No do cineasta chileno Pablo Larraín -- estrelado pelo excelente Gael García Bernal - é um filmaço. E o é por vários motivos. O primeiro deles é por seguir a esteira (exitosa) do cinema chileno contemporâneo, provando que a de união de qualidade cinematográfica com uma reflexão profunda pode resultar em um filme leve, instigante e assistível pelo grande público -- como um experimento capaz de se infiltrar pela massa desmassificando-a. O outro, é a reflexão propriamente dita, um belo panorama dos paradoxos da redemocratização chilena e, por tabela, da redemocratizaçao latino-americana, o que diz respeito a nós brasileiros, inclusive.
O realismo da película é tremendo. Baseada no texto de uma peça do dramaturgo chileno Antonio Skármeta -- jamais encenada, no entanto --, ela trata da campanha político-midiática em torno do plebiscito popular que Pinochet foi obrigado a convocar, por pressões internacionais, para deliberar sobre o futuro de seu regime: uma vez distendida a Guerra Fria com a perestroika, o mesmo Ocidente que patrocinou o golpe chileno agora constrangia, ironicamente, o regime por ele instaurado a realizar uma votação legítima, na qual os chilenos poderiam escolher entre a manutenção do jugo de Pinochet ou a democracia representativa.
E a possibilidade de servidão voluntária jamais escapou do horizonte desse episódio histórico, o que é refletido com sagacidade pela lente de Larraín: sim, a disputa se daria em torno do programa eleitoral televisivo e, sim, as massas poderiam simplesmente escolher pelo velho general, uma vez que quinze anos de ditadura e de silêncio total das oposições seriam reduzidos a um binarismo: sim ou não a Augusto Pinochet Ugarte. A trama se sustenta como uma narrativa quase documental, na qual imagens reais da campanha se mesclam à ficção, tudo dentro da opção ousada de Larraín em filmar tudo como se fosse uma velha gravação dos anos 80.
Bernal arrebenta no papel de René Saavedra, um publicitário que retornou do exílio no México, devido a perseguições sofridas pelo pai, e acaba contratado para ser consultor da campanha do Não, até se envolver de corpo e alma no processo.Saavedra precisa tornar a campanha do Não publicitariamente viável, o que o põe em confronto, a princípio, com a própria coalizão anti-Pinochet, que insiste em um programa carregado e pessimista, voltado à denúncia dos crimes do regime -- depois de 15 anos nos quais qualquer oposição foi calada dentro do Chile.
Existem dois grandes dilemas que decorrem do choque entre o discurso publicitário e o "político": até que ponto a mera forma não impõe uma materialidade, o quanto é funcional assumir uma forma massificada para passar, dessa vez, uma mensagem politicamente positiva como se forma e matéria estivessem desvinculadas? Como despertar o desejo dos eleitores que podem muito bem optar pela manutenção do regime por meio de sua legitimação nas urnas? Os dois eixos passam por questões importantes: a verdade e a produção da verdade na política e, depois, o desejo e a produção do desejo na mesma esfera. As massas creem naquilo que antes de mais nada elas querem crer.
Não existem soluções fáceis no drama recheado de humor negro de Larraín. A vitória do Não no plebiscito, como a História nos contou, possivelmente não teria ocorrido sem um instrumento potente, como a moderna linguagem da propaganda, capaz de mobilizar os simbolos da sociedade chilena. Saavedra deu um giro copernicano na campanha, fazendo o dizer não a Pinochet tornar-se um sim a um novo Chile que só pode nascer pela alegria (que já vem, como no jingle) -- mas, por outro lado, qual o custo de uma vitória como essa, que engendra essa mesma alegria como em um comercial de Coca-Cola, e onde desemboca essa vitória?
A conclusão de Larraín é sutilmente ácida, como o próprio desfecho do filme demonstra, certamente muito menos elogiosa do que podem supôr os ex-presidentes chilenos que assistiram à película em uma sessão especial. O esgotamento do modelo pós-Pinochet, um arranjo neoliberal cujo esvaecimento antes de ser de Piñera -- o desastrado e populista conservador que assume o poder depois de anos de derrotas da direita --, é das forças anti-Pinochet, inclusive da esquerda, que gerenciaram o privatismo e o mercadismo para o "bem" durante esses anos -- mas aquilo, de alguma maneira, já estava ali.
É possível traçar um paralelo entre esse episódio e a disputa entre Lula e Collor, na primeira eleição livre do Brasil, realizada um ano após ao plebiscito chileno. Embora não fossemos mais uma ditadura militar, é óbvio que o estava em jogo é que a nossa (aparentemente) ilimitada liberdade nas urnas nos punha entre optar pela manutenção do jogo conservador e elitista (na figura de Collor) ou no novo (com Lula e o PT). E lá estava tudo como no Chile: a hegemonia da televisão, a linguagem dos comerciais (o ápice da cultura de massa) e o risco iminente da manutenção do mesmo, por mais absurdo que fosse.
Certamente, Collor teve uma consultoria midiática um tanto melhor do que o regime de Pinochet, enquanto Lula, por outro lado, embora tenha feito uma campanha bonita (ainda que humilde), não se vergou à propaganda nos moldes da campanha do Não a Pinochet no Chile e, apesar do apoio de artistas e celebridades, perdeu.
Por aqui, a esquerda [positivistoide] se deparou com aquilo que considerava uma derrota "anti-histórica" -- para usar aqui as palavras de Leonel Brizola --, enquanto no Chile as forças democráticas experimentaram algo que Lula provaria só em 2002 pelas mãos de Duda Mendonça. O que No nos dá a pensar são os paradoxos da "nova política" latino-americana, no qual a redemocratização se dá, não por coincidência, na era do espetáculo triunfante -- e mais paradoxal do que glorioso -- dos mercados e a publicidade de massa dá lugar a uma política feita de encontros reais na praça pública. Como escapar da captura?
A resposta não é fácil. A prova dos nove é mesmo a alegria, e só ela pode mobilizar eleitores que podem desejar, como desejam frequentemente, o fascismo ou mesmo a conservação de estruturas políticas e socioeconômicas opressoras -- a narrativa da "verdade" no velho sentido socialista não rende voto --, enquanto, por outro lado, a linguagem publicitária que envolve a todos -- direita, esquerda, centro e quem não é nada disso -- como instrumento definitivo de produção de desejo pode ditar um conjunto de práticas que, no mínimo, estabeleça limites estreitos que sujeitam as forças políticas à homogeneidade conservadora.
Uma esquerda que aposte na consciência se perderá nas suas ilusões de verdade transcendental. A verdade é produção histórica e é o desejo que move montanhas, não a consciência, pois ela não passa do conhecimento da existência do que desejar crer como existente. Mas, ao mesmo tempo, aceitar os instrumentos e as alavancas midiáticas para mobilizar o desejo é uma armadilha sem tamanho.
Não resta dúvidas de que o Chile pós-Pinochet seja enormemente melhor -- embora sem uma reforma e uma radicalização democratizante da esquerda, tudo estará perdido e isso passa pela cultura -- e o mesmo podemos dizer do Brasil governado pelo PT -- apesar de que sem uma política democratizante para a área de comunicações e cultura, Dilma, herdeira direta do projeto, estará fadada a tropeçar nas próprias pernas a menos que se torne, talvez, aquilo que seus ora adversários já são.
P.S.: foi o último filme que eu vi em 2012 e o primeiro que eu comento em 2013. Atualíssimo, por sinal.
Não resta dúvidas de que o Chile pós-Pinochet seja enormemente melhor -- embora sem uma reforma e uma radicalização democratizante da esquerda, tudo estará perdido e isso passa pela cultura -- e o mesmo podemos dizer do Brasil governado pelo PT -- apesar de que sem uma política democratizante para a área de comunicações e cultura, Dilma, herdeira direta do projeto, estará fadada a tropeçar nas próprias pernas a menos que se torne, talvez, aquilo que seus ora adversários já são.
P.S.: foi o último filme que eu vi em 2012 e o primeiro que eu comento em 2013. Atualíssimo, por sinal.
Excelente paralelo! Já está na lista!
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