Fernando Haddad assumiu a prefeitura de São Paulo no início deste ano. Sua eleição, ela mesma, foi decorrência de vários fatores, dentro e fora do PT, mas podemos citar dois fundamentais: Haddad ganhou a eleição por demonstrar o que quão vergonhoso e intolerável é a separação de São Paulo em duas -- uma central, rica e integrada ao mundo, a outra, periférica, pobre e isolada -- e, até mais importante do que isso, que a metrópole bandeirante só se tornará próspera novamente se resolver assumir sua brasilidade. Mais do que a conquista de uma capital, a vitória de Haddad também representa uma luz no fim do túnel da esquerda nacional, uma vez que o jovem prefeito paulistano é das raras cabeças a conseguir articular solidez intelectual com fluidez política.
Depois do agito fundante do governo do PT, tudo pareceu cair, das razões da escolha de Dilma às razões que Dilma escolhe, no culto ao gerencialismo, à técnica e à neutralidade administrativa. Agora seria a hora e a vez de quem faz as coisas acontecerem, objetiva e silenciosamente, sem muita discussão. Tudo com uma pegada popular e trabalhista. Mas Haddad é uma figura diferente. Capaz de raciocinar para além do cotidiano da administração pública, Haddad não deixa de ser pragmático, mas nem por isso deixa de se assumir de esquerda ou fazer uso do léxico marxista -- e não ter medo de falar em "recorte de classe" quando analisa a situação do Centro. O prefeito paulistano, enfim, ascende como a possibilidade de um futuro petista não resumido a ser mero mediador estatal-trabalhista da questão social.
Depois do agito fundante do governo do PT, tudo pareceu cair, das razões da escolha de Dilma às razões que Dilma escolhe, no culto ao gerencialismo, à técnica e à neutralidade administrativa. Agora seria a hora e a vez de quem faz as coisas acontecerem, objetiva e silenciosamente, sem muita discussão. Tudo com uma pegada popular e trabalhista. Mas Haddad é uma figura diferente. Capaz de raciocinar para além do cotidiano da administração pública, Haddad não deixa de ser pragmático, mas nem por isso deixa de se assumir de esquerda ou fazer uso do léxico marxista -- e não ter medo de falar em "recorte de classe" quando analisa a situação do Centro. O prefeito paulistano, enfim, ascende como a possibilidade de um futuro petista não resumido a ser mero mediador estatal-trabalhista da questão social.
Não são poucos os desafios que cercaram Haddad hoje: manter o equilíbrio dentro do PT municipal e dentro do PT nacional -- e entre ambos --, compor de uma forma aceitável com a base aliada, dialogar com os movimentos sociais e se relacionar com a iniciativa privada sem se deixar engolir por ela -- ou mesmo tocar os projetos que São Paulo precisa sem se dobrar aos ditames dos credores da enorme dívida (infinita?) pública paulistana. Agora, passados dois meses de sua eleição, o que, efetivamente, aconteceu em São Paulo? É uma pergunta que importa muito, não só pela gravidade da crise em que se encontra a maior metrópole do país, mas também pelos rumos de um projeto de esquerda no país.
Basicamente, o centro de gravidade da conversa é o próprio Centro da cidade, o distrito da Santa Ifigênia, único lugar do centro expandido no qual o atual prefeito paulistano ficou à frente de José Serra. Haddad pôs de lado o projeto Nova Luz de Kassab, que sequer saiu do papel, mas enfrentou forte resistência dos movimentos de moradia por prever uma reconstrução privatizante do Centro -- tanto que acabou interrompido pela própria justiça estadual. Agora, o novo prefeito empreenderá seu próprio (e ambicioso) plano de revitalização da região.
Haddad tem clareza sobre o quer para o Centro e isso é fundamental, conforme expôs em uma entrevista recente: o problema (crônico, gigantesco, aviltante) de congestionamento do trânsito em São Paulo não é meramente viário ou de transporte público, mas sobretudo de habitação, uma vez que os trabalhadores moram a dezenas de quilômetros de distância de onde trabalham (relação centro expandido-periferia), o que resulta em uma sobrecarga das vias. Tudo isso, dentro de um contexto no qual o centro da cidade se encontra desabitado e, em muitos casos, inabitável.
A sobrecarga em questão é tanto mais pelo excesso de deslocamento e não exatamente pela falta de vias ou de transporte. E isso não é questão de moradia, mas de habitação: é preciso que o Centro tenha vida. E nada disso está desvinculado de um "recorte de classe" como o próprio Haddad lembrou. O início de um ciclo virtuoso paulistano demanda a resolução da questão do Centro, isto é, transformando de ponto zero da implosão urbana local em centro irradiador de vida.
Há, no entanto, nuances importantes quanto à execução disso. E resta pouca dúvida de que Haddad prescindirá do apoio do governo Federal e mesmo do governo estadual -- o próprio Alckmin, em busca da reeleiçãom está pouco preocupado em comprar brigas com o Planalto e irá colaborar com a reforma --, uma vez que ele assume uma Prefeitura praticamente falida. A proposta de iniciar a reforma do Centro via Parcerias Público-Privadas (PPP's) não parece, à luz do tesouro municipal tão onerado, a saída mais barata. Porque PPP's exigem um aporte de dinheiro estatal antes de mais nada -- o que foi colocado, recentemente, pela urbanista Raquel Rolnik em seu blog, pondo dúvidas sobre a reforma do Centro na realidade pós-Nova Luz via PPP's, embora ela mesma tenha se mostrado favorável às linhas gerais do plano de reforma urbana do Centro.
Do outro lado, ainda na habitação, Haddad deu um golpe de mestre em Maluf e no PP, uma aliança que só lhe deu dor de cabeça até agora (em troca de alguns minutos a mais no horário eleitoral gratuito): ele nomeou para a pasta de Habitação um membro do PP, mas, ao mesmo tempo, desidratou a secretaria, ao congelar 98% de sua receita, além de ter passado suas principais atribuições para a Secretaria de Controle Urbano -- que está nas mãos de Paula Motta, arquiteta aliada do deputado federal Paulo Teixeira, um dos maiores articuladores de sua candidatura e das figuras mais ativas da esquerda petista.
Além disso, Haddad promoveu uma reforma importante e pouco observada. As subprefeituras perderam a função política -- ou mesmo militaresca -- que tinham há pouco, com Kassab, para ganhar um aspecto "técnico": arquitetos, urbanistas e engenheiros de carreira foram nomeados subprefeitos, com exceção do centro (Sé), o que marca uma tentativa de dar alguma função prática para a instituição da subprefeitura, um desafio à parte desde sempre. É claro, restam dúvidas importantes quanto à decisão de Haddad.
A ideia é colocar conhecedores da física urbanística nas subprefeituras, deixando a estratégica política centralizada na própria Prefeitura. Pode ser que, assim, elas finalmente cumpram sua função -- e aproximem a administração pública dos cidadãos -- ou isso resulte em uma nova forma de burocratização, não fisiológica por parte de um establishment partidário, mas de arrogados entendedores urbanísticos sobre cidadãos comuns em um caráter local. Tudo vai depender muito das determinações da Prefeitura e do espaço coletivo que ela, nessas determinações, esteja disposta a abrir para formulação de políticas públicas nas subprefeituras -- ou o quanto esteja disposta a vincular essas técnicos a ouvir as demandas cotidianas, sobretudo na periferia.
Some-se isso tudo à revisão de alguns contratos de serviços firmados pela gestão anterior e a relação com Kassab, e o esquema do PSD no município, azedou de vez. Kassab viu o Nova Luz ser jogado na lata do lixo, não conseguiu bancar o nome de ninguém para as subprefeituras e agora tem muitos contratos -- como o de iluminação pública e também de manutenção das bocas de lobo -- na mira da nova gestão. Isso tudo, depois de ter ensaiado um apoio a Haddad -- a contragosto do mesmo --, ter se aliado novamente ao PSDB em virtude da candidatura Serra e ter promovido uma "transição amigável".
Para a Cultura, Haddad trouxe um peso-pesado como o ex-ministro da Cultura de Lula, Juca Ferreira -- que, de cara, já se mostrou aberto ao diálogo, o que é positivo. A área cultural da cidade, sucateada e resumida quase só ao esquema empresarial da Virada, agradece, mas restam dúvidas também: é preciso pensar além da dicotomia entre uma cultura escrava da indústria cultural e uma reforma cultural; qualquer reforma está aberta a formas 2.0 de exploração da produção cultural. As críticas (aqui e aqui) do Passa Palavra ao coletivo da área cultural Fora do Eixo -- e sua presença gradual e constante na nova Secretaria de Cultura -- merecem atenção, por exemplo.
A crise que a metrópole paulistana é gravíssima. Mas foi a força da resistência viva em curso, da luta pela constituição de direitos que elegeu Haddad. E ele terá de honrar essa tradição. Não há luta mais nacional hoje, do que a constituição de São Paulo novamente em um lugar agradável para se viver -- o que exige o deslocamento local para longe dos (recorrentes) arroubos isolacionistas. É preciso mesmo domar mesmo a formidável máquina administrativa que governa o município, sem se deixar escravizar por ela no processo; a incursão de Haddad no comando da metrópole começa mesmo no gabinete, mas não faz ouvidos moucos para as ruas. Seu andamento é (e será), por certo, motivo de atenção ao longo dos próximos anos.
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