domingo, 12 de junho de 2011

Mino Carta e a Síndrome de Moby Dick

"The White Whale swam before him as the monomaniac incarnation of all those malicious agencies which some deep men feel eating in them, till they are left living on with half a heart and half a lung. That intangible malignity which has been from the beginning; to whose dominion even the modern Christians ascribe one-half of the worlds; which the ancient Ophites of the east reverenced in their statue devil; -- Ahab did not fall down and worship it like them; but deliriously transferring its idea to the abhorred white whale, he pitted himself, all mutilated, against it. All that most maddens and torments; all that stirs up the lees of things; all truth with malice in it; all that cracks the sinews and cakes the brain; all the subtle demonisms of life and thought; all evil, to crazy Ahab, were visibly personified, and made practically assailable in Moby-Dick. He piled upon the whale's white hump the sum of all the general rage and hate felt by his whole race from Adam down; and then, as if his chest had been a mortar, he burst his hot heart's shell upon it."


Muitas pessoas não leram Moby Dick, clássico do imortal Melville, mas certamente são poucos que desconhecem a lendária saga do Capitão Ahab, um delirante paranoico que dedica sua vida a perseguir, a bordo do mitológico baleeiro Pequod, a cachalote branca que empresta seu nome ao livro e que um dia lhe decepou a perna. É uma obra fantástica, sem dúvida. Moby Dick é muito mais do que uma mera cachalote: pouco nos interessa sua existência por ela mesma, mas sim a interação dela com um investimento do desejo de tal ordem, por parte de Ahab,  da qual decorre uma assombrosa relação diferencial, que torna a perseguição à baleia a razão transcendental pela qual aquele navio e os pobres-diabos dos seus tripulantes são guiados. Moby Dick é o delírio que serve para justificar racionalmente aquela jornada incessante e suicida; um ser objetificado inconscientemente enquanto falta para que a vida atormentada - e interditada - de Ahab tenha uma válvula de escape: que não é encontrar a baleia, mas ter uma causa para cruzar os mares e ainda ter como personificar os seus demônios interiores.

Nessa nossa atribulada contemporaneidade, um fenômeno que só poderia ser descrito como Síndrome de Moby Dick tem se tornado cada vez mais recorrente: no lugar de cachalotes, deliramos inúmeros outros fantasmas que nos servem ao mesmo tempo de impulso e justificativa para jornada persecutórias que, no fim das contas, servem tão somente para preencher o vazio de uma vida (cada vez mais) capturada pelos dispositivos de controle - nos quais, de certa forma, acabamos nos convertendo, seja na escala molar ou na molecular. Só isso pode explicar a jornada persecutória absurda na qual se embrenhou o lendário jornalista ítalo-brasileiro Mino Carta, idealizador, editor e proprietário da CartaCapital, nas páginas da sua revista quando eclodiu o caso Battisti: editoriais furiosos a favor da extradição de seu compatriota se tornaram recorrentes e, de repente, Battisti converteu-se não apenas em uma sub-humana personificação do mal como também na onipresente pauta daquele seminário, movimento seguido de uma campanha de desmoralização das autoridades e grupos que defendiam a negação da extradição dele até que, de repente, tudo se tornou ensejo para se atacar Battisti, do escândalo sexual de Strauss-Kahn em Nova Iorque à queda de Palocci da Casa Civil.


Em seu mas recente editorial na CartaCapital, Mino, ao proclamar que o governo Dilma finalmente começaria agora que Antônio Palocci caiu da Casa Civil - como se uma coisa tivesse relação com a outra -, acaba mudando completamente o foco do texto, em pleno  quarto parágrafo de um total de quatorze, para voltar a falar de sua cachalote branca, Battisti, furioso por ela ter novamente escapado novamente à fúria de seu arpão: o STF, mesmo que da forma precária e periclitante que expusemos por aqui, acabou por determinar a soltura do ex-ativista italiano, cuja extradição já havia sido negada pelo Presidente Lula em seu derradeiro ato como governante. De repente, tudo se tornou uma grande conspiração na qual, por certo, políticos petistas supostamente envolvidos com o banqueiro Daniel Dantas, acusados sem prova alguma pelo editorialista, teriam determinado a libertação de Battisti - como se, aliás, Gilmar Mendes, relator do processo e autor de surreal voto pró-extradição de Battisti no julgamento que decidia sobre sua soltura, tivesse más relações com aquele notório financista. De repente, Mino deveio Ahab, a Carta Pequod e sua redação deveio sua tripulação.


A fuga sem fim de Battisti se explique: para cada fuga esquizofrênica pelo mundo existe uma perseguição delirante e infinita que a cause; a jornada que o conduziu para o nosso país é não somente o elo transversal entre o estado de exceção brasileiro - que chegou a ser declarado nos tempos da Ditadura Militar - e o italiano - que é caso de livro no que toca a maneira como exceção e regra co-habitam a mesma Casa -, mas também entre os dois consensos políticos de ambos os países - sendo o italiano já firmado há décadas entre o Partido Comunista (PCI) e a Democracia Cristão, sendo a causa imediata do derretimento de seu sistema político e da ascensão de Berlusconi, enquanto o brasileiro segue ainda em vias de ser travado entre os arautos da marcha implacável do progresso (e da ordem, por óbvio).


A perna decepada de Mino-Ahab não foi resultado da obra individual de Battisti-Moby Dick, mas de como a juventude da qual fez parte Battisti, ao se insurgir contra o acordão que sepultou de vez qualquer dignidade revolucionária do PCI, deceparam a perna da horrenda criatura nascida do Compromisso Histórico, passando a ser perseguidos desde então por um monstro que não obstante o fato de ser horrendo, ainda é coxo - que se concretiza em pelotão de linchamento a perseguir a multidão viva e vibrante. Carta, herdeiro que é do velho PCI, reproduz uma perseguição que nem mais em sua época teve sentido, agora tanto menos. Por outro lado, no Brasil de hoje se ergue um horrendo consenso em torno da ideia de um progresso a ser conquistado gerencial e desumanamente, com suas doses de choques de ordem, como no caso dos bombeiros cariocas, e punitivismo, o que nos lembra o caso italiano em seu início. Cá, ainda há chance de salvação - como a própria decisão de Lula, ano passado, ilustra -, mas na Itália na qual Berlusconi - um dos perseguidores de Battisti - impera, tenho sérias dúvidas quanto ao mesmo.


De nada adianta surgir com denúncias bombásticas contra o consenso - e válidas, até certo ponto - como as que dizem que o PT esqueceu dos trabalhadores para logo mais estar do mesmo lado de Gilmar Mendes - sem ele ter mudado um centímetro de lado -, defendendo o mais obtuso punitivismo, que é aquele transformado em fim em si mesmo e expresso em  bases estritamente reterritorializantes, tudo isso parar honrar o consenso italiano dos anos 70 - enquanto se ajuda a criar um outro consenso se foma aqui, com consequências igualmente autoritárias. Só espero que o senhor Carta se dê conta enquanto é tempo, com o brilhantismo que lhe é peculiar normalmente, pois cá, ao contrário da representação literária, o arpão disparado nessas condições não mata apenas nós mesmos, tendo consequências históricas muito maiores e mais trágicas para todos nós.  
  

6 comentários:

  1. o melhor de Moby Dick não é seu lado de romance obsessivo, dos escrúpulos, e Ahab; e sim o do narrador descarada e declaradamente lumpen, um elogio do não-emprego, da malandragem, anti-capitalista no berço de nascença do capitalismo, aquele personagem que nos sonega até o nome blefando na primeira linga com um "Chamai-me Ismael".

    O romance da bastardice. Dos pedintes-com-classe. Dos que trabalham de graça só pelo prazer de sabotar a máquina de fazer dinheiro.

    Um romance, enfim, canalha! E nisso, como Richard Wagner em outro sentido, um precursor legitimo do heavy metal zepeliniano (que agora é renascido das cinzas, através do resgate da xibietagem e da nigrinhagem do pagodão suingueirararara, pela bahianérrima Vendo147, que este ano lança um disco que é clássico desde sua gestação: Godofredo /God Of Freedom)

    ResponderExcluir
  2. de resto, sobre Mino e sua Carta Capital, já escrevi aqui (http://ultimobaile.com/?p=2981): é bom jornalismo, mas jornalismo ainda - quando se trata agora de fazer anti-jornalismo, no sentido em que se diz anti-psiquiatria, a mesma anti-psiquiatria de Franco Basaglia, militante do mesmo PCI do mesmo Battisti.

    ResponderExcluir
  3. Sim, Lucas, há vários aspectos em Moby Dick relevantíssimos, mas ainda assim acho que a jornada paranoica de Ahab pelo globo atrás da cachalote é o seu mote central - e o que mais me interessa na obra; nós deliramos o mundo e a falta é criada. Isso é maravilhoso. Mais ainda, é justamente esse ponto que se intersecciona com o caso em questão. Sobre a CartaCapital e o jornalismo, concordo plenamente. Justamente por sua atividade ainda ser jornalística é que ela pôde ser apanhada no turbilhão do caso Battisti, terminando perfilada com os mesmos meios de comunicação que tanto crítica - não apenas no mérito como também na forma - e, até mesmo, com ministros do STF e políticos que tanto execra. Pior ainda, como produto do Iluminismo que ela é, acabou por desconsiderar o óbvio: o ser humano. No fim das contas, tudo importava, menos o fato que um ser humano - mortal e problemático como qualquer um de nós - é que se tornou joguete dessa brincadeira toda - resquícios do velho PCI, cujo fracasso enquanto instrumento revolucionário é um dos grandes responsáveis pela crise italiana atual.

    abraços

    ResponderExcluir
  4. Mas no cado do Mino, a baleia pode ser tanto o Battisti quanto o Palocci. A receita é a mesma e o texto se encaixaria como uma luva.

    ResponderExcluir
  5. Ou talvez quase, Alexandre: Mino nunca interrompeu um editorial sobre Battisti antes da metade para falar de Palocci, mas acho que ele relacionou o ex-ativista com quase tudo nos últimos tempos, por mais improvável que fosse a situação.Por exemplo, Battisti não é, nem nunca poderia ser, uma figura quase onipresente como Daniel Dantas o é por razões óbvias - se Mino trazia à baila DD constantemente, o fazia com provas, racionalmente e a insistência em torno de seu nome, frise-se, girava em torno do fato que sua revista não poderia (ser mais uma a) silenciar sobre a atuação do conhecido banqueiro junto ao Estado. O mesmo, creio, vale para Palocci. Com Battisti, diferentemente dos outros casos, algo saiu do tom, o que é péssimo, pois isso enfraquece a (importante) voz que a CartaCapital tem junto ao debate público ao escapar do coro dos contentes.

    abraços

    ResponderExcluir
  6. A fila andou

    A soltura de Cesare Battisti foi tecnicamente indiscutível. O STF apenas reconheceu que a Constituição garante ao governo federal a prerrogativa de negar-se a extraditá-lo. É razoável que a decisão do governo Lula suscite polêmicas ideológicas. Mas elas não têm nada a ver com o aspecto propriamente jurídico da questão.

    Os defensores da extradição compartilham um pressuposto equivocado: o de que a Justiça, num país democrático, está livre de contaminações políticas e arbitrariedades. Segundo tal raciocínio, devíamos aceitar os campos de concentração em Guantánamo e, no limite, qualquer absurdo praticado por governantes que receberam votos populares. Esse argumento pretende ofuscar certas dúvidas tenebrosas que cercam o chamado “terrorismo de esquerda” dos anos 70 e que seriam fundamentais para compreendermos a lisura do processo italiano que condenou Battisti.

    Quanto à seriedade das instituições italianas, lamento, mas a figura de Silvio Berlusconi não facilita.

    http://guilhermescalzilli.blogspot.com

    ResponderExcluir