Joseph Ratzinger, o Papa Bento 16, renunciou ao cargo na última segunda-feira, surpreendendo a opinião pública global. O cargo estará vago a partir de 28 de Fevereiro, sendo que em Março, os 119 cardeais aptos a votar devem eleger o novo papa, em votação secreta (conclave), na qual um nome precisará alcançar dois terços dos votos. Sua renúncia, oficialmente em virtude da sua idade avançada, é a primeira em quase seiscentos anos, isto é, algo que não se vê desde o fim da Idade Média -- e não há como fazer ouvidos moucos para isso. Naturalmente, há muito mais em questão. Falar em uma exaustão conservadora não é equívoco. Trata-se de mais um capítulo da longa crise que se abate sobre o catolicismo romano desde o advento da modernidade e a decadência relativa dos grandes impérios católicos, algo acirrado desde o pós-guerra.
A escolha do então cardeal Ratzinger para papa há oito anos não foi nenhuma novidade. Ele foi durante anos o braço direito do falecido papa João Paulo 2º, sobretudo quando o antigo pontífice definhou fisicamente. E, juntos, João Paulo 2º e o Cardeal Ratzinger representaram a dupla face da reação aos ventos reformistas do Concílio do Vaticano II e ao catolicismo social: enquanto o primeiro, carismático e político, era a face visível, Ratzinger, letrado e duro, era a face oculta -- a quem mais tarde caberia os dois papéis.
A João Paulo 2º cabia conquistar multidões, ser o rosto público simpático, enquanto para Ratzinger cabia o papel de tomar as medidas duras e dogmáticas para disciplinar a Igreja: e falamos de um projeto de apoio às reformas neoliberais, de inserção da Igreja no Globo baseada na diretriz Oeste x Leste (Capitalismo contra Socialismo) -- ignorando o Norte x Sul (a tensão entre países ricos e pobres) -- e uma visão sobre a pobreza assistencial e meramente caridosa. Dessa forma, os dois papados precisam ser vistos em perspectiva, dentro de um contexto no qual a Igreja larga o papel reformismo e coloca-se ao lado da reação financista dos anos 70: era preciso construir um novo mundo que tivesse espaço para a Igreja e não mais adapta-la às mudanças trazidas pelas conquistas científicas e tecnológicas -- além dos efeitos da luta por democratização política.
A Igreja, assim, perdia o ímpeto reformista assumido desde os tempos da encíclica Rerum Novarum, datada dos finais do século 19º, quando ela se inseriu no contexto de disputa da chamada questão social para garantir a própria sobrevivência. Sobreviver, agora, implicaria na tarefa de moldar o mundo e não mais ser moldada por ele. E a globalização move-se à base de Internet e, também, se assenta sobre a organização que anteviu a organização internacionalista burocrática, qual seja, a própria Igreja. Nesse sentido, o Vaticano, sob João Paulo 2º e Ratzinger, mostrou um empenho seletivo com a democracia. Houve pouco empenho na crítica às ditaduras militares latino-americanas -- João Paulo 2º, por exemplo, visitou Pinochet em um dos pontos altos da ditadura chilena --, ao contrário do que se via no Leste Europeu. O problema, por certo, não era o autoritarismo. Bento 16 seguiu a mesma fórmula nos últimos anos.
A crise do catolicismo brasileiro é grave. A Igreja brasileira se viu atropelada por dois motivos principais no período: o primeiro era a natureza progressista da elite intelectual católica brasileira, o que pôs a Igreja brasileira em rota de colisão com o novo Vaticano, resultando na derrota da primeira e na ascensão de uma nova elite -- por força do novo arranjo católico pelo mundo e não das circunstâncias internas; o segundo, que a estratégia Leste x Oeste do Vaticano ignorou a luta política e social travada no Brasil, na qual setores moderados e progressistas da Igreja local se uniam contra a ditadura e a pobreza, uma vez que a prioridade deveria ser apenas e tão somente o anticomunismo e a construção da fé e do ritual em um sentido meramente abstrato.
O resultado é que passadas algumas décadas do processo, vê-se uma laicização enorme da população brasileira e, ao mesmo tempo, um crescimento enormíssimo das igrejas protestantes neopentecostais. O número de católicos caiu em termos absolutos e relativos junto à população. Muitos dos que ainda se declaram católicos não são praticantes, sobretudo no que diz respeito aos mais jovens. Não importa muito se a figura de João Paulo 2º era, em si, popular em contraste com a de Bento 16, mas nem isso impediu o severo enfraquecimento do catolicismo romano no Brasil -- o que ficou mais patente, no entanto, nos últimos oito anos. Se havia renovação e uma grande inserção da Igreja na sociedade nos anos 70 é fato que isso, nem de longe, se repete hoje.
Como fato político, a força evangélica, ainda que difusa, é tão forte quanto o catolicismo, ainda que o último controle instâncias importantes do poder, favorecido por uma estrutura estatal-burocrática -- item que lhe permite ações coordenadas. Mas a mesma estrutura burocrática que favorece a influência da Igreja junto ao Estado brasileiro é aquela que é, também, insuficientemente flexível para adequar o catolicismo à nova realidade social e urbana do Brasil. O perfil do católico praticante brasileiro neste início de século 21º possui uma idade avançada, é branco, da antiga classe média. Nada mais destoante da realidade pobre e emergente do Brasil dos anos Lula.
Na América Latina, apesar da maioria católica e de um clero muito mais conservador do que o brasileiro (mesmo o atual), ocorrem escolhas recorrentes de governos de esquerda, raramente apoiados pela Igreja. Aliás, um fato digno de preocupação é que golpes de Estado recentemente tentados (como o da Venezuela) ou consumados (Honduras e Paraguai) na região tiveram o apoio da hierarquia católica -- no caso de Honduras, mesmo o papável progressista Oscar Maradiaga apoiou o golpe local. Na Europa em crise, a posição da Igreja sobre as políticas de "austeridade", o eufemismo achado para explicar as políticas de recuperação financiada pelos trabalhadores e mais pobres, é péssima e não ajuda na "reevangelização" da Europa como propunha Bento 16.
Bento 16 certamente não desejava viver seus últimos dias como João Paulo 2º, física e mentalmente incapaz de lidar com suas atribuições, totalmente vulnerável no jogo de poder de sua sucessão. Ele precisava assumir as rédeas do processo e salvar alguma coisa dos rumos da Igreja nas últimas décadas. Não há ninguém em melhores condições do que aquele que renuncia alegando falta de condição. O que o aflige, tanto menos do que uma eventual (e remota) resposta reformista, é a atuação de grandes blocos de poder ultraconservadores no processo de sucessão: Opus Dei, Comunhão e Libertação, Legionários entre tantos outros. O resultado desse embate por causar rachas que agravariam a situação católica.
Existem questões internas prementes como a ordenação feminina, o fim do celibato -- no qual está inserido o problema da pedofilia -- e o diálogo ecumênico. Externamente, estão postos os problemas da política em relação aos métodos anticoncepcionais, a sustentação financeira da Igreja -- e seus constantes problemas bancários do Banco Ambrosiano à situação atual --, a sua política para universidades católicas e o relacionamento da hierarquia católica com os homossexuais. Não há de se esperar nada revolucionário do próximo papa, mas sem respostas efetivas para tanto, o catolicismo estará perdido em um curto espaço de tempo. O futuro pontífice é uma incógnita, poderia ser desde um reformista carismático do terceiro mundo até um tradicional papa europeu.
A crise católica, ressalte-se, está inserida no plano da crise do mundo que João Paulo 2º e Bento 16 ajudaram a construir. Nele, ironicamente, a Igreja se tornou um interessante instrumento político, mas não não conseguiu alcançar a importância cultural que desejava. Não foi sequer uma traição: o novo mundo -- neoliberal -- sequer achou espaço para si próprio nele e definha por conta própria, depois de sua gloriosa vitória. Não há nada mais moderno do que as técnicas de poder da Igreja e nada mais arcaico do que o Mercado, mas ambos se encontram na desdita. Nada mais curioso, aliás, que uma renúncia em pleno Carnaval, a festa que nasce da sátira ao luto público pela morte do imperador romano e na qual as leis estão suspensas para o deleite da carne.
A escolha do então cardeal Ratzinger para papa há oito anos não foi nenhuma novidade. Ele foi durante anos o braço direito do falecido papa João Paulo 2º, sobretudo quando o antigo pontífice definhou fisicamente. E, juntos, João Paulo 2º e o Cardeal Ratzinger representaram a dupla face da reação aos ventos reformistas do Concílio do Vaticano II e ao catolicismo social: enquanto o primeiro, carismático e político, era a face visível, Ratzinger, letrado e duro, era a face oculta -- a quem mais tarde caberia os dois papéis.
A João Paulo 2º cabia conquistar multidões, ser o rosto público simpático, enquanto para Ratzinger cabia o papel de tomar as medidas duras e dogmáticas para disciplinar a Igreja: e falamos de um projeto de apoio às reformas neoliberais, de inserção da Igreja no Globo baseada na diretriz Oeste x Leste (Capitalismo contra Socialismo) -- ignorando o Norte x Sul (a tensão entre países ricos e pobres) -- e uma visão sobre a pobreza assistencial e meramente caridosa. Dessa forma, os dois papados precisam ser vistos em perspectiva, dentro de um contexto no qual a Igreja larga o papel reformismo e coloca-se ao lado da reação financista dos anos 70: era preciso construir um novo mundo que tivesse espaço para a Igreja e não mais adapta-la às mudanças trazidas pelas conquistas científicas e tecnológicas -- além dos efeitos da luta por democratização política.
A Igreja, assim, perdia o ímpeto reformista assumido desde os tempos da encíclica Rerum Novarum, datada dos finais do século 19º, quando ela se inseriu no contexto de disputa da chamada questão social para garantir a própria sobrevivência. Sobreviver, agora, implicaria na tarefa de moldar o mundo e não mais ser moldada por ele. E a globalização move-se à base de Internet e, também, se assenta sobre a organização que anteviu a organização internacionalista burocrática, qual seja, a própria Igreja. Nesse sentido, o Vaticano, sob João Paulo 2º e Ratzinger, mostrou um empenho seletivo com a democracia. Houve pouco empenho na crítica às ditaduras militares latino-americanas -- João Paulo 2º, por exemplo, visitou Pinochet em um dos pontos altos da ditadura chilena --, ao contrário do que se via no Leste Europeu. O problema, por certo, não era o autoritarismo. Bento 16 seguiu a mesma fórmula nos últimos anos.
A crise do catolicismo brasileiro é grave. A Igreja brasileira se viu atropelada por dois motivos principais no período: o primeiro era a natureza progressista da elite intelectual católica brasileira, o que pôs a Igreja brasileira em rota de colisão com o novo Vaticano, resultando na derrota da primeira e na ascensão de uma nova elite -- por força do novo arranjo católico pelo mundo e não das circunstâncias internas; o segundo, que a estratégia Leste x Oeste do Vaticano ignorou a luta política e social travada no Brasil, na qual setores moderados e progressistas da Igreja local se uniam contra a ditadura e a pobreza, uma vez que a prioridade deveria ser apenas e tão somente o anticomunismo e a construção da fé e do ritual em um sentido meramente abstrato.
O resultado é que passadas algumas décadas do processo, vê-se uma laicização enorme da população brasileira e, ao mesmo tempo, um crescimento enormíssimo das igrejas protestantes neopentecostais. O número de católicos caiu em termos absolutos e relativos junto à população. Muitos dos que ainda se declaram católicos não são praticantes, sobretudo no que diz respeito aos mais jovens. Não importa muito se a figura de João Paulo 2º era, em si, popular em contraste com a de Bento 16, mas nem isso impediu o severo enfraquecimento do catolicismo romano no Brasil -- o que ficou mais patente, no entanto, nos últimos oito anos. Se havia renovação e uma grande inserção da Igreja na sociedade nos anos 70 é fato que isso, nem de longe, se repete hoje.
Como fato político, a força evangélica, ainda que difusa, é tão forte quanto o catolicismo, ainda que o último controle instâncias importantes do poder, favorecido por uma estrutura estatal-burocrática -- item que lhe permite ações coordenadas. Mas a mesma estrutura burocrática que favorece a influência da Igreja junto ao Estado brasileiro é aquela que é, também, insuficientemente flexível para adequar o catolicismo à nova realidade social e urbana do Brasil. O perfil do católico praticante brasileiro neste início de século 21º possui uma idade avançada, é branco, da antiga classe média. Nada mais destoante da realidade pobre e emergente do Brasil dos anos Lula.
Na América Latina, apesar da maioria católica e de um clero muito mais conservador do que o brasileiro (mesmo o atual), ocorrem escolhas recorrentes de governos de esquerda, raramente apoiados pela Igreja. Aliás, um fato digno de preocupação é que golpes de Estado recentemente tentados (como o da Venezuela) ou consumados (Honduras e Paraguai) na região tiveram o apoio da hierarquia católica -- no caso de Honduras, mesmo o papável progressista Oscar Maradiaga apoiou o golpe local. Na Europa em crise, a posição da Igreja sobre as políticas de "austeridade", o eufemismo achado para explicar as políticas de recuperação financiada pelos trabalhadores e mais pobres, é péssima e não ajuda na "reevangelização" da Europa como propunha Bento 16.
Bento 16 certamente não desejava viver seus últimos dias como João Paulo 2º, física e mentalmente incapaz de lidar com suas atribuições, totalmente vulnerável no jogo de poder de sua sucessão. Ele precisava assumir as rédeas do processo e salvar alguma coisa dos rumos da Igreja nas últimas décadas. Não há ninguém em melhores condições do que aquele que renuncia alegando falta de condição. O que o aflige, tanto menos do que uma eventual (e remota) resposta reformista, é a atuação de grandes blocos de poder ultraconservadores no processo de sucessão: Opus Dei, Comunhão e Libertação, Legionários entre tantos outros. O resultado desse embate por causar rachas que agravariam a situação católica.
Existem questões internas prementes como a ordenação feminina, o fim do celibato -- no qual está inserido o problema da pedofilia -- e o diálogo ecumênico. Externamente, estão postos os problemas da política em relação aos métodos anticoncepcionais, a sustentação financeira da Igreja -- e seus constantes problemas bancários do Banco Ambrosiano à situação atual --, a sua política para universidades católicas e o relacionamento da hierarquia católica com os homossexuais. Não há de se esperar nada revolucionário do próximo papa, mas sem respostas efetivas para tanto, o catolicismo estará perdido em um curto espaço de tempo. O futuro pontífice é uma incógnita, poderia ser desde um reformista carismático do terceiro mundo até um tradicional papa europeu.
A crise católica, ressalte-se, está inserida no plano da crise do mundo que João Paulo 2º e Bento 16 ajudaram a construir. Nele, ironicamente, a Igreja se tornou um interessante instrumento político, mas não não conseguiu alcançar a importância cultural que desejava. Não foi sequer uma traição: o novo mundo -- neoliberal -- sequer achou espaço para si próprio nele e definha por conta própria, depois de sua gloriosa vitória. Não há nada mais moderno do que as técnicas de poder da Igreja e nada mais arcaico do que o Mercado, mas ambos se encontram na desdita. Nada mais curioso, aliás, que uma renúncia em pleno Carnaval, a festa que nasce da sátira ao luto público pela morte do imperador romano e na qual as leis estão suspensas para o deleite da carne.
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