O ciberativista Aaron Swartz (foto) cometeu suicídio, na última sexta, aos 26 anos. Swartz acabara de ser condenado pela justiça de Nova Iorque a 35 de prisão, o que levou ao gesto desesperado. A acusação? Disseminar na rede artigos acadêmicos, tornando-os de domínio público. A morte de Swartz, portanto, é um evento da maior relevância, uma vez que não se trata de uma mera tragédia pessoal, muitíssimo contrário, ela sublinha três eixos de reflexão centrais: o significado do suicídio, a questão dos direitos autorais e a do punitivismo penal. São três eixos que em algum momento já debatemos por aqui e constituem as questões definitivas do nosso tempo.
Pois bem, já não é de hoje que toda sorte de aparato teológico-político condena o suicídio, direta ou indiretamente. O suicida é um pecador, um maldito e só não é um criminoso pela falta de possibilidade de ser sancionado (embora eventuais colaboradores terminem por ser penalizados). É justamente esse detalhe final que enseja sua condenação ideológica. O fato é que nenhuma máquina teológico-política deseja fazer uma pilha de mortos, mas sim uma imensidão de escravos. E em último caso, o suicídio é uma forma de libertação de uma existência miserável -- como a de um Walter Benjamin cercado por perseguidores nazistas ou, ainda, de um Salvador Allende prestes a ser massacrado pelos golpistas chilenos em pleno palácio presidencial.
O gesto do suicida político, portanto, importa em si, mas, sobretudo, no seu impacto simbólico: ele afirma que mesmo na situação limite na qual o fascismo se torna total, há uma saída, há uma possibilidade de dispor sobre o próprio corpo, mesmo que seja em caráter derradeiro. O sistema não mata seus adversários pelo simples fato de mata-los, mas dar o exemplo público que pode matar qualquer um que lhe desafie -- ou, como no caso, que dá a última palavra sobre o corpo de qualquer um. O suicídio, por seu turno, é a afirmação de uma outra verdade, de que no limite o fascismo não é absoluta, mesmo quando é máximo. Não que o suicídio como protesto seja algo belo em si, é uma tragédia, e de tão trágico é belo. Não à toa, nosso mundo está recheado de imolações de toda sorte, o que quer dizer muito.
Ato contínuo, a ditadura dos direitos autorais diz respeito à outra não menos importante faceta do sistema atual. O riqueza hoje é imaterial, é o conhecimento, o conceito, a marca, o design. Controlar a produção disso, as válvulas e portas que comportam o fluxo de saberes, informações e quetais é estratégico. Não existem, a bem da verdade, direitos do autor fora do plano ideológico: falar em direitos do autor, em remuneração daqueles que produziram é só uma forma de legitimar os direitos do capital cognitivo em reter para si o valor decorrente do conhecimento comum.
Nem é preciso dizer que músicos, escritores ou mesmo acadêmicos ganham apenas uma mixórdia perto do que termina nas mãos de gravadoras e editoras. Produzir conhecimento é inovar, mas inovar mediante uma mixagem dos saberes comuns. Obviamente, o produtor merece sua remuneração, mas isso não pode implicar no impedimento ou retardamento da circulação do conhecimento, embora o problema nem seja este (antes fosse): quem retarda, na prática, são os capitais do futuro, os capitais cognitivos. Aliás, gravadoras e editoras nem são o que há de ponta neste esquema, haja vista as redes sociais e toda sorte de exploração anestésica e invisível que se vê na própria rede.
A equação se fecha com o punitivismo penal. Punir, inflingir dor sobre o corpo de outrem de maneira ritual, legitimada e pública é tão velho quanto a humanidade. E o é pelo seu caráter sedutor. Não se trata apenas de punir para eliminar, ou fragilizar, o corpo do insurgente -- ou mesmo de fazer isso um exemplo: a ritualística da punição representa um meio da massa descontar todas as suas frustrações, toda a dor de uma humilhação cotidiana e não entendida. As massas que assistiam às sessões de decapitação durante a Revolução Francesa raramente tinham motivos pessoais, ou políticos, para tanto. Mas se sentiam vingadas. Elas projetavam a sua dor e as suas frustrações no prazer perverso de ver o martírio alheio.
O fetiche punitivista cega a muitos. Basta a ver o Brasil de hoje. Mesmo à esquerda, não importa bem como nem por qual motivo, importa que houve uma condenação penal; é o resultado de uma crença na justiça por meio de transcendência, processo que exige a intercessão da sanção penal. O sistema penal anglo-americano está cheio de aspectos absurdos nesse sentido. Há uma desmedida. E a importação disso somado com o estatalismo europeu é, não custa lembrar, um dos maiores problemas do Brasil de hoje.
Assim, a equação se fecha e converge no caso Swartz. A pergunta que fica é quantos jovens precisarão, ainda, se sacrificar, pela impossibilidade de uma vida plena? É preciso ir além de velhos dogmas e enfrentar uma máquina horrenda que é, ela mesma, fetiche, puro feitiço: ou há algo mais irreal -- e cheio de fantasmas (a dívida sem fim, o Estado, o medo) -- do que este estado de coisas no qual "vivemos"?
Atualização das 19:50: vale muito a pena ler o post do nosso Rafael Zanatta sobre o caso.
Excelente texto, Hugo. Você toma o "caso Swartz" para ir além de tocar em pontos centrais sobre a ontologia do suicídio (concordo com os argumentos) e sobre o simbolismo do sistema penal.
ResponderExcluirTalvez Aaron tenha enxergado além de nós que o fascismo se tornou total (ou antecipou uma visão do que poderá ocorrer). O ato político, neste caso, produziu efeitos. Não é por acaso que estamos discutindo esses temas em nossos blogs hoje. Tudo isso foi provocado por ele. Veremos se o debate ganha robustez.
Obrigado, Rafa, inclusive já linkei o teu belo post sobre ele. É interessante pensar o suicídio na sua dimensão política, uma vez que um argumento recorrente será "ele tinha problemas, por isso se matou" e outros tantos dirão "ele não tinha problema algum, ele se matou como resposta" -- o que é um falso argumento, embora com boa intenção. O fato é que o suicídio é recriminado -- e o suicida é sempre rotulado de algum modo negativo -- veja você, porque o suicídio por como resposta política esvazia o poder aqui e em qualquer momento: mesmo quando o poder consegue ser máximo, vem o suicídio e mostra que ele não pode ser absoluto. Foi isso que aconteceu.
Excluirabraços
Correção: *Para ir além e tocar em pontos centrais
ResponderExcluirHugo, achei bastante interessante este prisma. De fato o suicídio sempre foi mal visto, talvez pela necessidade que as sociedades têm de preservar a vida, sem a qual elas não existem. Em muitas culturas inclusive há sanções para o suicida, como a impossibilidade de sepultamento junto aos demais, por exemplo. Este tema do suicídio sempre me intrigou. Isto pois para o cometimento do suicídio é necessário superar o nosso mais básico instinto animal: o da autopreservação. O motivo do suicida, a meu ver, deve ser suficientemente forte para racionalmente quebrar este instinto. Eu vislumbro causas psicológicas que possam levar a tanto, mas para mim é novo este motivo que você aponta de responder ao fascismo em tom desafiador. E é algo que para mim fez muito sentido.
ResponderExcluirSobre os suplícios coordenados sob a égide do punitivismo penal, a suas linhas me lembraram muito a minha leitura de Beccaria quando ele trabalha esse aspecto. Quando eu li cheguei à esta mesma conclusão, a de que os suplícios dos apenados funciona como válvula de escape da sociedade. É como se dissessem "Veja, eu vivo dentro das regras, sob submetido às opressões, esse aí saiu da linha, teve o que mereceu". Antes de voltar as suas revoltas ao sistema que as oprime as pessoas descarregam seus ódios sobre aqueles que se colocam à margem desse sistema. Observo que as sociedades mais oprimidas são as mais enfáticas em exigir mais duros sistemas penais, enquanto as sociedades mais igualitárias tendem a pedir pela ressocialização, pela abolição de penas cruéis, etc.
Por último, sobre este capitalismo cognitivo sobre o qual tratávamos em outro comentário, certamente essa ânsia em proteger os direitos autorais é um claro indício dessa nova versão do capitalismo. Em analogia vejo a defesa da propriedade intelectual de hoje assim como a defesa da propriedade dos meios de produção no capitalismo industrial.
Abrass"
De fato, mestre Nuno. E há suicídios e suicídios. O suicídio, no entanto, é recriminado justamente por sua possibilidade positiva, de libertação: o suicida precisa ser um maldito. É como no como de Herzog. Torturado e morto, os algozes precisaram fazer parecer um suicídio não apenas para se livrarem do peso de tê-lo matado como, também, para o destruir simbolicamente. Matou-se, era um maldito. E parte da disputa narrativa sobre seu suplício tratou-se justamente da questão se foi, ou não, um suicídio.
ExcluirSobre o punitivismo, é isso. Trata-se de algo cuja raíz é evidentemente antropológica e se retroalimenta, sendo um fim em si mesmo, embora funcione à base do discurso do medo. Como tornar uma sociedade não punitivista? Ou, pior até, como sustenta-la assim é um desafio terrível. A Idade Média, enfim, não se exauriu por completo na Modernidade, muito pelo contrário.
Sobre capitalismo cognitivo, nada a acrescentar, só sugerir: leia Copyfight, Pirataria & Cultura Livre, uma coletânea de ensaios recém-lançada sobre a questão.
abração
Nossa Hugo eu fiquei espantado, perplexo, indignado, compreensivo diante o caso (nessa ordem), obrigado por trazê-lo à tona.
ResponderExcluirSomos dois, Luis.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirLamentável o absurdo do cerco que vem se fechando em volta daqueles que querem apenas difundir conhecimento. São mais do que conservadores, são retrógrados, pois eu mesmo e outros da minha geração temos personalidade, psique, conhecimento totalmente baseados no impacto da internet e no acesso que essa nos proporcionou a bens intelectuais. O que essas ações buscam é realmente voltar atrás, castrar direitos que já foram garantidos. Mas uma obra circulando livremente no youtube, por ex, garante publicidade ao google e nada ao autor. Esse é um ponto que me incomoda um pouco, mas prefiro essa realidade à dos AI-5 digitai
ResponderExcluirExato, b. girauta, mas como o mestre Zanatta colocou em sua excelente postagem, trata-se de uma disputa muito clara entre quem defende a liberdade nas redes e verdadeiras obscurantistas, cujo projeto é, como todo projeto fascistóide, não só destrutivo como autodestrutivo.
Excluirabraços
texto tão curtinho mas com tanto conteúdo e força! achei excelentes as reflexões! só gostaria de apontar uma correção: no último parágrafo, acredito que seja "precisarão", em vez de "precisaram".
ResponderExcluirparabéns pelo texto! já compartilhei! hehe
Obrigado Garota Psykóze, bondade sua! Valeu pela observação mui atenta.
Excluirabraços