O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis protagonizou, há pouco, uma revolução científica copernicana: ele conseguiu, mediante implantes neurais, integrar os cérebros de dois ratos separados por milhares de quilômetros de distância, fazendo-os trabalhar em conjunto numa tarefa para a qual estavam adestrados individualmente. Uma pequena tarefa para dois ratos -- um nos Estados Unidos, na Duke University, outro no centro de pesquisas da brasileiríssima Natal --, um intenso feixe de luz para a humanidade.
A partir dessa tecnologia é possível conceber perfeitamente desde uma brainet -- uma rede de dados biológica e ligada por laços neurais -- até próteses inteligentes; a fusão homem-máquina chega ao ápice movendo-se na direção da constituição de uma inteligência coletiva e da superação do binarismo próprio à informática (o que cumpre, cá entre nós, uma antevisão deleuziana mesmo sem querer). Enfim, só uma coisa dessas para fazer este humilde blogueiro se mover depois de alguns dias de letargia -- causada pela enxurrada de factoides e más notícias que se tornaram a nossa vida.
E Nicolelis, por si só, já valeria um post. Lembro bem, quando há uns cinco anos atrás, li uma entrevista da Caros Amigos com aquele cientista peculiar e sonhador, que rompia a figura recorrente dos homens da ciência brasileira: se alguém esperava um elitista burocrata da pesquisa, distanciado de qualquer sonho maior, do seu tempo out de sua gente, deu com os burros n'água. Lá estava um homem apaixonado por uma ciência a serviço do homem e do sonho, uma espécie de Santos Dumont do século 21º. Nicolelis, aliás, não é dumontiano apenas por colocar a ciência para além do vazio da técnica moderna, mas também por pensar uma integração homem-máquina à moda de Dumont -- como ele mesmo expõe na entrevista em questão.
Uma coisa que as pessoas esquecem é que Dumont não se matou apenas porque o avião foi usado para a guerra, mas porque isso era apenas um desdobramento do desvirtuamento do conceito de sua invenção; o 14 Bis e suas invenções subsequentes eram operadas não por um manche ou um controle, mas por cordas amarradas ao terno do piloto. O voo humano para Dumont, portanto, não era uma consequência da mediação técnica motorizada, mas sim uma integração do corpo humano a uma extensão mecânica.
O fundamento ontológico do voo dumontiano residia, empiricamente, num devir-pássaro do homem e não na sujeição da máquina técnica pela máquina homem. Sim, os aviões e jatos contemporâneos são tecnologicamente muito mais avançados do que os inocentes rebentos de Dumont, mas ontologicamente eles são criaturas primárias em vista do 14 Bis. Seus estatutos estão aquém de uma integração verdadeira entre máquina e piloto: nas aeronaves de hoje, há dois, o piloto e máquina, nas de Dumont havia a máquina-piloto imanente.
De tal sorte, o aprimoramento dos aviões nos termos dumontianos teria levado menos ao jato de guerra, e mesmo menos ao próprio avião, mas sim a um agenciamento satisfatório e geral entre homem e máquina. Próteses sensíveis e inteligentes, uma ergonomia renovada. Algo que só é possível pelo desejo sem limites de Nicolelis em um tempo ingrato: hoje, está na moda ser um cético atolado num niilismo enferrujado, o qual é vendido como erudição. Quem pensa ou faz o contrário é "messiânico". Nicolelis, para o azar dessa gente, é o maior da sua geração e não é nada disso: seja no amor pelo seu Palmeiras -- em coberturas antológicas dos jogos do Palestra pelo twitter -- ou na defesa de uma democracia de verdade, o que exige a aplicação da ciência como instrumento de transformação social.
As reações a Nicolelis vão de acusações estranhas até a má vontade geral da mídia, o que é natural, em se tratando de um cientista assumidamente ateu e de esquerda. Algumas dessas "acusações estranhas" podem ser vistas no recente manifesto "eu apoio a ciência brasileira", de curioso cunho nacionalista, que insinua desonestidade intelecutal de sua parte, o que foi prontamente rebatido, só para depois terminar numa relativização da acusação.
Sim, Nicolelis teve a ideia antes de todo mundo e os méritos pelo que aconteceu ontem é dele e de sua equipe em Duke; ter testemunhado a apresentação de um modelo, ainda em desenvolvimento, enquanto ele pesquisava na área há anos não muda isso; dizer que o conhecimento que deu base para tanto ser comum na área (como se algum não fosse) é pueril, como se criar não fosse mixar conhecimentos comuns -- o que nem é exatamente o caso aqui, isto é, tratou-se de uma pesquisa coincidente que não resultou em parceria e, no fim das contas, um dos lados acabou concretizando a hipótese.
Nicolelis esteve longe de ter qualquer apoio fortíssimo do Estado brasileiro -- e a ciência deve ficar além de corporativismos nacionais. O que interessa aqui, sobretudo, é que fez-se inovação científica de uma maneira cientificamente inovadora de pensar a ciência; as criações em questões podem ter aplicações variadas, mas voltam-se para tornar um mundo melhor e dão a chave para tanto.
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