerrogativa da preservação da civilização global.
O Centro produz a periferia dialeticamente. O processo civilizatório é dialético na medida em que a civilização cria seus bárbaros e selvagens para, vejam só, homologar-se enquanto tal. Do mesmo modo que o capitalismo, ao criar riqueza, cria pobreza, pois só é rico alguém ou algo que tem um pobre para lhe servir como referência homologatória: o rico o é não por ter muito, mas por ter quem tenha menos em relação a si. O etapismo e o enriquecimento sustentam as duas dialéticas: o esforço da periferia em ser centro é o que permite a existência de uma zona periférica, o esforço do pobre em ser rico é o que mantém a pobreza. Na essência do problema, pelo menos da questão geopolítica levantada, está a aliança entre a elite africana e francesa contra os pobres de canto a canto -- no outro exemplo, é a aliança entre o pobre dominado por paixões tristes (a dívida, p.ex.), o pobre que não devém pobre, e o rico que sustenta a "desigualdade social".
Além da crise da União Europeia, questão recorrente no noticiário nos últimos anos -- com o poder europeu misturado ao sistema financeiro, Alemanha à frente e acima, no esmagamento dos países periféricos --, agora temos a intervenção francesa no Mali -- um tanto mais direta e presencial do que a, digamos, nada pequena participação franco-britânica na Líbia. Uma palavra nova entra no nosso léxico: Françafrique -- o neologismo definitivo para definir a doutrina neocolonial francesa sobre suas ex-colônias africanas; trata-se de uma ironia precisa (e polêmica) de François-Xavier Verschave, em livro homônimo dos anos 90, para a relação nebulosa entre a França e suas ex-colônias.
Esqueça o fascismo ou o velho imperialismo: vivemos em uma época outra, onde qualquer conservador faz objeção de princípios a líderes opressores e grandes assassinos, mesmo os de extrema-direita. O fato é que o sistema não precisa mais matar, ele deixa morrer com estilo e sem cerimônia; os velhos genocidas fascistas são, portanto, instrumentos ultrapassados destinados ao descarte no ferro velho da esquina. O máximo de intervenção e combate que podemos testemunhar é o dos poderosos exércitos da civilização, enquanto força de polícia cosmopolita, pondo ordem na Casa. O sistema não mata, ele deixa morrer em nome de uma responsabilidade pessoal transcendente -- ou mata sob a prerrogativa da preservação da civilização global.
O Centro produz a periferia dialeticamente. O processo civilizatório é dialético na medida em que a civilização cria seus bárbaros e selvagens para, vejam só, homologar-se enquanto tal. Do mesmo modo que o capitalismo, ao criar riqueza, cria pobreza, pois só é rico alguém ou algo que tem um pobre para lhe servir como referência homologatória: o rico o é não por ter muito, mas por ter quem tenha menos em relação a si. O etapismo e o enriquecimento sustentam as duas dialéticas: o esforço da periferia em ser centro é o que permite a existência de uma zona periférica, o esforço do pobre em ser rico é o que mantém a pobreza. Na essência do problema, pelo menos da questão geopolítica levantada, está a aliança entre a elite africana e francesa contra os pobres de canto a canto -- no outro exemplo, é a aliança entre o pobre dominado por paixões tristes (a dívida, p.ex.), o pobre que não devém pobre, e o rico que sustenta a "desigualdade social".
Quem está em colapso é a Alemanha de Merkel, como sempre insistimos por aqui, não Portugal, Espanha, Grécia ou Irlanda. Mas é ela quem tem o poder, via Euro, de sufocar os mais pobres, jogar-lhes a culpa e a dívida -- que bem sabem os alemães ser a mesma coisa -- e se alimentares. O capital alemão na sua dimensão esfomeada já se alimentou dos recursos humanos da antiga máquina burocrática da falecida da Alemanha Oriental, já mandou plantas industriais para a China aos borbotões, e, agora, come os periféricos da Europa. Hollande, que não deixa de ser um contraponto à Alemanha internamente no jogo europeu, não deixa de ter o apoio da maioria, da Otan, dos próprios germânicos para comer pelas beiradas uma resolução da ONU que falava em forças africanas para "estabilizar" o Mali, não francesas. Mas a guerra é sempre urgente, necessária; discordar torna-se, rapidamente, o mesmo que estar a favor dos rebeldes.
Os rebeldes malineses, terríveis "islamistas", estariam armados com os despojos do arsenal de Kadafi, déspota líbio recentemente derrubado -- e cruelmente morto por "rebeldes" apoiados pela aviação de combate da França. Não só, o Mali, que hoje vê sua capital cercada, já se encontra em problemas há tempos. O governo, ora sitiado, é ilegítimo e ascendeu via golpe de Estado. Governo este responsável, inclusive, pela maior estagnação do país em seus cinquenta e dois anos de existência pós-colonial. Mas só agora, e dessa forma, houve alguma mobilização. Nada conspira pela legitimidade desta ação ou para sua funcionalidade. É como uma volta ao passado, quando Guattari comentava com Lula sobre as ambiguidades da política externa da França de Mitterrand: a denuncia do imperialismo americano por uma mão e a deflagração do botão da guerra na África pela outra.
Os rebeldes malineses, terríveis "islamistas", estariam armados com os despojos do arsenal de Kadafi, déspota líbio recentemente derrubado -- e cruelmente morto por "rebeldes" apoiados pela aviação de combate da França. Não só, o Mali, que hoje vê sua capital cercada, já se encontra em problemas há tempos. O governo, ora sitiado, é ilegítimo e ascendeu via golpe de Estado. Governo este responsável, inclusive, pela maior estagnação do país em seus cinquenta e dois anos de existência pós-colonial. Mas só agora, e dessa forma, houve alguma mobilização. Nada conspira pela legitimidade desta ação ou para sua funcionalidade. É como uma volta ao passado, quando Guattari comentava com Lula sobre as ambiguidades da política externa da França de Mitterrand: a denuncia do imperialismo americano por uma mão e a deflagração do botão da guerra na África pela outra.
Hollande conta com alguns ases na manga. Um deles é de que, de fato, o governo (de facto) do Mali foi quem pediu ajuda à comunidade internacional, sobretudo à França. O outro, é que a intervenção é brutalmente popular na França. Para um governo apagado como o de Hollande, cujas tentativas de emplacar políticas anticrise e de reduzir a hegemonia alemã na Europa resumem-se, quase sempre, ao discurso e à pirotecnia, ter uma ação aprovada por três quartos da sua população não é pouca coisa. Mais até do que isso, por questões políticas e econômicas, fazer guerra nunca foi de um todo mau para o capitalismo, sobretudo quando se faz guerra contra organizações não-capitalistas ou pré-capitalistas.
Não é uma questão nacional, por óbvio. É da interface imperial do sistema global que estamos falando. Do arcaísmo fundamentalista como colateralidade do funcionamento da economia-mundo. Da guerra como negócio derradeiro, desafogo da política e forma de incentivar a fabricação de bugigangas bélicas. O que resolverá mais essa guerra se ela existe como consequências do fracasso da intervenção na Líbia e do fracasso do sistema global? Mesmo com todas as suas reticências, a pergunta de Mélenchon é válida: esta guerra servirá para algo?
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