foto estilizada do ministro grego Varoufakis em página em sua homenagem |
No domingo, será realizado um plebiscito na Grécia, após convocação do próprio governo e votação do parlamento, no qual será avaliada a proposta da Troika (FMI, União Europeia e Banco Central Europeu) de aprofundamento da política de austeridade, com mais cortes sociais. Trata-se, pois, do capítulo decisivo de uma novela que se estende há anos -- e que temos acompanhado aqui desde seus primórdios.
O governo do Syriza, encabeçado por Alex Tsipras e seu superministro da economia, Yanis Varoufakis (qual ministro da economia do mundo é capaz de andar no meio deste jeito?), se elegeu com uma agenda moderada e serena questionando um "plano de resgate" que, na verdade, não só não teve nenhum resultado econômico algum como, ainda, agravou a situação com graves consequências para a sociedade e a política da Grécia.
Ainda assim, o poder europeu, depois de conceder alguns meses para a Grécia, não recuou em nada e, não só, ainda voltou com a carga toda. Com a expulsão de Varoufakis da reunião entre os ministros da economia do bloco, a situação chegou ao limite. Os líderes gregos, pois, não aceitaram a imposição e propuseram uma surpreendente consulta popular, à qual as autoridades europeias se opuseram de pronto, dizendo-se "traídas" (como um Juncker).
Eis que consulta popular foi convocada pelo próprio governo, nos termos do art. 44 da Constituição da Grécia, apesar de protestos da oposição que não consideraram a atual situação como "matéria social relevante" ou "questão crucial para a nação", mas sim uma mera questão fiscal -- matéria cuja proposição de consultas populares é vedada por aquela Lei Maior.
A declaração dos partidos pró Europa -- que hoje equivale simplesmente a se dizer pró Troika -- revelou não apenas o tamanho, mas o exato tipo da perversidade que os domina -- e, por extensão, seus pares em cargos no Eurobloco --; é preciso normalizar a situação, o que se parece uma grave crise deve parecer uma questão fiscal -- ao mesmo tempo que vendem o caos como resultado do plebiscito.
No fim, o Syriza fez valer sua maioria parlamentar, aprovou a consulta no parlamento -- contra os partidos europeístas e, ainda, sem a ajuda dos comunistas -- e, depois, a tentativa de barrar na justiça a sua realização foi rejeitada.
Erradamente chamado de "referendo" pela mídia brasileira, o termo técnico correto para a votação que ocorrerá é plebiscito, uma vez que o povo grego tomará a decisão -- e não ratificará ou vetará uma decisão ou lei já tomada ou feita, o que seria um referendo.
Em grego, sublinhe-se, o termo é δημοψήφισμα (demopsifisma, literalmente, "resolução popular"), o que serve tanto para plebiscito quanto para referendo, muito embora não haja hipóteses de referendo na Lei Maior da Grécia (no sentido da Constituição brasileira).
Se a oposição pró Europa tentou normalizar a ebulição, e dilui-la em boas doses de medo, por outro lado, o Syriza conseguiu transformar uma imposição europeia em uma escolha para os gregos. Mesmo que responder sim -- no caso concordar com o "plano europeu" -- venha a ser a decisão autônoma de cometer suicídio.
Multidão se aglomera na frente do parlamento grego para apoiar o Syriza |
Nada disso, é óbvio, interessa aos líderes europeus, que esperavam cooptar ou obrigar o Syriza a aplicar seu maravilhoso plano. Na falta disso, parecem dispostos a simplesmente pôr o governo grego de joelhos e, assim, forçar uma mudança de governo.
Não à toa, uma vez convocado o plebiscito, a Europa produziu uma blitz sobre os bancos gregos, o que forçou o governo a decretar uma semana inteira de feriados bancários, na qual os gregos só poderiam sacar, de forma igualitária, 60 euros por dia.
Assombrar os gregos com um colapso bancário, às vésperas da votação, obviamente é quase um ato de guerra. E, assim, se joga um peso enorme sobre a decisão grega. Em resumo, o gesto acrobático de Tsipras foi duramente retaliado. A Troika não é feita de amadores.
Agora, o Syriza terá de tocar uma campanha à base do corpo a copo, do sacrifício e da entrega. A seu favor, ele tem a desmoralização dos líderes pró-Europa e de seus partidos na Grécia, contra, o medo que toma a população grega.
Votar Oxí (não) é assumir, a partir da negação, um começo de afirmação de si mesmo.O "não" como sombra ontológica da afirmação das diferenças pode ser, ao menos, um começo, um começo que sempre vem com dificuldade: nestes momentos, ele se torna um potencial sim à outra coisa.
Para os gregos, a exclamação político Não, inclusive, tem um significado histórico salutar, tendo a data comemorativa. 28 de Outubro é Dia do Não na Grécia em referência a um célebre episódio da Segunda Guerra Mundial, quando o ditador grego Ioánnis Metaxás se negou a abrir suas fronteiras para as tropas fascistas de Mussolini. A resposta ao pedido indecente foi um lacônico não.
O resto da história se sabe: Os italianos tentaram invadir a Grécia, foram surpreendentemente rechaçados, e só depois, com envolvimento direto das tropas alemãs, as forças do Eixo conseguiram se estabelecer na península grega -- não sem enfrentar a resistência de destemidos partisans.
Aquele episódio serviu para ilustrar uma certa constância na história do atual Estado grego, um país com quase a mesma idade do Brasil desde sua independência do Império Otomano: Se o povo e românticos como Byron lutaram pela independência grega face aos turcos, depois só se repetiu, por parte da Europa e seus aliados nas elites gregas, o misto de covardia e intervenção.
Monarcas estranhos aos gregos foram nomeados, golpes foram dados, guerras civis deflagradas e, hoje, estamos diante de um sufocamento de novo tipo. A civilizada Europa se repete: entre a covardia e um instinto muito suspeito de destruição contra o que é, aliás, seu berço cultural -- o que se esconderia sob a vontade de arrasar justo a Grécia? O vazio histórico dos líderes europeístas se revela com tal gesto nada sutil.
O fato é que há uma união dos interesses do setor financeiro, e sua fome insaciável, a pior geração de líderes políticos europeus desde os anos 1930 e a afirmação, cada vez mais acentuada, de que a União Europeia é só um arranjo tecnocrático; tal união está minando mais do que economias, mas sim a própria possibilidade de democracia no continente.
Ainda que a superação do Estado nação seja devida e esperada, e o ideal de Europa belíssimo, o fato é que, na prática, a estrutura europeia real não é democrática como, ainda, é refratária a esta ideia fantástica. O que há de democrático está nos Estados de cada país europeu, em virtude do que a larga tradição de lutas impôs a cada Estado europeu, sobretudo no seu oeste.
A União Europeia já nasce, entretanto, livre de tudo isso. Caso a Europa se tornasse hoje uma federação em torno da estrutura de poder de Bruxelas, o resultado seria um regime muito mais fechado do que o americano e, por certo, socialmente mais inclemente do que o chinês ou o russo.
De
todo modo, não é só sobre a Grécia ou a Europa que este processo trata,
mas sobre o mundo. A capitulação grega -- que se vier, virá sublime na
forma de um sereníssimo suicídio -- diz respeito ao mundo todo, a uma
intrincada rede global erigida, inclusive, sobre muitos paradigmas,
termos e invenções gregas.
Não à toa, a Europa se organiza a favor do não grego bem como intelectuais do porte dos Prêmio de Nobel de economia Paul Krugman e Joseph Stiglitz e, pasmem, até um Habermas, o eterno cândido do europeísmo também classificou a política europeia para a Grécia como escandalosa.
Se faltou realismo para o Syriza para, desde o início de seu governo adotar uma estratégia mais dura, que concebesse a possibilidade de saída do Euro, ou se sobrou ingenuidade e voluntarismo em propor esse plebiscito não sabemos, mas hoje o futuro de todos nós está lá.
A crise, termo jurídico para julgamento em grego clássico, foi incorporado como metáfora na medicina: a hora em que o médico pode, ou deve, saber se o paciente vai morrer -- e como intervir. E essas metáforas, dando voltas, se fazem verdadeiras agora.
Quis o destino que o caminhar das coisas não só se agravasse como, ainda, caminhasse para uma trilha de variadas formas de sacrifício cristão (em sua potência forte e sua potência fraca): o da entrega da carne à multidão, como fez o Syriza, ou da mortificação pura e simples como propõem seus adversários. Mas como já dizia um poeta russo:
Enquanto isso, o destino seguia nossa trilha
Como um louco com uma navalha na mão.
Como um louco com uma navalha na mão.
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