(Poster do Filme: A bela Margarita Terekhova, a Mãe)
Honestamente, creio que todas as obras artísticas são, de certo modo, autobiográficas. É o nosso ser que está refletido na nossa arte, não apenas o nosso conhecimento e a nossa forma de ver o mundo como também as nossas experiências transcritas por meio de símbolos. No entanto, há obras onde isso é deliberado - e é isso que convencionamos por autobiográfico. É nessa categoria na qual se encontra a película tarkovskiana Zerkalo ("espelho" em russo) - entretanto, essa obra é mais conhecida no Brasil pelo seu título em inglês, "Mirror", o que é curioso e sintomático.
O espelho do título, no fim das contas, se refere ao processo onde a vida do próprio cineasta acaba transposta para o plano especular: Da realidade "concreta" para o o lado inverso, para o cinema. Se em Andrey Rublyov temos uma alegoria onde o próprio Tarkovsky, usando a máscara do célebre artista medieval e santo, faz um manifesto em favor do valor transcendental da arte - inclusive como forma de romper com a opressão política denunciada -, aqui ele volta à sua própria infância para, da discussão da sua relação com sua mãe e os traumas de sua infância, trazer à baila a questão da maternidade e a infância. Nas palavras do próprio autor:
Porém, na medida em que a película avança, percebe-se que o debate sobre a maternidade e a infância, por mais centrais que pareçam, servem apenas como meio para se refletir sobre a intrincada questão da espiritualidade do homem contemporâneo - na verdade, ambas se apresentam enquanto meras alegorias para se chegar a tanto. Essas duas alegorias centrais, diga-se, não foram fruto do nada: As duas foram muito caras para a construção da própria espiritualidade do autor e a sua busca pelo transcender por meio da experiência sensível gerada pela arte; foi a figura forte - e cristianíssima - de sua mãe na sua infância que moldaram muito do artista que ele veio a ser.
O filme também não deixa de ser político: Nele, há cenas preciosas como a da crítica à censura soviética, quando Natália (A Mãe, interpretada magistralmente por Margarita Terekhova) corre desesperada para uma tipografia por temer que determinada palavra aparentemente tivesse sido publicada - também temos as cenas da Segunda Guerra e mais tarde flashs sobre a própria tensão na fronteira sino-soviética, uma visão verdadeiramente apocalíptica.
A espiritualidade incontida do jovem Alexei (Ignat Daniltsev) , filho de Natália - e a máscara com a qual Tarkovsky intervém na sua Obra -, se mostra desde os constantes incêndios que ele provoca - o fogo enquanto símbolo da presença misteriosa de Deus - até as experiências paranormais pelas quais ele passa - ou pelos intrincados quadros oníricos que se apresentam.
A figura paterna, sempre distante, se apresenta como uma voz distante que raramente revela sua imagem e se configura como uma antítese à figura materna - sempre tão próxima e tão terna - e, ironicamente, as poesias de Arseny Tarkovsky, pai do autor, são lidas ao longo do filme num exercício de uma metalinguagem muito a frente de seu tempo; no fim das contas, a personalidade de Alexei/Tarkovsky é forjada da tensão dialética entre a figura paterna e a figura materna - e à sombra de uma latente síndrome de Édipo.
Enfim, é mais uma assombrosa obra do mestre russo - para ser vista e revista.
O espelho do título, no fim das contas, se refere ao processo onde a vida do próprio cineasta acaba transposta para o plano especular: Da realidade "concreta" para o o lado inverso, para o cinema. Se em Andrey Rublyov temos uma alegoria onde o próprio Tarkovsky, usando a máscara do célebre artista medieval e santo, faz um manifesto em favor do valor transcendental da arte - inclusive como forma de romper com a opressão política denunciada -, aqui ele volta à sua própria infância para, da discussão da sua relação com sua mãe e os traumas de sua infância, trazer à baila a questão da maternidade e a infância. Nas palavras do próprio autor:
"Este filme é sobre as mães, sobre sua vida difícil, cheio de esperanças, desgraças e felicidades. É também sobre a nossa infância e sobre a angústia que ela nos deixou"
Porém, na medida em que a película avança, percebe-se que o debate sobre a maternidade e a infância, por mais centrais que pareçam, servem apenas como meio para se refletir sobre a intrincada questão da espiritualidade do homem contemporâneo - na verdade, ambas se apresentam enquanto meras alegorias para se chegar a tanto. Essas duas alegorias centrais, diga-se, não foram fruto do nada: As duas foram muito caras para a construção da própria espiritualidade do autor e a sua busca pelo transcender por meio da experiência sensível gerada pela arte; foi a figura forte - e cristianíssima - de sua mãe na sua infância que moldaram muito do artista que ele veio a ser.
O filme também não deixa de ser político: Nele, há cenas preciosas como a da crítica à censura soviética, quando Natália (A Mãe, interpretada magistralmente por Margarita Terekhova) corre desesperada para uma tipografia por temer que determinada palavra aparentemente tivesse sido publicada - também temos as cenas da Segunda Guerra e mais tarde flashs sobre a própria tensão na fronteira sino-soviética, uma visão verdadeiramente apocalíptica.
A espiritualidade incontida do jovem Alexei (Ignat Daniltsev) , filho de Natália - e a máscara com a qual Tarkovsky intervém na sua Obra -, se mostra desde os constantes incêndios que ele provoca - o fogo enquanto símbolo da presença misteriosa de Deus - até as experiências paranormais pelas quais ele passa - ou pelos intrincados quadros oníricos que se apresentam.
A figura paterna, sempre distante, se apresenta como uma voz distante que raramente revela sua imagem e se configura como uma antítese à figura materna - sempre tão próxima e tão terna - e, ironicamente, as poesias de Arseny Tarkovsky, pai do autor, são lidas ao longo do filme num exercício de uma metalinguagem muito a frente de seu tempo; no fim das contas, a personalidade de Alexei/Tarkovsky é forjada da tensão dialética entre a figura paterna e a figura materna - e à sombra de uma latente síndrome de Édipo.
Enfim, é mais uma assombrosa obra do mestre russo - para ser vista e revista.
Vejo que o amigo foi picado pela mosca tarkoskiana... (é inevitável, acontece aos apreciadores da sétima arte, mais cedo ou mais tarde..rs.).
ResponderExcluirAchei maravilhosa a abertura do artigo ("creio que todas as obras artísticas são, de certo modo, autobiográficas. É o nosso ser que está refletido na nossa arte, não apenas o nosso conhecimento e a nossa forma de ver o mundo como também as nossas experiências transcritas por meio de símbolos"), bem como a análise que se segue -sensível e atenta, demarcando alguns pontos essenciais.
De todos os filmes de Tarkovsky, "Espelho" é o que mais me impressiona em termos imagéticos - não só pelo esmero na composição interna dos quadros mas pela fruição entre estes na montagem -, embora, como geralmente acontece na minha relação com o cinema do diretor, o ritmo da narrativa me agaste um pouco.
Mas há sequências belíssimas (como a da foto) e o desempenho de Margarita Terekhova, como você mesmo observa, é esplêndido, com uma incrível capacidade expressiva facial e corporal.
Um abraço,
Maurício.
Grande Maurício,
ResponderExcluirFico extremamente feliz com os elogios de alguém que entende tanto de cinema quanto o amigo - ainda mais eu, um humilde espectador da sétima arte.
A obra de Tarkovsky tem um significado para a Rússia parecido com o que Chico Buarque produziu no Brasil da Ditadura - ambos produzem uma obra que faz uma crítica profunda, mas extremamente sutil e simbólica devido às condições nas quais eles trabalharam.
Creio que muito da obra de Tarkovsky, seja na forma ou matéria, se explica apenas se analisada em paralelo com a história da URSS contemporânea às películas - inclusive no que toca esse contemplativismo pós-cristão que implica nessa forma de narrar, em muitos momentos, propositalmente agastante mesmo.
abração
Hugo,
ResponderExcluirVocê disse algo sobre o significado do fogo. E quanto aos outros elementos, ar e água, que aparecem? Lembro-me que em Nostalgia há muito fogo, ar e água... mas o elemento terra aparece menos.
Maurício,
Quando se trabalha com bastante metáfora e simbolismo no cinema, não é até bom um ritmo lento, dar um tempo maior para o espectador 'pegar' a mensagem?
Luis,
ResponderExcluirDe fato, essa é uma excelente questão, eu acabei dando mais atenção para o fogo por conta de seu óbvio significado bíblico que em dado momento vem à tona num diálogo de Natália com seu ex-marido. Em muitos momentos o vento parece simbolizar a espititualidade mesmo - aquilo que se vê, mas se sente -, no entanto, não consegui apreender o sigficado da água - bem frequente nas cenas onde há algum incêndio, alguma ideia? Já as referências telúricas realmente inexistem - talvez pela ideia de que a terra se contrapõe ao espiritual, em suma, é o mundano.
Hugo,
ResponderExcluirÁgua, em geral, é transição, passagem. Se lava com água, se benze com água. Em quase todas as religiões a água tem uma importância simbólica muito forte, vide o ritual de se purificar nas águas sagradas do Ganges.
No filme Fonte da Donzela do Bergman (do qual Tarkovsky era fã confesso, aliás) a água tem esse papel, de representar passagem - em vários momentos os personagens cruzam um córrego, coincidindo com a evolução da trama, a transição das cenas, os pontos de virada.
Mais um belo texto, Hugo. Agora fiquei com vontade de rever este filme e procurar outros do Tarkovsky que eu ainda não vi.. haha
ResponderExcluirLuis,
ResponderExcluirO significado desse simbolismo deve ir por aí mesmo, agora que você colocou a sua ideia, faz sentido.
Rodrigo,
Obrigadão, meu velho - que bacana que o meu post conseguiu produzir esse efeito! O próximo Tarkovsky que eu vou assistir é Stalker.
abraços coletivos