Manifestantes comemoram a vitória na Praça Syntagma (Via Principa Marsupia) |
Durante todo dia de ontem, o mundo manteve os olhos fixos no plebiscito grego. Os gregos diriam Oxi (Não) ou Nai (Sim) para a "proposta" da Europa -- na verdade, uma ordem transformada em proposta quando os líderes gregos, em um momento de inspiração, resolveram, fazer desta objeto de uma consulta popular. E o Não ganhou por larga margem, mais de 61%, em um pleito cuja participação foi semelhante à das eleições parlamentares do início do ano.
Pois bem, mal foram abertas as urnas e a suposta vitória do Sim, apontada pelos principais institutos de pesquisa gregos ao longo da semana, se desmanchou no ar; antes, os mesmos institutos já falavam, em "vitória apertada" do Não nas suas pesquisas de boca de urna, algo entre 54% e 52%, coisa que não se confirmou. Depois de uma semana de blitz midiática, terror bancário e pesquisas no mínimo falhas, os gregos deram um retumbante não contra a opressão Europeia.
A vitória, apurada às 2:51 desta segunda-feira em Atenas (21:51 de domingo no horário de Brasília), está muito além dos 36% de votos que o Syriza obteve nas eleições de Janeiro ou dos pouco mais de 40% que sua coalizão recebeu. Mesmo somados os votos obtidos em Janeiro por todos os partidos que apoiaram o Não, eles não chegam a 50%, o que determina que houve um acréscimo substancial de apoio popular à causa antiausteridade -- tanto que Antonis Samaras, ex-premiê e líder da oposição, renunciou ao seu posto.
Ocorre que pela manhã de hoje em Atenas, madrugada no Brasil, surge uma novidade quando os partidário do Não mal haviam se retirado das comemorações na Praça Syntagma, um fato surpreendente aconteceu: Yanis Varoufakis, o superministro da economia do Syriza, renunciou.
Varoufakis, literalmente um grego entre romanos, perturbava os euroburocratas, seja por sua formação mais próxima da heresia anglo-americana de esquerda (e seus think tanks) ou por sua figura protagonista na mídia. Há pouco mais de uma semana, ele foi expulso pelos seus pares da reunião dos ministros da economia do bloco, quando as normas costumeiras determinam que deve haver unanimidade sobre certas decisões e presença de todos os pares, gerando assim parte do imbróglio que motivou a convocação de consulta popular.
Trata-se, pois, de uma renúncia bastante estranha e inesperada, uma vez que segundo o agora ex-ministro -- que chegou a dar coletiva de imprensa depois da vitória do Não -- sua decisão se deu porque o premiê grego, Alex Tsipras, aceitou que ele não estaria presente na reabertura das negociações, uma vez que havia indisposição com seu nome.
Na prática, o "gesto de boa vontade" para com a Europa de Tsipras parece ilógico: depois de ter vencido o plebiscito, ele aceitou um dos vetos europeus que causaram a própria convocação da consulta.
Será que o gesto de Tsipras dará certo? Ou melhor, a forma como o Syriza significa a importância dessa atual União Europeia faz sentido? Será que a negociação que Tsipras imagina irá mesmo ocorrer? Será que diante da vitória de ontem, não sustentar seu corpo ministerial, sobretudo seu principal ministro, faz algum sentido?
O ponto é que o Syriza supõe que venceu o plebiscito de ontem -- com uma votação muito acima da que o levou ao poder em Janeiro -- com uma promessa de reforma da Europa, promessa da qual não pode se desvencilhar, o que é mais uma autoilusão do que uma ilusão que o eleitorado nutre a respeito dele: as pessoas querem emprego, dinheiro para se alimentar etc.
Se existe alguma preferência pelo Euro e pela ideia de europeísmo, isto se dá pragmaticamente pela forma como isso poderia melhorar a vida dos gregos. Se hoje a Grécia abrisse mão do Euro e as coisas melhorassem, obviamente, ninguém iria se opor a isso.
Entre a Europa ideal e o que é a Europa hoje há, pois, um profundo abismo. E a crise econômica, que levou os governos a gastarem o que não tinham para resgatar os bancos sem garantias, apenas revelou, e não transformou, o rosto verdadeiro do comando europeu: tecnocrático, desumano e implacável.
Se com o tempo, os Estados nação europeus foram democratizados à força -- e muitas instituições multitudinárias e se cristalizaram no funcionamento da máquina --, quando o "sonho europeu" foi edificado, com sua bela bandeira e seu lindo hino, tomando aos poucos atribuições nacionais, as novas instituições europeias já nasceram imunizadas das reivindicação plebeia.
Se para um Rancière, os nossos sistemas são um misto de democracia com oligarquia, a estrutura de Estado europeia, ao contrário do que as lutas determinaram nos planos nacionais, já nascia com sobrepeso para as castas burocráticas, financeiras e afins.
O processo desencadeado na Europa ruma, pois, não para um pós-Estado, mas para uma forma de Estado plurinacional, coisa que a Espanha, Bélgica ou Reino Unido já são, mas certamente dando mais voz às suas sociedades civis e às suas minorias nacionais.
Não há novidade alguma nesse "projeto europeu" -- e menos ainda quando os tecnocratas continentais se aliam com banqueiros para se retroalimentarem, fazendo com que o futuro Estado europeu se pareça mais com uma União Soviética, só que sem qualquer conteúdo revolucionário.
O gesto de Varoufakis sobre Tsipras é mais simples, embora potente: fora do governo, depois de sair de cena em uma condição vitoriosa, ele joga luz e peso sobre a decisão pragmática de seu premiê. Varoufakis sai fortalecido e Tsipras resta sob pressão do que ele está disposto a fazer nessas negociações -- e já não é a primeira vez que Tsipras se mostra pronto a vacilar. Existe aí uma disputa sobre métodos e formas para se chegar ao mesmo objetivo.
Varoufakis, como um cavalheiro, abre espaço em prol do coletivo, mas também obriga que essa mesma coletividade assuma seus compromissos. Um gesto de (auto)entrega sacrificial semelhante ao da proposição do plebiscito. E de fato, até agora, o Syriza ganha de 7x1 no desmonte dos mitos construídos pelos oligarcas europeus.
De todo modo, entre a posição de um e outro, existe a armadilha entre a Europa que é, a que deveria ser e a que é possível. Todos os gestos éticos do governo grego são golpes duros contra uma estrutura de poder que, contudo, ciente da derrota nesse âmbito, aposta na estratégia do medo quase que exclusivamente para atender propósitos transcendentais -- ou menos até do que isso, interesses pequenos que vão desde um cargo até o pequeno poder.
Como já alertou o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, há vida se houver ruptura com o Euro, fato que é muito mais um tabu para o próprio Syriza do que para a população grega ou para a ciência econômica.
Se o Syriza se mantiver forte, usar com sabedoria a vitória de ontem e souber que a Europa unificada é um meio, e não o fim, das lutas democráticas, ele poderá vencer ou, no seu sacrifício, reverter um quadro que parecia certo -- mas para isso precisará adotar planos de contingência certamente muito mais duros do que os atuais. Os próximos dias serão decisivos.
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