domingo, 31 de março de 2013

A Poética da Páscoa: Feliz Êxodo, Feliz Ressurreição

Ressurreição de Cristo -- Rafael
A história da Páscoa, a Passagem, é amplamente conhecida. Eis o povo hebreu, a multidão produtiva feita escrava na nascente civilização: eram, àquela época, cativos no Egito, sujeitos ao poder soberano do Faraó. Liderados por Moisés, escapam ao domínio do despotismo por meio da fuga. Está tudo lá. A potência produtiva dos pobres, o êxodo, a linha de fuga como expressão máxima de resistência, a debilidade congênita de (qualquer) ordem imperial -- todas parasitárias -- e, sobretudo, o desfecho na exceção verdadeira da multidão, no evento da miraculosa travessia do Mar Vermelho.

A Páscoa cristã simboliza a passagem do Cristo e sua vitória sobre a morte: a exceção constitutiva da biopolítica sobre a exceção destrutiva do biopoder. Nenhuma sentença de morte, nenhum juízo imperial sobre a vida e a morte, é capaz de, em último caso, negar a vida ou absorvê-la por completo. É o que me interessa no cristianismo, isto é, seu aspecto filosoficamente antifilosófico -- no sentido de oposto à tradição, seja ao platonismo, as fórmula ideais de exclusão e da submissão, ou à ditadura da Lei como fórmula derradeira da legitimação daquilo que, por sua natureza, é ilegítimo. 

O primeiro episódio em relação ao segundo é o eterno retorno daquilo que há de mais intenso, daquilo que força as coisas ao seu limite. A potência da multidão e o testemunho dado com o próprio corpo contra o Império. Fluxos livres, jeitos que não se deixam fazer su(b)jeitos e passam para além de esquemas. Nada mais belo. Retomar a Páscoa, em tempos de cólera, é fundamental. Seja por uma questão de continente ou por outra, de conteúdo. 

Spinoza, em um dos mais belos capítulos da história da Filosofia, nos ensinou que as Escrituras importam não porque são relatos precisos, mas porque mesmo em sua natureza imaginária possuem uma dimensão real. O imaginário é, portanto, real enquanto imaginário e, também, na realidade que as imagens não deixam de nos passar. O comum da religião, a possibilidade de comunhão entre o Homem e  Deus (ou Natureza). 

E religião não se confunde com "teologia", nunca se confundiu. A religião não é sinônimo de platonismo do mesmo modo que a política, e também a ciência, não estão livres disso, basta ver toda história do totalitarismo no século 20º.  Nem mesmo o monoteísmo é a expressão necessária do platonismo, basta ver inúmeros movimentos históricos, dos místicos essênios no tempo de Cristo ou mesmo a Teologia da Libertação (que era tanto mais uma libertação da teologia) acolhendo os pobres diante do terror das ditaduras militares na América Latina. 

Não é religião ou política (laicidade, modernidade ou ciência), mas um confronto aberto ao que desgraça ambas. É assumir uma fé prática, sem esperança ou medo -- ou crenças no futuro -- ancorada no amor incondicional, em uma paixão pelo real e pelo atual que nos permite resistir até o fim diante, até mesmo, do que há de mais desesperador. Uma fortaleza existencial e re-existencial, voltada ao que há de comum entre o eu e o todo, o nós e a natureza. Não ter medo de rezar enquanto a chuva cai para, mas não rezar por medo: encontrar o Paraíso que está aqui e agora, à nossa mão. A religião, mesmo o monoteísmo, como liberdade e potência.



    

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